Em meio aos confusos vetores que vigoram em nossa contemporaneidade, a poesia, essa resistente, como Proteu, metamorfoseia-se em variadas formas mal a "tangenciamos" criticamente. Nesse contexto, cuja vastidão formal muito deve ao que se convencionou chamar Modernismo e as vanguardas em seu entorno, o poeta se vê diante de um vasto horizonte estético, que engloba também o peso de uma tradição mais remota, mas ainda influente e viva pela força artística dos grandes mestres do passado (e não vai aqui alguma referência a Mário de Andrade e sua famosa invectiva contra os parnasianos).
Embora não se possa teorizar em termos definitivos quanto a uma tendência geral, é possível dizer, em termos genéricos, que no gosto dos escritores contemporâneos observa-se a predominância das correntes mais recentes, canonizadas sob a nomenclatura de segunda geração do Modernismo (no que esta tem de característico e é sintetizada em qualquer livro didático), e também, volta e meia, o "não verso" concreto; para além das influências é comum uma tendência ao "não discursivo" e fragmentário, o apelo ao imagético e ao sensitivo, também à livre associação do signo linguístico, sobrepondo-se ao linear, à comunicação, a um tema que vai se construindo de forma lógica. Preza-se a brevidade do verso sintético; e a rima, nessa literatura contemporânea, tem a constância de um ano bissexto.
Tendo tais dados em mente, torna-se ainda mais interessante a leitura de Desdizer, recente junta de poemas que perfazem grande parte da carreira literária do poeta e crítico Antônio Carlos Secchin, incluindo ainda exemplares inéditos de sua eclética poesia.
É uma oportunidade única de correr os olhos sobre versos que contam uma trajetória, não de vida propriamente, mas estética de um autor e sua mundivisão; um autor que percorreu longo caminho, testemunhando em searas diversas as formas que a poesia logrou assumir, refletindo como crítico e versejando como poeta que é, resultando desse conúbio de prática rigorosa sua canonização na academia nacional.
Possivelmente tal experiência e a palavra "academia" possam levantar algumas objeções em certos leitores a quem o classificativo conta mais que a performance (e com mais razão nessa época de autores midiáticos, que mais chamam atenção pelo seu perfil que pelo "produto da musa"); se o leitor cede a tal esnobismo, certamente estará se privando de uma verve vigorosa, de uma condução lírica segura e, sobretudo, de uma maestria no manejo da forma cujo fruto mais evidente é a fluência que caracteriza os versos.
Tal fruto só é alcançado quando o poeta leva a termo uma complexa equação envolvendo elementos tais como a experiência técnica ampla e um constante manuseio do seu instrumento de trabalho:
"Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.
Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno"
A resultante dessa equação é uma fluência natural que não comporta versos truncados, ainda que sob a "tirania da rima" de que nos fala Proust; o poema provoca então no leitor, mesmo o circunstancial, uma agradável sensação de naturalidade, como se tudo ocorresse como deveria, como se o poema fosse preexistente, existindo desde sempre, cabendo ao poeta apenas registrá-lo no papel.
Ótimo exemplo é o singelo e perfeito "O galo gago":
"Foi tanta zoeira
que a Noite tapou o ouvido:
'Quero dormir sem demora,
desse jeito eu não consigo.
Para que possa chegar o Sol,
e o escuro ir para o ralo,
não adianta galinha nem bem-te-vi,
eu preciso da voz de um galo'.
Disse uma antiga coruja
dirigindo-se a todo o bando:
'Ou ele começa a cantar
ou acaba em fogo brando.
Parece que um bom susto
Termina com a gagueira.
Quando ele encarar a panela
vai cantar a vida inteira'.
'Não estou de acordo',
protestou o bicho da goiaba.
'Se ele canta o dia todo,
aí é o dia que não acaba!
E pra que assustar o galo?
Vamos chamá-lo mais tarde.
