HIPÓTESE

 

 

Saberíamos nós viver à luz tépida do dia

ou sob a sombra amena, felizes, na festa dos sentidos,

enquanto rumamos, a despeito do curso, ao oceano

onde tudo se nulifica?

 

Poderíamos nós, tal como somos, clarividentes do fim,

renunciar ao significado e transbordar como as flores efêmeras

das árvores em explosão de cor e forma —

textura aberta ao contato do mundo?

 

Desejaríamos, leves como o pó, ser carregados na língua do vento

e sepultar o insepulto livro babélico do universo,

que vigeria em uma plena abertura —

livre de portas e entradas?

 

Ou somos nós senão o desvio de Deus ante o silêncio

cansado do eterno? E, nesse desvio, teríamos de nos cumprir

como quem vê no labirinto o indício de uma face

que não se mostra?

 

Ou haverá um tempo em que os jogadores deitaremos

ao tabuleiro a nossa condição, exauridos de traçar, entre os pontos

aleatórios do caminho, um novo dédalo —

desígnio para um sentido de que apenas se falou?

 

Nessa última hipótese, Deus é devolvido ao tédio primeiro,

mas livra-se do pensamento dos homens.

 

Quanto a nós, afundamos no instante de pássaros e estações,

devolvidos a uma vida não abstrata, apreensível —

como uma língua

que nada enunciasse

 

 

 

 

 

 

O POETA RETORNA COM AS MÃOS PENSAS E VAZIAS

 

 

Em certas manhãs frias de verão,

ou quando a noite é alta e imperturbável,

vê-se uma ausência sem nome

palmilhar a distância

entre o teu ser e os elementos do mundo —

como um homem buscasse

no deserto

a face.

 

Então de súbito te percebes

desenraizado nas aparências;

não há chamados, as texturas nada predicam, mas

se mostram, as exuberantes — à rapina cega

da existência,

agora devolvida a um puro exterior,

 

indiferente às remissões que trazes

na voz e te acordam um tempo originário

que não viveste.

 

Não são as coisas que vibram como

pedras sequiosas da tua voz.

És tu quem as atravessas, a todas, tentando

reunir os inexistentes estilhaços do eterno.

Bem sabes que nada se quebrou, que essas partículas

não são salvados, mas pretextos contra o silêncio

terrível das sereias — bem sabes

 

teus uivos não podem alcançar o bosque

onde a origem calmamente dorme —

como uma fonte emudecida.

 

Estás só, dentro do rio onde passa a língua,

tentando suspendê-la no pasto branco da infância —

tu, com a tábula vazia, tentando vislumbrar

o arco que o nome faz na palavra.

 

É nesse espaço onde vibra uma

imagem impossivelmente próxima,

como a curva que o vento faz em um sino

antes de tanger,

 

é nesse espaço, onde derradeiramente

vês escapar o fio de uma morada,

que tu depões o teu ofício, e, com as mãos

pensas e vazias,

retornas —

 

 

 

 

 

 

INDIVÍDUO N. 3 (OU A FESTA DO VAZIO)

 

 

então retornas ao mesmo tema

que faz um homem entre demasiados homens,

existência entre existências refluindo sobre si

 

um homem, aberto ao tédio e aos desertos,

cujo ser, de tanto contemplar,

não imolou a própria vertigem

até o som da lira ou do asco crepitar

 

e a sua existência —

este incêndio da face destituída ao espelho,

tão breve como a pulsão da aurora

ao encontro da noite fria

 

as tardes não te darão nada, meu filho,

a não ser a hora demasiado tardia de caminhos esgotados

ou o fundo vazio de estações indivisas

que te convidam a morrer no azul

 

é inútil assim ir como permanecer

exaurido no homem antes de ti

mas, se vais, escolhe o longo caminho

fora dos portos conhecidos,

propícios aos naufrágios dentro de si

 

no limiar da noite esquiva, entre esquinas mal iluminadas de astros,

a chama ausente do satélite inundará o teu ser

com um chamado lúbrico para o abandono

na vasta planície onde cantam as sereias do nada

 

mas não te afogues em aporias

deixa que o sopro do absoluto —

isto que ainda tens de uma infância —

dê-te o fôlego, mas não a chave inútil

 

não há portas

todas as construções ruíram

mas sob a tua soleira — a do teu ser —

o vento continua a rugir

 

o vento — ou as vozes que conjuras

na festa do vazio

 

