CORES

 

 

As cores não têm o mesmo ardor de palavra, mas cantam o amor que renasce no quotidiano, retratam sem mácula a alegre vontade de esperar o último quinhão de sílabas ao anoitecer.

 

 

 

 

 

 

EXERCÍCIOS POÉTICOS

 

 

Quantos exercícios faltam para um poema vertical? Por que saga ou epopeia haverá de esperar, na madrugada insone, onde até os mosquitos reclamam da anemia de que padecem as minhas pardas veias? Quantos? Tantas questões ofuscam a réstia de saudade que se cola amiúde à minha forma de existir. Assim relegado ao som da flauta como quem encanta as cobras nas ruas de Panjabe, escutas o milagre das ondas que não esmorecem.

 

 

 

 

 

 

CONFIDÊNCIAS

 

 

                            À Urlima de Andrade

 

 

Amiga Urlima, os ventos nesta urbe jantam os restos dos nossos atormentados desejos, com a mesma audácia desabrida dos carrinhos de mão rolando nas mãos dos meninos dos subúrbios da nossa cidade em queixume. Querias ter no brando olhar, a nostalgia dos tempos da bola, das bonecas cansadas da espera nas vitrinas da rua que não acaba nunca. O sonho não é para quem anseia saciar a fome mortal, mas para domar o tédio das noites mal dormidas, os beijos perdidos na orla da criação.

Há um céu que chora o segredo dos vocábulos nocturnos da baixa, há uma hora que sente na epiderme a falta de angústia nos trilhos do café, há na solidão das ruas estreitas a confidência dos poemas verticais da Noémia, e um imaginário banco de jardim vestido de negro com a Florbela Espanca. As cores fogem do que não se pode afastar, do que é impossível diagnosticar, do que... como nas manhãs frias de Junho, tira a alegria estampada nos olhares satíricos da falta de pão.

 

 

 

 

 

 

QUEDA

 

 

Sobre o crepúsculo dorme o sol das angústias; transpiram na sonolência as feridas do agreste olhar diante do inesperado cansaço. Tu que foste outrora cavaleiro dos oprimidos, o Sansão para os guerreiros da verdade, agora cambaleias no horizonte invisível, sem a glória apetecível dos frutos verdes de Outubro. O nublar da vida repele de si o astro entediado, a voraz sagacidade de paragens secretas, para que o hemisfério sul se compadeça com os delírios da admirável civilização sulista.

 

 

 

 

 

 

ODORES

 

 

Não grites somente ao anoitecer da aurora, faz de ti um vulto invisível, um ser gregário da civilização que desanda de si, um caixeiro-viajante das horas mortas. Ganhamos e perdemos o pudor das coisas com a saciedade do conhecimento endógeno, o fio condutor do nirvana. A geração passada deixou-nos de braços atados para o futuro que não chega, criou em nós a preguiça da espera, o calor da transpiração à hora da criação. Não sendo o afamado Buda, percorres os montes Himalaias do amor em brasa, com que não olhas para o céu-da- boca seca dos odores do verão. O amor que sonhas é o mesmo que viverias na constância das palavras?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

                            Ao Adolfo Saphala

 

 

E agora, rapaz, Quantas pétalas nos faltam para o poema genial? Onde encontrar o antídoto com o qual poderemos vingar o Nobel, a fúria inaudita de Rimbaud nas travessuras da sua imaginação? O sol como de costume não acompanha a nossa caminhada na baixa "laurentina", escondendo-se atrás da nebulosa sensação de indigente, enquanto a Lua confidente das nossas incansáveis tertúlias abre as suas alas. Não lhe ofereço um rio de silêncio porque a Ítaca continua sendo o fim da viagem.

 

 

[Do Livro Ensaios Poéticos. Cavalo do Mar, 2017]

 

 

 

 

 

 

AMOR FUTURO

 

 

Como está a poesia, hoje? O frio esbarra no átrio que esconde o calor ungido na noite. Penso. Abraço meus dedos enrugados pelo silêncio dos passos e rio ao vento. Como está a poesia, hoje? O sol enerva-se no Inverno. Espreita o destino pela janela onde os botões cruzam fios de lã. Sinto meu corpo aquiescer-se nos bocados de luz que caem no soalho. Ah! A poesia. Nasce abrupta entre os milhares de palavras: fito distante um amor futuro.