Quem sabe com nosso aplauso
ele vira um cantor de verdade?' (...)
Tal fluência, que coordena a expressão e o conteúdo, só é encontrada em tal configuração nos grandes da literatura. É notório que essa característica se incorpore igualmente numa forma mais livre, como no exemplo acima, e em outra mais tradicional, como o soneto:
"Há trinta anos eu intento em vão
compor o que será uma obra-prima.
Exausta do exercício, minha mão
não avança e tampouco sai de cima"
A esse respeito, cabe observar que Secchin é cultor de variadas formas, ora versificando numa métrica regular, ora num verso livre que, contudo, resguarda seu gosto pela expressão concentrada e lacônica; por vezes, ecos distantes de grandes influências ressoam em tais versos, como nos dísticos que se seguem, que em compositura nos lembram aspectos da construção cabralina:
"Finalmente comprará sua mansão.
Será engolida pela fome de um tufão.
Viverá uma intensa fantasia,
desfeita a meia hora do meio-dia.
Encontrará o amor de sua vida:
inerte, num esquife de partida (...)"
Mas Secchin projeta sempre com segurança sua voz; é a serenidade de quem contempla o caminho já trilhado e, sem escrúpulos inférteis, reconhece ser herdeiro de nossa vasta tradição poética:
"Disseram que voltei muito mecanizado,
com ritmo concreto, muita rima rica,
que não tolero nada que não seja aquilo
que seja exatamente o que o Bilac dita.
Disseram que com a forma estou bem preocupado,
e corre por aí, com a maior certeza,
que muito pouco vale tanta velharia
de alguém que ainda pensa em produzir beleza (..)"
A respeito dessa voz autoral vale frisar, além das características já apontadas, outras mais que lhe dizem respeito e que a formatação do livro ressaltam de forma curiosa: Desdizer reúne, como já dito, diferentes obras da trajetória do poeta, mas o faz não de forma cronológica ascendente — como é de praxe — mas sim descendente: vai-se do livro mais recente ao mais remoto (embora alguns coincidam eventualmente no período de composição). Configurada como está, a obra de certa forma desarma o leitor da leitura que se orienta pela linearidade evolutiva; contempla-se os diferentes rumos poéticos de Secchin num plano que tange mais à simultaneidade que à sucessividade.
Mas retomando o tópico das características mencionadas, observa-se nos livros mais recentes uma tendência mais cerebral na construção poética, um intenção mais predominantemente comunicativa que, nos livros mais remotos, é substituída por uma entrega ao signo poético e a sua "dança" no verso (isto é, a metáfora e também, por vezes, a metáfora da metáfora), sem que a ênfase recaia sobre aquela preocupação/intenção acima mencionada.
"Gume da gaiola,
ave do visível,
o ar dispara
a retórica do vento.
Ensina o excessivo à vogal da ventania.
Enxágua o suor dos muros
nos varais do meio-dia"
Limitando o enfoque apenas no tópico verso já se tem pauta para um vasto horizonte de recursos que engloba ousadas alternâncias de métrica em formatos consagrados; rimas igualmente ousadas, tonais ou não, com um quê de ironia; assonâncias e aliterações calculadas; paralelismos expressivos nas estrofes, entre outros. Mas sua produção não é circunscrita ao trabalho poético: além do depoimento em prosa presente no final do livro (espécie de suma analítica de sua trajetória), o volume engloba aforismos de uma riqueza fascinante, a contemplar o fazer literário e seus revezes:
"11. Há poetas quase afônicos; de tanto espremerem para expressar alguma coisa, acabam exprimindo coisa alguma".
Mas também a existência e seus enigmas:
"16. Como quase diz o ditado, promessas são dúvidas".
Conteúdo
Uma análise livro a livro dos que compõem o volume foge ao propósito deste texto, pois que não lograria esgotar a diversidade temática do poeta. Todavia, observa-se obsessões temáticas que volta e meia aparecem, sempre com uma perspectiva renovada.
