Desabrigo

 

 

Na infância havia o projeto musical Aquarius, com concertos na Quinta da Boa Vista. Fascinavam-me as vinhetas da TV com o maestro Isaac Karabtchevsky e seus movimentos enérgicos de batuta na mão, regendo a orquestra que jamais vi.

A música é este fractal incessante, névoa centrípeta e centrífuga, maratona desejante e repelente, adiamento de abraços presentes, pharmakon do desabrigo, aporia performática. A música é seu amor que trago comigo, enterrado sob uma esquina de antíteses em Paris.

Atravesso a ponte dos amantes, todos surdos, percebo o cadeado preso na grade, nossos nomes são os nomes dos outros. Perdemos a identidade pela rota romântica que nunca concluímos, por que sempre andaremos. Perdidos por lá, labirinto fractal das sensações. Perdidos por aqui, concertos inexistentes da memória.

Perdidos por aí.

 

 

[Dos livros Outubro Literário (Mulherio das Letras Europa). Munique: Fafalag Editora, 2018 e

2ª Coletânea de Prosa Mulherio das Letras. Toledo: Indicto Editora, 2018]

 

 

 

 

 

Vítimas da Sociedade

 

 

Lembrava-se da boca coberta de sangue e lamentava que pudesse ser assim aquela pomba apedrejada que ela olhava atenta fixa enquanto o filho lhe puxava a mão atento fixo no meio da rua vamos mãe vamos que a gente tá atrasado vamos.

Despertou. Caía atrasada no meio do asfalto vinda daquela mistura de sono e vigília deflagrada pelo cadáver animal. Ela também já tinha sido bicho atropelado, rasgada rota estropiada assim fácil. Vamos vamos vamos diziam todos vamos vamos segue a marcha do progresso vamos esquece isso.

Mãe, ele me bateu de novo.

Por que você não esquece isso A gente sabe homem é isso Não é que ele não goste de você ele gosta do jeito dele Segue a marcha do progresso. Dele. Ele sabe o que faz Ele é o leme da família Toda a família tem seu leme Ele é o seu disse a mãe mais uma vez à filha. A filha secava o choro, a mãe secava o sangue da testa, a irmã colocava gelo no roxo do olho, o filho pequeno mordia um canto da unha no canto da parede.

Ela se lembraria daquele dia em que ele a arrastou cem metros com o carro, ele no volante, ela do lado de fora do carro presa pelo braço dele. Ela se lembraria muitas vezes daquele dia porque neste dia o amor a deixou confusa. Porque o amor confunde a gente, deixa a gente louca, o amor acaba com o coração da mulher. Ela tinha ficado confusa e foi se aconselhar com a mãe, que deu de ombros — isso passa. Por cima dos ombros a mãe lhe reprovou a confusão. Ela continuava confusa, mas deviam ser os hormônios de grávida, que ela naquele dia do carro nem sabia estar.

Ela ficou ainda tantos dias confusa com aquele amor de homem, sua nova forma de amor de mãe. Um carinho torto assim machucado, sangue pisado no peito, mas que existia, estava ali, bastava olhar com atenção. Olha com atenção, diria a mãe.

Ela olhou com atenção o dia da cristaleira. O da bolsa queimada. O do vestido de casamento rasgado. O da mão queimada com cigarro. O da surra no segundo puerpério. O do tapa no rosto do filho. O da água quente na filha — porque a namorada dele apareceu na porta de casa. Este foi o que ela olhou mais. Por sorte queimou só o braço esquerdo da criança. Que urrava de dor. Ela pegou uma faca e apontou na direção do marido com os olhos em chamas. Saiu de casa confusa, mas saiu.

A mãe tentou convencê-la a voltar ao lar. Não. Volte, filha. Não, não posso, sou uma vítima. A mãe soltou uma gargalhada cortada por espanto e escárnio.

Você se acha vítima de quê? Na televisão tem essas pessoas que passam fome no Nordeste, na África, essas sim são vítimas da sociedade. Você, vítima? Que mulher não passa por isso? Quem nunca levou um tapa? Já esqueceu do que passei com seu pai?

A mãe não aceitaria. Separação? Medida protetiva? Essa era boa. Ela era uma covarde. Não quero filha separada em casa, se vira. Quer se separar, vá trabalhar, cuide de sua vida. Foram as últimas palavras da mãe.

