©daniel reche
 

 

 

 
 

 

 

 

*

 

 

Nu eram ossos em marfim

despido é este homem de capas

a queimar ao sol seus pés

ou nas tormentas que me

distraíram em seu cortejo a

reizados agrestinos coloridos

Era mais-valia dorso e falo

desnudo era ausência de Estado;

o socialismo adormecido no tapete

 

 

 

 

 

 

 

*

 

 

                            Para José Gil

 

 

Chegaram as marcas na cara e

correspondeu a mim meu retrato

nele desenhado os versos

do escudo de Aquiles

deixei de ser juventude

meu rosto não é território

é multidão

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Tinha doze anos

e dançava minha dança

de criança numa festa

de criança quando um dedo

estranho

invadiu minha xota de criança

e treze quando desci do ônibus

na volta da escola e uma mão veloz

de bicicleta me apertou a teta;

beliscão

quase quinze quando um

primo me abraçou por trás

e pôs suas duas mãos

abertas

sob meus peitos tão recentes

— ainda nem havia me dado

conta que estavam lá —

()

os homens que me tocaram

primeiro de um jeito ou de outro

fui impedida de ver seus rostos

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Não passei fome e me compadeço

em meu privilégio não cortei cana

menina nem andei quilômetros a

pata ou boleia até a escola

Não sou tão rasa que não

se possa tirar proveito nem

tão sabida que se oriente imitar

falta-me chão de pedra e doem

demasiadamente pouco

os calos nos caminhos sob o

rubro céu que vivo; mas

sinto o peso abrupto de quem

vejo não eleito escolho sua trilha

arrasto consigo sua caçamba

Apunho da menina esse facão

e dele extraio pra ela seu trabalho

e sua doçura; não há poesia

sem dividir este peso

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Mil pés sob minha cabeça

me olham de cima onde passou

a vida e se recusou a descer cá

faço força com os braços nesta

pirâmide que sustenta a ti e teus

lambe botas aqui é bom porque

não preciso ver tua cara; somente

teu rabo de fora e este esforço

pra seguir viva me lembram

que você ainda existe

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Recomeçar exige teimosia e fôlego

fôlego falta a quem se afoga em recorrência;

e músculos pra levantar armas e dentes

esmaltados de cravar nos abacaxis rosnadores

Recomeçar depende do açúcar da tua lágrima

que perdi em chuvas salubres, e de matar passados

Enquanto me cobram hojes, passo com o carro

na frente dos bois

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Invisível na multidão

mais invisível numa

sala sem afeto e com poder

que despertam raros silêncios

e muitos ruídos; o legado

é um escaravelho

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Estou atrasada como o coelho

se nadar maratonas não alcanço

a valsa do baile claro que está claro

meus pés são pequenos apesar das

longas pernas meu corpo vasto

apodreceu desde aquele dia que

disseram que não podia e acreditei

mesmo morta arrastam levam adiante

os odores de presuntos feitos de mim

não decidi me foi decidido marcho essa

marcha febril em volta do meu umbigo

que mal superou o corte da separação

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Manuella Bezerra de Melo é jornalista e escritora. Trabalhou como repórter, produtora, redatora, foi de ativista à dona de cafeteria, mas largou tudo porque faz mais sentido largar que segurar. A única coisa que leva na sacola é o Rio Capibaribe. Escreve nas horas vagas e quando a atenção permite espasmos, poemas, crônicas e contos infantis. Viveu no Brasil, na Argentina virou aldeã, hoje está em Portugal. Morou em Braga, atualmente reside em Guimarães, amanhã é outro dia. Está na antologia Pedaladas Poéticas (Aquarela Brasileira, 2017). Publicou Desanônima (Autografia, 2017) e Existem Sonhos na Rua Amarela (Multifoco, 2018). Dedica-se a um mestrado de Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas da Universidade do Minho (Uminho).