Reza a lenda que a Alquimia foi uma prática a que os homens se dedicaram na noite dos tempos — uns 300 anos antes de Cristo —, a combinar os mais variados elementos com quatro objetivos principais. Um deles seria a "transmutação" dos metais inferiores ao ouro; o outro a obtenção do "Elixir da Longa Vida", um remédio que curaria todas as doenças, até a pior de todas (a morte), e daria vida longa àqueles que o ingerissem. Esses objetivos poderiam ser conseguidos ao obter a Pedra Filosofal, uma substância mística. O terceiro objetivo seria criar vida humana artificial, os homúnculos. O quarto objetivo era fazer com que a realeza conseguisse enriquecer mais rapidamente (tinha que ter sacanagem no meio). Reza a lenda ainda, que esse desespero do conhecimento humano gerou bons frutos porque contribuiu para que fossem desenvolvidos muitos dos procedimentos e saberes que mais tarde foram utilizados pela ciência etc. e tal.

Que coisa! O livro Óbvio oblongo (Laranja Original/2019), do senhor Djami Sezostre, nos faz lembrar vagamente da Alquimia num sentido metafórico de experimentação. E bem sucedida por sinal, porque o que o leitor tem pela frente é um "eu" lírico, que parte e transcende de uma cosmovisão própria em permanente movimento espiral, em ritmos e sons, em sentidos e sentimentos, ou seja, uma sequencia ao mesmo tempo musical, semântica e emotiva. Por outras palavras, o mundo interior do poeta aflora do ritmo nascido da conjugação de movimentos desencontrados, mas que formam em seu conjunto uma unidade a desvelar o reino infinito do espírito humano em seu desenvolvimento existencial. E neste movimento, transborda para um lirismo universalista, aquele que verdadeiramente importa ao homem e à Literatura perquirir em toda parte e em todos os tempos.

Sezostre é autor muito conhecido no atual cenário cultural. É criador da Poesia Biossonora e da Ecoperformance, onde explora a língua em sua metamorfose, através de um diálogo com a miscigenagem e a sua relação com a natureza e os seres, humanos. Autor também de duas dezenas de obras publicadas e nesta última (assim nos pareceu), opta por presentear o leitor com uma espécie de retrospectiva existencial, coisa que o leitor poderá notar ante os belos poemas que transcrevemos. A começar por aquele que traz em seu título a idealização de James Hilton, em Lost Horizon (Horizonte Perdido), de 1933. Um lugar paradisíaco situado nas montanhas dos Himalaias, sede de panoramas maravilhosos e onde o tempo parece deter-se em ambiente de felicidade e saúde, com a convivência harmoniosa entre os homens.

 

Poema "Xangrilá". Observe-se a sublimação entre o ideal e a realidade:

 

"E quanto mais eu crescia / Mais eu achava que era / Esquisito tão esquisito / Que eu achava esquisito / Quem não era esquisito // Um dia achei melhor / Virar um animal e par / tir como um inseto par / a a floresta dos sonhos".

 

O poeta e ensaísta piauiense Rubervam Du Nascimento, em texto de Prefácio, escreve com muita propriedade sobre a poética de Djami, afirmando que é de uma radicalidade criativa, e "eficazmente utilizada como estratégia de fortalecimento do espírito da voz da palavra, em transe, em transito para a transcendência poética; poesia para acompanhar a inquietação de sua voz, a desordem de sua palavra". Em suma; uma poética "que pede passagem a diversos significados, abre caminho a outros sentidos". Veja-se nos poemas "Ogume" e "A chuva", os desdobramentos de experiências que envolvem sexualidade, a família, o amor e o sentido que se deu/dá à própria vida:

 

"Eu pequei Senhor e peço perdão / Eu peço perdão porque pensei / Que ela tinha uma forquilha nas pernas / Eu peço perdão porque pensei / Que ele tinha uma forquilha nas pernas // Uma forquilha para beijar a natureza / E achar que eu sou ela a natureza como / Ela a natureza seria por exemplo // O sangue de São Sebastião, ogumeogumeogume".(Poema "Ogume")

 

"O meu pai veio uma vez de longe / Apenas para me ver e ele falou // Que eu tinha que plantar // A minha mãe veio uma vez de longe / Apenas para me ver e ela falou // Que eu tinha que plantar // Eu então passei a plantar / Eu então passei a plantar // E plantei/ E plantei". (Poema "A chuva")

 

E o plantio que o poeta fez em seu interior foi, e continua sendo, no sentido de exercitar o seu processo genético de linguagem. Sezostre é positivamente um inconformado com as limitações expressivas das palavras. Desafia abertamente a ordem e a semântica. Recria o próprio silabário, vocabulário, fremente e instável, aventurando-se num mergulho até aos embriões da linguagem.

