Fazendo sua estreia na literatura, mais especificamente no gênero romance, João Caetano do Nascimento, também poeta e agente cultural de relevo nas cercanias periféricas de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, lança O rio de todas as nossas dores, narrativa cujos atributos refletem bem as convicções político-estéticas de seu autor, e que toca ferozmente em feridas ainda abertas da sociedade brasileira, mormente no contexto atual onde um sinistro revisionismo ambiciona ressignificar a própria textura dessas mesmas feridas.

A narrativa se desenrola num corte de tempo definido — dez dias do mês de junho de 2000 — tendo, contudo, como preâmbulo um fatídico dia de 1972. Nesses dois períodos de tempo é que se desenrola o drama de Vicente, vítima, como também sua família, de uma ação arbitrária de despejo promovida pelo capitalista Fulgêncio, mas levada a cabo pelas truculentas forças militares do período da ditadura. O ocorrido marca, em carne viva, uma chaga na vida do então garoto que só cicatrizará quando a vendeta que promove contra todos os envolvidos estiver, enfim, consumada.

Seus passos o levam de volta ao palco onde se encenou a tragédia passada, agora com um nome falso — Luís Silva — que alude à criação de Graciliano Ramos em Angústia. Sua busca já se encontra em vias de concluir-se plenamente, e é nesse recorte que o livro se concentra, não obstante as eventuais reminiscências dos primeiros passos dados.

O leitor é assim introduzido nos subúrbios de São Miguel Paulista, povoados por paupérrimas barracas que subsistem, em torno do grande e pútrido rio, à fábrica papeleira comandada por Fulgêncio, império que construiu a preço de sangue. No presente da narrativa, seu domínio está praticamente consolidado, sem necessidade de intervenção militar antes demandada na figura do agora major Escape, bem como do bêbado e desvalido sargento Randolfo, que vive de favor numa pensão local, ladeado por prostitutas e marginalizados, sem paz porque pressente que a morte lhe haverá de visitar para acertar as contas pendentes de seu passado escuso.

O domínio está quase consolidado, contudo, porque ali reside também uma ex-funcionária em torno da qual se mobilizam líderes sindicais e mesmo moradores indignados com as péssimas condições ambientais promovidas pela fábrica. É nesse contexto algo tenso que Vicente/Luís Silva chega, pleiteando — oficialmente — um lugar nos quadros operários da fábrica, mas secretamente seguindo à risca cada passo pré-estabelecido de sua vingança.

São esses os dois eixos da obra que se sucedem numa alternância equilibrada, imbuídas ambas distintamente de uma fundamentação ideológica (e mesmo estética, bem considerando).

Enfocando o tema da luta entre classes na papeleira, João Caetano não esconde sua filiação a um realismo de teor socialista a la Gorki e Jorge Amado; nesse sentido, nada foge ao roteiro: temos o desprezível patrão e suas intransigências e preconceitos classistas, a desdenhar dos mínimos direitos trabalhistas (aos quais contrapõem as prerrogativas do patrimônio privado), e também temos a classe marginalizada, que quando detentora de qualidades desabonadoras (amargura, mesquinharia, mesmo  lascívia), resulta no fato das desigualdades do meio e do abandono do Estado; há os sindicalistas obstinados, os oficiais desprovidos de humanidade e espírito fraternal, a líder popular abnegada e impávida etc. Como consequência desse enfoque, dessa "lente estética", os personagens se apresentam mais como tipos que indivíduos, com algumas exceções, como o amargo Vicente/Luís Silva.

Sua jornada é particularmente interessante nesse sentido, pois sua reivindicação individual não deixa de ser fruto da lógica social dessa "lente", suas perdas sendo o preço e a resultante dessa luta de classes; porém, paradoxalmente, o seu quinhão de justiça, à certa altura, se encontra desvencilhado da luta coletiva travada, perigando, inclusive (e disso ele tem plena consciência), sabotar tal luta.