 

O apartamento emprestado pela prima ficava em uma zona pouco nobre da cidade. Ficava difícil voltar para casa todo dia, foi difícil arranjar escola para as crianças. Vendia doces para fechar o mês. Ele agora ameaçava não pagar a pensão, retirar dela as crianças. Vivia meio aérea, cortando os dedos nas facas, batendo os dedões nos batentes das portas. Prosseguia. Pomba pisada de asa quebrada, mas prosseguia. Sem ânimo nem desânimo, em forma de válvula de abre e fecha, e prosseguia. Acordava para esperar a hora de dormir. Dormia preferindo não acordar.

Aquele dia esperava o filho mais velho voltar da escola e olhava pelas grades do prédio para a rua. Sentia a clausura daquela rua sem asfalto em comparação à da rua em que tinha morado tanto tempo casada. Suspirou fundo. Ficaria quanto tempo assim. Segurava as barras de ferro e via a vida dos vizinhos subindo e descendo pelas calçadas.

Passa esse homem jovem satisfeito, carregando uma sacola de plástico com um pacote de fraldas dentro. Ela o acompanha com os olhos. O homem para sorridente e informa: É para minha filha! É minha primeira! A alegria saía simples daquela boca.

Ela devolveu um sorriso tão simples quanto.

 

 

[Do livro 90 anos de malandragem — Contos inspirados nas canções de Bezerra da Silva.

Org. Ecio Salles e Julio Ludemir. Rio de Janeiro: Funarte, 2018]

 

 

 

 

 

 

A geladeira dos cadáveres caminhantes

 

 

Ariosto tentou uma, duas, três vezes. Fez uma força tremenda, puxou ainda mais forte, atingiu o índice da pujança mensurado máximo, o dito ponto descomunal, mas, apesar de tamanha robustez, mostrou-se impossível arrancar o motor da geladeira como pretendia. O que significava, portanto: um — teria de arranjar ferramentas mais apropriadas para concluir sua tarefa; dois — teria de empreender um caminho para fora de casa, porque: três — o motor estava, percebeu, infalivelmente queimado.

O caminho para aquele grande fora configurava tudo o que Ariosto preferia evitar. Gostava de ficar em casa, vivendo o grande dentro, de preferência com a cabeça recostada ao corpo da mulher. Parado ali, sobre o ventre e o útero, regozijava os ecos dos muitos anos de vida amontoados sobre sua pele.

Com quarenta e dois anos vividos em uma sociedade etário-valorativa, em breve poderia se candidatar à criogenia estatal. Sua mulher se submetera a esse procedimento muito antes dele, pensamento que Ariosto, meneando a cabeça, afastava para longe, embora reconhecesse a importância daquilo, pois lhe permitira conhecê-la com as feições mais rígidas, o corpo fresco.

Ele olhava e percebia, como todos igualmente poderiam, a não correspondência entre o visível e o invisível propiciada pelos efeitos criogênicos e, ainda que satisfizesse sua vaidade de homem ter uma mulher mais jovem na aparência do que ela era de fato, esforçava-se por expulsar de sua mente a ideia de que o desenvolvimento da biologia determinara, mais do que o desejado, os caminhos da sua intimidade.

Pegou sua bolsa de empreendedor. Lançou-se à rua, que desprendia seus pigmentos de carne pútrida. Pôr os pés na calçada era assistir à dança das águas do terror pós-apocalíptico. Como faziam aqueles cidadãos para, dia sim e o outro também, sobreviver sob o suco deteriorante das chuvas ácidas intermitentes, surgentes sem qualquer aviso prévio?

Como faziam para, todos os dias, impermeabilizarem-se dos contágios cíclicos das epidemias, surgidas das mutações de patógenos que, desde a guerra, acometiam os corpos ainda não humanos em sua fragilidade — mesmo com o avanço tecnológico, decisivo para gestar a hecatombe? Como faziam para sobreviver à degradação natural, a despeito do primor da tecnologia contemporânea, a qual lhes impelia a caminhar quilômetros expressos a fim de encontrar alguma natureza viva, uma pequena árvore que fosse, destruição que desencadeara escassez impensada na produção de agricultura de subsistência?

A nutrição tornara-se a tal sintetizada que viabilizava, de modo constante, projeções muito pessimistas sobre a incidência em longo prazo daqueles compostos nos corpos dos humanos restantes. Em suma, como sobreviver à sobrevivência dos humanos à guerra nuclear?

