Mitologia das mãos

 

 

da soleira da porta vejo suas mãos

em frinchas apertando as costas

 

ruidosamente os dedos navegam na pele

na sebe das suas digitais

 

não fomentei qualquer desculpa

para aterrar os ritos

 

soergui com calma a verdade

entranhada nas suas pernas

 

diletantes as mãos buscam

um lampejo de água

 

as horas trafegam surdas

nos esqueletos de mármore

 

inútil datilografar os olhos

sem pronome definido

 

recuse as mãos pálidas

carentes de afeto perdido

 

 

 

 

 

 

Nocaute

 

 

amaldiçoei o vento porque

tomou a quietude das flores

e inundou o meu rosto de sombras,

as esporas do sapato

raspam com fúria os despojos do tempo

o meu silencio noturno foi nocauteado

pelo berro dos lenhadores

sonhei com os apelos das árvores

e o sopro de asas de garças,

não revelo aos deuses

as sementes que apanhei

não falo das dores e lacunas

deixadas na narrativa

a escrita vicejante externa folhas

de plumas em aço

meu quarto despovoado

de silencio

inalienável, rota obscura

para o Norte

você rompeu a constelação de poesias

tivéssemos guardado no baú,

na nave de memórias,

o que somamos de epistolar e sonoro

dessas horas

foi desconstruído cada osso, depurado

filtrado nas dimensões da palma da mão,

por sorte a janela da sala

dá-nos a visão do lado Sul da lua

 

 

 

 

 

 

Autoexílio

 

 

a mala no canto do apartamento

num canto qualquer da tua ideia

na desordem do quarto imperfeito,

antecipa-se o medo

 

o ritual da afirmação perde-se

na margem do caderno

mergulhamos no exílio quântico

Berlim ainda nos acena: uma praça, uma cerveja e o sofá cama

 

não escrevo cartas

não faço declarações

não faço objeções

concluo o relatório do absurdo de-ser

 

estranhamente, o poema tomou conta

do azul das rosas e das begônias

o incômodo marulhar da vitrola soa,

aponta para o acolhimento

 

trancada por dentro, não suporto uivos

e meias verdades

aguardo a anistia,

enquanto danço o pós-moderno na sala

 

 

 

 

 

 

Ferrovia leste

 

 

meu estado de neblina encobre

os trilhos da longa ferrovia,

incontáveis esporas saem

do meu corpo

e machucam

como palavras afiadas

 

a quem pertence estes caminhos?

 

o funcionário da estação não deixou

as correspondências de Deus

falta-me a noite e seu entorno,

falta-me a realidade atrás das montanhas

 

por que os deuses repartiram o sol,

se não haveria mais tendas

no frêmito das horas?

 

a estrada continua nebulosa,

a luz do poste flutua na estação,

o funcionário esqueceu de deixar

uma cópia da chave

preciso abrir as ondas

para limpar o oceano

 

preciso partir

 

o funcionário dizia:

qualquer camada que se aporte no

prurido das vírgulas causa incômodo

e eu não entendia

 

atravessei os quartos da casa

como se fossem continentes

infinitos de histórias

o rumorejar de passos no assoalho

decompõe a química das sombras

o arredor borrado de escritas

 

preciso partir

 

na véspera, uma senhora

embarcou no último trem,

levando a existência de sonhos

a carregar a impermanência

das palavras

 

 

 

 

 

 

Mulheres da Cordilheira dos Andes

 

 

eram três figuras

três figuras femininas que caminhavam unidas

na noite fria de setembro

haviam se encontrado na esquina da morada

embrulhadas em casacos e xales

 

dos seus braços nasciam folhas comestíveis

derramando líquidos pensamentos

nas paragens

 

eram três figuras

três mulheres que peregrinavam de casa em casa,

atravessavam corredores e salas,

buscavam seus filhos na noite vazia de sons

 

das suas pernas surgiam raízes tabulares

agregando imagens oníricas àqueles

que perderam os sonhos

 

eram três figuras

três mulheres que carregavam bacias de água

para que as pessoas pudessem

atravessar a Cordilheira

 

das suas mãos excretavam flores amarelas

e açucaradas que alimentavam as crianças

dos Andes

 

 

 

 

 

 

Solarius

 

 

Entre escolhos

o retumbar de cornetas-buzinas

Mármores, bronze e concretos

fundidos, incendiados no nada

Escadaria belas artes

a florescer em você

Matronas urbanas recolhem o sol salgado

As vigas, pilares conduzem

a um remanescente dia

Na voragem cotidiana

deslumbra-se rostos cinzentos

 

 

 

 

 

 

Trecho do mar

 

 

as ranhuras do corpo transformaram-se

em pequeninas flores

que descascam ao vento

mulheres carregam baldes d'água

carregam minudências, e

as fatias do sol ao píer

 

sopro de afluentes vicejam

no entardecer

o cantos dos pescadores arrancam

as dores de dentro

as dores de fora não podem ser vistas

o meu horizonte amputado de sonhos

sob o calcanhar de incertezas.

 

 

 

 

 

 

Por oito horas

 

 

Há oito horas meu corpo dardeja

Meus dedos buscando suas coxas

Intermitente,

Dos lábios sublinho com dedos

O líquido tão morno

A boca muda, úmida de néctar

Os meus seios, os seus seios

Oito horas de um temporal

Sem palavras

Sem ventos

E no amar das posições conjugadas

E reentrâncias

As mãos se fecham no gozo

 

 

 

 

 

 

Escrituras

 

 

o timbre de tua voz desprende

do cinza esgarçado das paredes

descalça, o frêmito do piso

enregela meus escritos

 

a escritura grafada no anverso

das mãos, testemunha (de) outros povos,

emerge o cheiro ocre das tuas saias

o silêncio nos rodeia

 

os olhos coreografam o sentir,

enquanto ventarolas espraiam

a sede

os postais diluem o paradeiro

da morte

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ingrid Morandian nasceu em São Paulo/SP, onde reside. Participou de várias antologias: Água Terra Fogo Ar — Crônicas elementais (Uapê, 2011), História intima da leitura (Vagamundo, 2012), Revista Plural 1900 e Revista Plural La barca (Scenarium Livros Artesanais, 2016), Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016. Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Diversos Afins e Liberoamérica. Seu primeiro livro de poesia: Se você me amasse, teria fechado os olhos (Patuá, 2019).