 

 

 

 

 

AS MEMÓRIAS INVISÍVEIS

 

 

caminhas pelas estradas polvorentas da tua memória

recebes o vento pelas costas

algum sopro veio do mediterrâneo e tem a secura do deserto

pessoas cruzam e desaparecem para nunca mais

estás sob o sol asfixiante de junho à esquina da Calle Evangelista

ou passeias no Luxemburgo sob um guarda-chuva chinês

foi este ano ou o passado ou uma década atrás

(agora já contas as décadas)

mas os nomes traem as coisas

falta-lhes o excesso a mancha a impureza

os nomes têm a textura derruída da ausência

e a sua lâmina, uma ponta cega encardida pelo tempo

a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto

não é a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto

é também o teu ser precário sobre o Capiberibe veloz

e os quadros e arcos das pontes na extensão do azul

sem os nomes as coisas dormem no lago universal

do esquecimento e misturando-se às águas e às algas

destituem-se pouco a pouco como as margens de um rio

tragadas pela correnteza

chamá-las porém não lhes devolveria a face

(vulto que se perdeu ao virar a esquina)

cada coisa porém guarda o seu secreto nome

sob a arquitetura inviolável de um momento extinto

 

a poesia é — talvez — a tentativa de construir

para esse nome — uma esfinge à luz do dia

 

 

 

 

 

 

NOTURNO N. 3

 

 

as nuvens estão baixas e cinzentas

como carvão queimado

a lua —

um pingente barato

ou, talvez, a coisa em si, satélite

não apareceu no firmamento

o céu está despovoado —

há no vento um presságio insignificante

quiçá, um barulho nos cômodos do apartamento

mas certamente não um chamado ou um embuste

tudo é excessivo para aquele que busca

colmatar as lacunas —

meu corpo está aberto como uma vala seca de rio,

exposta e indefesa aos vazios que a noite carrega

na transparência opaca das coisas

não chegaremos muito longe

todos os espelhos foram quebrados

desde o expurgo do último metafísico

nossos olhos piscam, confinados em arquiteturas

não virá a nave com que atravessaríamos

as veias escondidas deste breu

mas nunca se sabe a cadência dos meteoros

que podem riscar o céu

não esperes o fulgor de uma eternidade 

de que não saberias o uso

a noite é este brilho interrompido —

para nós, que esperávamos a razão total

sob a glacialidade de uma estrela

mas é nesta noite — e não em outra maior

que nos cabe perceber a sua chama pura e inútil,

o seu afago tão largo como o vento,

ó morada transitória do sentido,

onde, por um momento apenas, nossos corações se acalentam

e depois se extraviam

 

 

 

 

 

 

ENSAIO SOBRE O QUE RESTA

 

 

Freud diz que a humanidade sofreu três feridas narcísicas

com Copérnico, a Terra, nossa casa, deixou o centro do universo

com Darwin, a evolução substituiu a descendência divina

e, de volta a Freud, o inconsciente foi o bárbaro da razão

 

O homem perdeu a imagem arquetípica do homem no mundo

o céu estrelado, que constituía uma morada 

ou uma lei, se abriu para a contingência fatual dos astros

a semelhança do filho à imagem do Pai 

resultou apenas escritura e esta, um dos léxicos da História

 

O céu não configura mais um teto

a gênese, não mais uma raiz

e o caminho destituiu a razão

 

No centro de lugar nenhum, ganhou o homem

a liberdade de ir ou estar à sorte do nada

e de ver no espaço — o vazio

os puros horizontes de cor de Rothko

a ruptura da forma para além da abstração

 

E a ideia da pura página,

liberta para sempre do signo, desprende-se

da iminência do lírio, da bruma ou da neve

 

Sem invólucros, meu filho, inspira —

profundo é o ar e a experiência

incomunicável

 