Cadáveres caminhantes, pensava Ariosto há algum tempo. A doença do porvir que se alimentava de esperanças mortas. Sobre aqueles caminhos de desilusão, ele e todos os sobreviventes à hecatombe caminhavam em direção à zona nebulosa do deserto existencial assim que transpunham os umbrais de suas portas, daí as reservas de Ariosto a qualquer contato com o mundo exterior.

Ele chegava à casa e, em disfarçar o asco, batia os sapatos um contra o outro antes mesmo de entrar, para em seguida higienizá-los com muito critério, expelindo as substâncias mortificantes aderidas aos calçados. Suportava com dificuldade pisar na rua, andava o mínimo possível, pedia logo um táxi. Ao volante, naquele dia, encontrava-se o jamaicano.

Ariosto conhecia bem aquele homem. Ele se comportava como aquilo que um dia se denominou "um jamaicano do reggae". A hecatombe apagara muitos registros históricos de certas regiões da Terra e, no "big bang" informacional, o "big data" das Américas do Sul e Central foi sugado pelos registros de dados da América do Norte (o que ninguém esperava que acontecesse), esboroando assim as informações precisas sobre aquelas regiões. "o jamaicano", com seu gorro ovalado azul, suas roupas quadriculadas em verde e amarelo, esperava emular, desta forma, aquilo que fora "sua ancestralidade equatoriana", como ele dizia.

— Por que você saiu hoje, mano? — o jamaicano sempre falava aos gritos e ria freneticamente, dirigindo de modo inconsequente pelos ares da cidade poluída.

— Porque o motor da geladeira queimou miseravelmente. Vamos ao depósito — respondeu Ariosto, que sofria com aquelas curvas duras através da atmosfera citadina, e eventualmente olhava para baixo, como forma de se agarrar à Terra com firmeza, mirando-a de cima.

Seu coração palpitava nas corridas com o jamaicano, mas preferia assim, rápido. Comprar um simples motor de geladeira significava atravessar a cidade inteira, em um traçado longitudinal que rasgava as sobras do corpo da Terra, e quanto menos tempo pudesse se ausentar de seu apartamento melhor.

Sua mulher devia estar em casa agora, divertindo-se com os vídeos de podologia. Passava horas às voltas com unhas encravadas, olhos de peixe, espículas, órteses. Submetera-se a um ano sacrificante de congelamento espontâneo, a fim de dilatar a vida, para usá-la assistindo a vídeos remotos recuperados de uma plataforma virtual antiga.

Ariosto, no começo, procurou admoestá-la, mas com o tempo entendeu o gesto corajoso. Por que tudo precisava ter uma utilidade, até mesmo o tempo? Ele conseguia visualizá-la, ainda não a conhecia na época, entrando na câmara, abdicando de tudo, até mesmo do que mais pretendia prolongar, porque a criogenia não era isenta de falhas.

Maria estava certa, vivemos doentes em busca da abolição do acaso, Ariosto pensava no banco do carona do táxi, o que lhe provocou um pequeno sorriso ao perceber que a mulher, senhora de suas células modificadas, se entregava de modo vital ao banal. Ele se divertia com as ideias da esposa, um pedaço de carne humana expandido pela criogenia, uma mulher banhada em substâncias sintéticas e em compasso de fúria contra as expectativas.

"Como vai sua mulher mais velha?". Desta vez o jamaicano o poupou da pergunta. Mas, normalmente, era a primeira que lhe faziam, muitas vezes antes mesmo de cumprimentá-lo. Desposar uma mulher com dezesseis anos a mais do que ele, criogenada, era um ato improvável na Terra de 2084, intoxicada, cáustica e inconcebível. Em um mundo que valorizava o novo, o promissor e o imaculado, Maria, com suas células modificadas, enxertadas de inovação, mas também de memórias de um tempo morto pelas bombas nucleares, era a eleita justo de um empreendedor, fato que provocava profundo espanto na maioria dos terráqueos.

Os empreendedores tornaram-se, após a hecatombe, os carpinteiros do novo mundo, consertando as poucas máquinas restantes, vasculhando compartimentos, abrigos, depósitos atrás de peças obsoletas, mas absolutamente imprescindíveis, já que a degradação do espaço terrestre se consumara com tal eficiência que os insumos tinham rareado ou se extinguido de maneira consistente, impedindo a produção regular de novos equipamentos.