Todavia, a narrativa se debruça menos sobre esse impasse que na condução dramática e suas fundamentações sociais:

        

"Vicente passou também a entender o perverso espírito das leis. Tudo aquilo era retórico, burocrático, cheio de pompa e vazio de sentido. Havia, sim, uma lógica no emaranhado das leis, nos labirintos de processos que abarrotavam as prateleiras dos fóruns, naqueles papéis desgastados, pelo manuseio e pelo tempo. Ainda sem qualquer precisão mais teórica, o jovem pressentia que, oculto, às vezes explícito, em meio à infinidade de letras, de expressões pedantes de latim, na linguagem empolada, pairava um poder cruel que a tudo e a todos submetia, usando as mais diversas faces, para dominar e subjugar os mais fracos, de forma explicita ou sutil. A cara do poder mudava sempre como um camaleão, mas a essência permanecia. Havia infinitas armadilhas urdidas naquelas letras e letras que se acumulavam. Mofo e ameaça. Diferente dos livros que o jovem encontrara abandonados no escritório e que traziam, para ele, a chama da liberdade. Essas reflexões não surgiam assim de repente. Brotavam aos poucos. Ideias inquietas que traçaram o rumo do rapaz. Com o tempo, com as reflexões, com os estudos e a vivência, elas ficaram mais nítidas".

 

Por vezes, imbuída do espírito desse realismo, a narração incorre num tom didático/pedagógico:

 

"O velho Fulgêncio ainda tem muita influência. Setores da ditadura militar continuam na ativa em importantes segmentos do poder. Esse era o preço de não se enfrentar aquele período sombrio. A PM é um reduto intocável da ditadura, reclamou Edvércio".

 

Porém o que se impõe acima de tudo é a fluidez da narrativa, alicerçada no estilo do autor e na arquitetura fabular erigida por ele.

 

 

Estilo

 

João Caetano está antes preocupado em nos narrar os fatos e nos envolver em sua condução (e consegue) do que em explorar novas formas narrativas, numa experimentação própria das narrativas modernas. Isso não quer dizer que a obra seja desprovida de elaboração.

O Estilo narrativo é o indireto livre, com o narrador, sem prévio aviso, assumindo a voz dos personagens ou seus pensamentos, o que contribui muito para galvanizar o leitor:

 

"Novos ruídos na casa. Assusta-se. Escuta a voz de Tiziu a chamá-la. O que você quer a esta hora? Quase me mata de susto. Nada, só vim para ver se você tava bem. Estou. Por que isso? É por causa do sargento? Não se envolva com ele, deixe que eu cuido de mim. O menino sorriu".

 

Pode-se falar, em certa medida, de polifonia narrativa, de tal forma que a interioridade dos personagens se encarrega de conduzir a narração em não poucas ocasiões. Mesmo uma coadjuvante, como uma prostituta, assume tal encargo.

É uma alternância que também se dá no âmbito espaço-temporal: para compreender as motivações dos personagens, mesmo os mais periféricos à narrativa, ou simplesmente para assinalar sua mudança interior, subitamente o leitor é lançado ao passado, num outro espaço geográfico.

A linguagem, que é despojada e direta, também se alterna entre o registro mais delicado:

 

"Círculo de fogo no céu. Cálida bola incendiária. Sol. Áureo. Celeste. Auréola a iluminar por trás da cabeça branca, onde brancos fios de cabelos brincam lépidos na brisa que envolve o pó e a fuligem. Fim de tarde".

 

E o mais rude e chulo:

 

"O dono do bar o serviu com má vontade. Acrescentou: assim você vai morrer, sargento, e antes de me pagar o que deve. Vou morrer, o caralho. Vou enterrar muita gente, vou mijar na cova de muita gente. Ninguém me derruba assim fácil, não".

 

É, por fim, um registro linguístico agressivo, hostil, que casa com o universo de embates que se dá em grandes proporções, ainda que no mais recôndito e depauperado do país.

O Rio de todas as nossas dores se configura assim como uma empreitada de resistência obstinada, mesmo corajosa, se forem considerados os rumos tensos, ideologicamente falando, pelos quais o país segue na atualidade.

 

 

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O livro: João Caetano do Nascimento. O rio de todas as nossas dores.

Edição do autor, 2017, 228 págs.

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setembro, 2019

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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