 

Poema "O plantio":

 

"Eu, o plantador de gente, / Plantei o menino na cova / E deixei ele lá na cova, plantado / Alado para dentro da terra // Eu, o plantador de gente, / Plantei a menina na cova / E deixei ela lá na cova, plantada / Alada para dentro da terra // Se eu, o plantador de gente, / Vivia de plantar gente, / Achei que devia plantar // Também os sonhos / E esperar pela noite / Para, então, dormir // E acordar pela manhã / Para regar o plantio — // A morte essa carpideira"

 

Poema "Jegue":

 

"O povo era prascóvio / E quem não era prascóvio / Era também prascóvio // O gado era prascóvio / E quequem não era prascóvio / Era simtambém prascóvio // O povo como gado / O gado como povo // Gente como bicho / Bicho como gente // O menino vivia alado / Como se ele fosse // O filho eterno // Prascóvio como jegue O jegue um mormaço"

 

Poema "Estilingue":

 

"Tirei, então, o meu coração / Lá de dentro da sua casa // Tirei, então, o meu coração / Para viver em paz sem ele // O meu coração que gemia / Como um passarinho, de // Repente, rasgado de pedras".

 

O escritor concilia poesia experimental com poesia comprometida com a nacionalidade brasileira, de que é exemplo o poema "oL", incluído na série de poemas "Currutela". Quanto a esses poemas, vale acrescentar que em vários deles, vemos desfilar conteúdos do imaginário brasileiro sintetizados em linguagem experimental o que acaba por gerar novas apropriações  de sentido, iluminando outras possíveis visões. Sob este aspecto, seu texto é pura ousadia de formas quebradas e convoca o leitor de percepção mais privilegiada a juntar fragmentos, cogitar possibilidades múltiplas de significações.

 

Poema "yb":

 

"O menino dormiu com a noite e sonhou com a noite / A noite deu um beijo no menino e achou que ele / O menino mio não era mais o menino mio // O menino miou e voltou a miar// A noite de repente virou uma estrela / E o menino começou a transar com a noite / Como se ele tivesse uma constelação de girassóis // A noite amanheceu e miou miou miou River Guarani".

 

Poema "Clepsidra":

 

"Eu andei por onde eu andei / E andei como anda um mineral / E cavei a terra para ser, então, / Não um ser humano, mas / Uma risca de mineral no coração // Eu andei por onde eu andei / E andei como anda um vegetal / E cavei a terra para ser, então, / Não um ser humano, mas / Uma risca de vegetal no coração // Eu andei por onde eu andei / E andei como anda um animal / E cavei a terra para ser, então, / Não um ser humano, mas / Uma risca de animal no coração // Para ser, então, um ser humano / E entrar para o ventre, água / Clepsidrar-me Clepsidra".

 

Com efeito, observamos nessa obra o poeta alquimista Djami Sezostre elaborando seu universo poético como um mago do vocábulo, engendrando intensas e colossais orgias linguísticas — incluindo aí, o "eu" e o "você", que somos a natureza mesma do cosmos — intentando romper limites, visualizar o caráter essencialmente contínuo entre seres vivos e espíritos, entre homens e mulheres, deuses, bichos, plantas e coisas. O alquimista poeta nos fala da fusão visceral entre palavra e mundo. Aí a pedra filosofal que a humanidade ainda não descobriu.

 

 

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O livro: Djami Sezostre. Óbvio oblongo.

São Paulo: Laranja Original, 2019, 164 págs.

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setembro, 2019

 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, pesquisador, e crítico literário. Autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado (contos), Um Novo Século (contos), Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 27 coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, O Touro do rebanho (romance histórico), obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO, Revista Subversa, Germina — Revista de Literatura & Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, Revista Laranja Original, Revista Penalux e Revista Fórum.