Profissionais muito respeitados da nova era, os empreendedores viviam enfurnados dentro de máquinas como as geladeiras, consertando-as, coletando suas peças, pelo que angariavam para si um enorme respeito e admiração. Passavam anos estudando manuais antigos e quase desaparecidos, refazendo a organização técnica de eletrodomésticos dos quais se sabia muito pouco ou quase nada, em uma arqueologia das coisas de fazer inveja a muitos.

O empreendedor, cujo nome profissional fora colhido da mesma sucata de desastres de onde derivavam as peças de reposição, podia ter quase tudo que o mundo material oferecia: dinheiro, bens, juventude comprada, mulheres pós-púberes. Ariosto escolheu, do almanaque de tudo, uma esposa mais velha e criogenada.

Mesmo os profissionais mais bem preparados poderiam ser ludibriados, e Ariosto, com certeza, havia sido vítima do golpe de um dos traficantes de objetos que empesteavam os espaços domésticos com a quinquilharia mais aparentemente sofisticada. Porque era demasiado improvável um motor de geladeira de alta qualidade durar apenas três anos.

Aproximavam-se da região dos depósitos e via-se da janela da frente do táxi a imensidão desértica estender-se adiante, a qual guardava, entre aço e areia, sua beleza drenada, sua inflexão gigantesca em torno das sobras civilizatórias. Ariosto admirava os polos contrários daquele espaço monumental, construído em torno do pequeno e do grande. O táxi desceu bruscamente em direção ao depósito C5, corredor L7, onde ficava a sala B3, chegando a seu destino. O jamaicano esperava o retorno de Ariosto.

O empreendedor gostava daquele vendedor em específico: homem seco como ele, o que lhe agradava: não estava ali para fazer amigos, mas sim negócios. Contudo, não podia negar que, com a confirmação da preferência, os dois homens estabeleceram entre si uma cordialidade específica. Em sua mudez quase completa, Arnaldo, o vendedor, reservava as melhores peças para Ariosto, que agradecia a deferência devolvendo-lhe silêncio e retornando sempre que desejava.

O empreendedor só não recebia mais peças porque trabalhava relativamente pouco para alguém da sua profissão. Sua rotina de trabalho compreendia apenas três dias na semana, porque o restante da semana preferia ficar junto de sua mulher, o que o transformava em motivo de escárnio (Ariosto ignorava os comentários envenenados de gente indigesta, ainda que as pessoas indigestas fossem a maioria das pessoas ao redor do planeta). Pagou a Arnaldo o valor da peça e tomou-a com as duas mãos. Eles, Ariosto e Arnaldo, pensou o empreendedor, eram os artesãos de um novo mundo sem conserto, os carpinteiros de uma nova era fadada à morte rápida. Dirigiu-se ao táxi.

O jamaicano fez toda a viagem de volta com seu bom humor nas alturas, como de costume, mas percebeu de soslaio a absorção de seu passageiro. Pela primeira vez em tantos anos de trabalho dedicado, Ariosto percebia o formato daquele tipo de motor: pareceu-lhe um coração, a bomba de sangue de uma era de geladeiras enguiçadas e cadáveres caminhantes.

 

 

[Do livro 2084: Mundos Cyberpunks. Org. Lídia Zuin. Manaus: Lendari, 2019]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Juliana Berlim. Carioca de 1979, é licenciada em Letras (Português-Alemão) pela UFRJ e Letras (Português-Francês) pela UERJ. Mestre em Ciência da Literatura (Semiologia) pela UFRJ. Professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Membro do corpo docente da pós-graduação "Ererebá — Educação das Relações étnico-raciais no Ensino Básico" no mesmo colégio. Algumas publicações: texto em alemão sobre a cidade de Leipzig, na coletânea Mein Ort in Deutschland, editora alemã Hueber (2016); contos nas coletâneas Narrativas curtas da FLUP (Festa Literária das Periferias, cidade do Rio de Janeiro), pela editora Casa da Palavra (2016), conto selecionado para a coletânea de textos As cidades e os desejos, Selo Editorial Aliás, 2018; Outubro Literário (Mulherio das Letras Europa. Munique: Fafalag Editora, 2018); 2ª Coletânea de Prosa Mulherio das Letras (Toledo: Indicto Editora, 2018); 90 anos de malandragem — Contos inspirados nas canções de Bezerra da Silva (Org. Ecio Salles e Julio Ludemir. Rio de Janeiro: Funarte, 2018), 2084: Mundos Cyberpunks (Org. Lídia Zuin. Manaus: Lendari, 2019) e Entradas para cotidianos (Belo Horizonte: Venas Abiertas, 2019).