 

10h04 - 17/05/17

 

 

 

 

 

 

SOMBRAS

 

 

Sabes que as sombras seguem o rasto que sonhamos? Guardam as portas que escancaramos ao despertar a felicidade? Como nunca, tenho sombras para além dos meus passos que se acocoram ao sabor do asfalto, grito a tua ausência coberto de lençóis marcados pelo tempo. Fujo do medo e da angústia, meu paladar é sinónimo de preguiça. Abri no interior da alma uma sombra maior que o silêncio, onde as acácias possam florir na estação da chuva. Ali a poda não constrói pássaros sem cânticos ao amanhecer. Então, quase surdo pela vaidade das bocas que invadem meu descanso, rastejo no colchão estendido nas vértebras do teu corpo em chamas.

 

11h08 – 18/05/17

 

 

 

 

 

 

LUZ VERMELHA

 

 

                            À Mónica Castelo

 

 

Havia (…) em mim, canções inoportunas, melodias que ao alvorecer preenchiam campos neutros. Quase confuso pelo embrutecer da razão, abanei meus neurónios ao sabor da cevada. Fingi conhecer novas métricas, outras Pasárgadas (escondidas no sono) como que instigado pelos mestres das horas mortas. O Cão do vizinho lambeu meus poemas, afugentou sem assombro parte dos versos cartados no frio da noite. (…), como guardo piscas no tecto dos meus cadernos, acendi a luz vermelha para destilar o fogo dentro das mãos suadas à madrugada.

 

12h37 - 18/05/2017

 

 

 

 

 

 

BAGAGEIRA

 

 

No My Love o medo encolhe a palavra, ergue nos declives da mata o símbolo; infantil, brinca solitário nos alvéolos da trepadeira, incha os bolsos furtados pelo vazio e os rebuçados rebolam na ingenuidade da língua. A memória ri da sorte, gagueja ardentemente pelos amores esquecidos na janela do tempo, o sol é verde e dança na cortina da vida. Tudo é onda, o milagre esconde-se na fornalha, os calços da bagageira abrem os pés ao infinito. Constroem-se sonhos no regresso à casa, ao mutismo dos corpos arredonda-se o cansaço da noite, o sol é verde, as andorinhas fintam a poeira da tarde, cintilam do alto às palpitações do coração. A palavra desvenda montes, as cores atadas ao corpo ofuscam o prazer do silêncio, o pneu sobressalente aconchega vontades no interior, a bagageira oscila entre o fim e o medo.

 

14h26 – 23/05/17

 

 

 

 

 

 

MAFURREIRA

 

 

                            Ao Milton Chissano

 

 

Abro meus ouvidos aos sons da alma, as pulsações do corpo tricotam a melodia ardente da flauta, enquanto o sopro das folhas desterra a pauta do tripé. No chão, sigo a rota das formigas que agitam os grãos de areia; assisto meu pé baralhar-se na duração da síncope. Solitário, abraço as semicolcheias com a intensidade do som. A árvore guarda a beleza do stacatto, os frutos embalam minha boca, deixo-me adormecer no espírito da sua polpa. A rua agita-se. Os transeuntes edificam metáforas nos seus olhos. Minha alma dança ao sabor da amêndoa despida; agacho-me na amplitude do vazio e desfruto da cadência do Choro.

 

10h49 – 25/05/17

 

 

[Do Livro Descrição das Sombras. FFLC, 2017]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


M.P. Bonde nasceu na Cidade de Maputo, Moçambique. Poeta e jornalista, fez parte do projecto Jovens e Amigos da Cultura (Joac) e do colectivo Arrabenta Xithokozelo. Tem dois livros publicados: Ensaios Poéticos (Cavalo do Mar, 2017) e Descrição das Sombras (Prémio Fundação Fernando Leite Couto, 2017). Obteve o 2º lugar no 14º Concurso Prêmio Escriba de Poesia/2018. É membro da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO).