Cúmulos

 

 

Nunca mais

olhou para o Céu

esse túmulo de seus mortos

 

[o azul é vingativo]

 

Girou o eixo,

a Terra paira sobre sua cabeça,

o verde pende

e agarra as mãos.

 

Deixa o abismo aos pés.

 

 

 

 

 

 

Golpe

 

 

A mulher cortou

a primavera.

 

Observo a aridez

do sol a pino.

 

Ela tem um dobermann,

acredita em transgênicos.

 

 

Poesia

é rosto

que descarna

até o osso.

 

Serve a sopa

ao cão e à terra fria.

 

 

 

 

 

 

A morte da afilhada de Nossa Senhora Aparecida

 

 

Na lápide de cimento fresco,

com palito de fósforo, escrevi teu nome:

Odete Rodrigues Salgado

 

Na tua casa, no tanque,

a roupa aguardava desde ontem.

Silenciosa, lavei e torci as dores.

 

Tia, não lembro datas.

Teu nome, letreiro na memória,

ficou maior que o tempo.

 

 

 

 

 

 

A casa afetada pelo clima

 

 

Sopra o noroeste,

diferenças quentes

assobiam ao longe.

 

A noite quebra na parede

uma panela de pressão.

Os gritos escorrem

como os feijões.

 

 

[Poemas de Poesia em tempos de barbárie. Org. Claudio Daniel, no prelo.

Lançamento em janeiro de 2020, Lumme]

 

 

 

 

 

 

Linha Férrea

 

 

No trem das Gerais,

o jogo do infortúnio.

 

Entrega mulheres,

homens e meninos.

A nudez de um lado,

os cabelos do outro.

O pátio gira, gira

toca o infinito.

A palha aninha os corpos.

Insensíveis ao choque,

seguem as horas dos sinos.

 

— Colônia de Barbacena: não sabemos nada sobre isso.

 

No trem das Gerais,

o jogo do infortúnio.

 

Entrega ferro, nióbio,

tantalita e manganês.

Lavra a cava,

infiltra o desalmamento.

Choca-da-mata, águia-cinzenta

batem asas ao silêncio.

O peixe salta

no último redemoinho.

Mais dia menos dia, lá vai o Rio.

 

— Mariana, Brumadinho: não sabemos nada sobre isso.

 

O Insuportável contém as portas do esquecimento.

 

 

[Poema da antologia Senhoras Obscenas III. Patuá, 2019]

 

 

 

 

 

 

Quando choro por Neur e Dinka

 

 

As margens do Nilo Branco

o gado e os homens

escarificam na pele a morte.

 

'mai' seca acampamentos

'tot' inunda aldeias

a noite escarlate eclode guerras.

 

a matança segue ritos esquece mortos

há sete sonos, mataram o avô, mãe e filho

seis linhas na testa abatem jovens a tiros.

 

no pântano de Juba vagam refugiados

e o submerso sangue negro fecunda

ao Norte o petróleo jorra e queima.

 

quando choro por Nuer e Dinka

tenho apenas uma lágrima

e os pés encharcados de ódio.

 

 

Nota da autora

 

"Naath dial diethɛ kɛ a lɔr kä päärkɛ kɛ ciaŋ malä a mäni cuŋkiɛn. Tekɛ kɛ car kɛnɛ nhok ti de lät kɛ raan kɛ dämaan a gɔa" (Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos — Língua Nuer — Sudão do Sul)

 

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São providos de razão e consciência para agir uns em relação aos outros num espírito de fraternidade".

 

 

[Poema da antologia Casa do Desejo — a literatura que desejamos.

Org. Eduardo Lacerda. Patuá, FLIP 2018]

 

 

 

 

 

 

Beira

 

 

A menina ruiva,

com coração de coelho

tinha bolsos cheios de pedras

e um rio profundo a sua frente.

Não podia dançar

com demônios em suas costas.

 

— Por favor, diga meu nome e não haverá nenhum afogamento.

 

 

 

 

 

 

Como deve ser

 

 

Empalidece a voz,

a manhã paralisa o tronco.

 

O frio na medula

liquidifica sonho,

escorre na perna

fraqueza e abandono.

 

No meio do andar poça,

medo alagando osso.

E as vísceras brincam:

comer outro.

 

Aceito sua morte para reger o descompasso do corpo.

 

 

[Poemas da antologia Tanto Mar sem Céu. Org. Claudio Daniel. Lumme, 2017]

 

 

 

 

 

 

Caleidoscópio

 

 

Fragmento som.

Partida em azuis

nego lágrima e cruz.

 

Abandono nome.

O medo serro

nos dentes de um rato.

 

Decomponho mito.

Casa, colchão e gozo,

traição compartilhada.

 

Estilhaço memória.

Ao nada devoto vida,

o estático germina.

 

A vida roda o mosaico:

azul compondo espaços,

nos meus olhos música.

 

 

[Poema da plaquete Por favor, diga meu nome. Edição da autora, 2019]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Katia Marchese (Santos/SP, 1962). Consta nas antologias Senhoras Obscenas I e III (Benfazeja, 2017 e Patuá 2019), Tanto mar sem céu (Org. Claudio Daniel, Lumme, 2017), Casa do Desejo — a literatura que desejamos (Org. Eduardo Lacerda, Patuá, FLIP 2018), Poesia em tempos de barbárie (Org. Claudio Daniel, Lumme, 2019, no prelo). Tem poemas nas revistas Musa Rara, Portal Vermelho, Zunái e Jornal Tornado (Portugal). Publicou a plaquete Por favor, diga meu nome (produção gráfica Uva Costriuba, 2019). Participa de Coletivo O Ateliê de poesia. Aluna do Curso de Formação de Escritores CLIPE 2019, Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Contemplada pelo Edital do Governo do Estado de São Paulo ProAC Poesia de 2019, com o projeto do livro Mulheres de Hopper (lançamento previsto para julho de 2020). No Facebook: Tête de Katia. Mora em Campinas/SP.