A poesia de Secchin escrutina a existência através do intimismo do indivíduo. Sua relação com a realidade é o tonal dominante, o que vem a ser o oposto da poesia social (embora este elemento não seja obliterado dos poemas, mas alcançado por uma via alternativa).
Nessa poesia, eventualmente o tempo, em sua materialidade e na percepção que o indivíduo tem dele, se faz presente:
"Desmoronam promessas e misérias
pedaços da palavra e da memória (...)
Do muito que sonhamos talvez sobre
o sopro de uma aurora que nos leva
além da nossa dor, mas não descobre
a flor que pulsa e arde em torno à treva"
Eis aqui o acerto de contas que cada um de nós há de fazer com o vivido. Ao fim e ao cabo, haveremos de ser sempre ruínas do que fôramos? Temos aqui uma abordagem simples e universal, mas em outros acordes o mesmo tema — o tempo — ganha modulações mais requintadas:
"Desmoronam promessas e misérias,
pedaços da palavra e da memória,
e o sol da força bruta da matéria
escorre para o ralo como escória.
Os ratos banqueteiam toda a história,
e avançam contra os cacos do presente,
seus dentes decompondo em pó a glória
de um futuro podado na semente (...)
O tempo enquanto simultaneidade estarrece o indivíduo; sua percepção incomum aqui só nos deixa concluir que o tempo e seu enigma são inapreensíveis em sua totalidade, e no fim, não resta "ninguém para habitá-lo". O tempo é essa impermanência, assim as expectativas após os anos hão de ser frustradas (o poema "Feliz ano novo") e, aprendida a lição, por que os homens não haveriam de banalizar o "transe final" (o poema "Disk-morte")? A "indesejada das gentes" também marca sua presença nesses poemas de um humor negro tão singular.
Mas o próprio fazer poético, o poeta e o que gira em torno de ambos (a "tertúlia" crítica e seus "sestros") são o tema mais constante da obra. Com um olhar, sobretudo mordaz, e igualmente analítico, Secchin devassa os labirintos do fenômeno poético, debochando dos "entendidos" ("Poema promíscuo", "Colóquio"), da "solenidade" superficial ("Soneto profundo", "Quase soneto aposentado"), relendo os clássicos de maneira criativa e reverente, mas também crítica ("É ele!", "Cisne", "Noite na taverna", "Trio", "A João Cabral", "A Fernando Pessoa") e, por fim, refletindo sobre a própria poesia e suas veredas ("Cinco", "Um poeta", "Arte", "Biografia").
É também nesse tópico que Secchin revela toda sua tenacidade de escritor/crítico literário, longe de didatismos ou da "poesia de crítico"; como um andarilho de longa data simplesmente, vai recompondo os trechos por onde passou, abarcando-os todos em si, serenamente, mas recusando o papel do velho sábio que findou sua jornada:
"Ressoa na minha gaveta
um comício de versos reles.
Em coro parecem dizer:
Não somos Cecília Meireles.
O desavisado leitor
não espere muito de mim.
O máximo, que mal consigo,
é chegar a Antonio Secchin"
Humildemente sabe que a poesia, esse horizonte infindo, costuma castigar os pretenciosos, e que mais ganha quem sabe não existir Perseu que dome o Pégaso selvagem. Se a voz do poeta assim consciente não é nem jamais será o canto absoluto a enfeitiçar feras ou vegetações e pedras, nem conduz almas perdidas de volta à luz, é ainda sim um canto embelezado por quem, cônscio de sua pequenez, dela fez o impulso de uma busca incessante que, paradoxalmente, leva à maestria:
"Sei apenas que escrever
nunca me apontou saída.
Mas ainda assim é nisso
que apostei a minha vida"
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O livro: Antonio Carlos Secchin. Desdizer.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2017, 211 págs.
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junho, 2019
Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.
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