Inspira profundamente a liberdade do que nos resta —

a plenitude do vazio

 

 

 

 

 

 

MINHA JUVENTUDE

 

 

rezem por mim

vou desligar

Cela diz quando embarca

aos catorze, quinze, a dúvida não era tão cruel

aos vinte já tinha visto os filmes de Bergman

e conseguia ler Beckett sem vacilar

desejava ir até o fim 

que estava senão em algum livro de Dostoiévski

ou numa antologia de contos russos que comprara

mas descobri que todos somos homens

e esfacelamos em pleno ar

aos vinte e oito não tenho estômago para Haneke

sei que não surgem respostas dos poemas

um consolo talvez e o espanto — sempre

aos cinquenta, sessenta renovo as perguntas

e as esperanças

pena que Ruy não tenha chegado lá

concentro-me muito tempo nos caminhos de insetos

e em desfazer colônias intermináveis de formigas

mas tenho muita pena — de tudo

no Recife ainda quando chove faz sol

tanto mais cáustico quando é sábado

por isso me mando para a fazenda

meus amigos não sabem mas o vazio existe

rezem por mim

antes de dormir

 

 

 

 

 

 

TEIA

 

 

não há seguro contra o estar no mundo

nem tua casa te previne contra o assalto da existência

as janelas não impedem o vento e o cortejo de passos

de te trazerem signos do nada

o silêncio acusa que estás no centro de coisas 

que não oferecem consolo porque apenas remetem a teu exílio

o expediente de levantar da poltrona e abrir a porta 

da geladeira mede o intervalo de tempo gasto

e não sabes de que te serviria mais

teu olhar interroga paredes e detém-se numa lamparina

em vão um inseto debate-se contra o vidro

não há senão esta só e única realidade

 

à beira do Capiberibe ou do Nevá

 

 

 

 

 

 

MEU OFÍCIO 

 

 

às cinco da tarde um som de apito no ar 

anunciou à rua o vendedor de doce japonês 

um outro — que inusitado — cruzou comigo 

meia hora mais tarde no fim do passeio 

em condições ordinárias não se cruza duas vezes 

com vendedores de doce japonês 

hoje é um dia ordinário cortado pelo maravilhamento 

como todos os dias do ano 

pela manhã quando atravessava para o cais no Bairro do Recife 

as águas e os céus se dividiram em duas metades 

de esplêndido azul 

e meu coração fundeou à toa 

junto aos barquinhos do Capiberibe 

no fim da tarde eu vestia minha camisa branca  

bastante usada e rasgada e gostava de que pensassem 

em mim alheia às coisas materiais deste mundo 

não importa mas o homem é um ser 

de grandes questionamentos — inclusive dos menores 

meu trabalho consiste em redigir petições 

como todos os demais 

entanto meu ofício é deixar o coração aberto 

permanentemente 

o espanto não escolhe a hora de entrar 

 

 

 

 

 

 

VIDA DE CAMPO

 

 

quando chega ao campo, minha vó logo

se deixa ficar ao terraço, à cadeira de balanço,

os pensamentos para cá e para lá

como a gente descansa nessa paragem do tempo

verde, quando faz chuva, nos meses de junho a agosto

nos demais meses o mato fica seco

a gente descansa nessa paragem do tempo

e eu lhe digo que do pouco que faço

também descanso

um dia me deixarei ficar toda a semana

morarei aqui

com meus cachorros, o rumorejo das árvores 

ao vento e toda a saparia 

minha vó ri e diz é tão bom

nem precisa de gente 

eu rio e repito nem precisa

de gente

ao longe, em uma estrada que meu olhar alcança,

um ruído de motor de carro

minha vó fala sobre o silêncio

e sua voz e o silêncio se confundem

 

no campo, o vento é o maestro de todas as coisas

de tudo que rege,

o ar, o balanço das palmeiras, o voo

dos pássaros e sua fala de canto,

de tudo isto, sobe o silêncio 

e no corpo adentra — imenso

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É autora de Juventude (Refomatório, 2018), vencedor do Prêmio Maraã de Poesia 2017.