§

 

 

Degredados filhos de Eva

viciados em coca, ateus, poetas, putas, alcoólatras, depressivos, suicidas, abortos mal sucedidos, ebó chutado, a freira grávida, orelha cortada de Van Gogh, os desiludidos de amor, vagabundos, loucos, pervertido voyer sadomasoquista, a sujeira por baixo da unha era merda, um urubu faminto, as trevas devoram sua buceta em uma noite fria andando pelas ruas escuras dessa cidade fodida, aquela siririca interrompida como os sonhos de ir morar no interior de Minas dando aula de filosofia e toda aquela babaquice

da epopeia a morrer de fome

gemido à sombra

prolifera a úlcera

tarja preta na escrivaninha ao lado da cama

silenciaram o grito

imóvel

na sua caixa torácica

o ovo da mosca na carne da marmita

sua sina fez preto velho chorar

Degredados filhos de Eva

com seus "universos cuspidos pelo cu

sangrento de um Deus-Cadela"

Para vocês

o paraíso

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Ano passado ainda estávamos todos vivos

teve o desemprego, Corinthians heptacampeão, a greve da PM, febre amarela, enchente em Pernambuco e uma sobrevivente que na hora de pegar as coisas mais importantes para fugir pegou os livros

teve eclipse total e choque entre estrelas

ainda estávamos todos vivos

não mais tão unidos como antes

mas ainda assim vivos

fomos perdendo coisas pelo caminho e nos perdendo também

nos quebramos

nos quebraram

mas seguíamos

com cervejas aos fins de semana e quando doía demais

as segundas e terças e quartas também

chamadas de vídeos, cigarros na varanda lá de casa,

promessas de nos encontrarmos mais e viajar e enlouquecer

como antes

como quando ainda estávamos inteiros

as noites viradas no bar do kelin ou no zico ou lá na Ponta da Fruta

escondiam o que não dizíamos

o tempo passou

por pouco

mas já tínhamos medo

silenciamos na virada de ano

todos

e veio a esquizofrenia, o surto, rompimentos

morte

essas pequenas tragédias que nos fazem desacreditar

e apalpar o corpo em busca de algo vivo

rompeu a barragem da represa

como estancar o sangramento

com um chumaço de papel?

Aos amigos que ficaram.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Pinçar a alma com esmero

pedaço por pedaço

Colocar para curtir dentro de uma garrafa de cachaça

Dizem que tem uma da reserva 51 que ficou 3 anos no carvalho

O carvalho é uma arvore sagrada

venerada pelos druidas celtas — assim aprendi nos livros de neopaganismo

que lia escondida entre um intervalo e outro na escola das freiras —

conserve em local isolado

— numa bolha imersa dentro do caos

acho que isso é mitologia Grega

nunca quis fazer faculdade me disseram para fazer faculdade

legal mesmo era filosofia

"filosofia não dá dinheiro"

não fiz faculdade

não não não isso não vem ao caso

deixa eu voltar para a minha receita de conserva-

por meses anos quem sabe

enquanto seu corpo continua sendo uma ocupação

que caminha por ruas em ruínas

continue caminhando sendo ocupação sendo ocupação sendo ocupação

As paredes pichadas com frases de amor e revolta contra o governo, banheiros sujos de mijo e vomito,

falsas promessas, beijos de mentira, realizações de mentira

a hidro do motel, os cortes na perna, superfície superfície superfície

flores de plástico, as segundas — terapia e a sensação de que a terapeuta também está perdida, noites em claro usando técnicas da neurociência para controlar as crises de ansiedade

a vela para o anjo da guarda, vozes na cabeça

voilá voilá voilá

Vandalizaram sua ocupação

Seu olhar carrega uma mortalha

E você lembra

numa bolha imersa dentro do caos

sua alma em conserva

"No meio da Costa Pereira, 12 horas

uma fogueira e uma mulher nua bebendo de uma garrafa de 51

ela dançava e gargalhava"

noticiaram os jornais

 

 

 

 

 

 

§

 

 

e então você se foi

no dia em que eu paguei a fatura em atraso da tv por assinatura e Fagner voltou a cantar Retrovisor no canal de músicas

Eu fiquei aqui

nesse quarto de janelas teladas para o gato não ir cagar na cama da vizinha fofoqueira

que viu você partir e comentou

"Ela se foi também"

E então você se foi como todos os outros

Antes de ir

colocou uma mão em concha no meu seio esquerdo maior que o direito

eu te neguei duas vezes

na terceira te beijei com a sofreguidão das horas mortas

virei a face contra o seu hálito de cigarro e trident de canela

e com a boceta toda melada

corri para a casa do amigo viciado em comprimidos para dormir e cat power

e chorei escombros deitada no colo dele

precipitou-se a inundação

desde o dia que você partiu

eu passei a viver numa garrafa

 

 

 

 

 

 

§

 

 

moscas varejeiras na parede

a parede é minha amiga

desde a primeira tentativa de suicídio

Eu nunca quis olhar pra fora

lá fora é frio

com toda essa gente amontoada em bares, boates e cafés

lá fora é vazio

com toda essa solidão devastada

de uma poesia que não vingou

lá fora é uma piada triste

na esperança que termine

um dia

todo esse desfile de gente morta

enquanto os manicômios estão cheios

nunca quis olhar pra fora

meu coração passou a bater na parede

quando eu enfiei goela abaixo 6 caixas de comprimidos tarja preta

meu coração está sendo comido vivo

pelas moscas varejeiras na parede

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Eu sou o ebó despachado na encruzilhada com pedidos de amor

sou os piolhos da cabeça de Rimbaud

o ópio de Baudelaire

a paranoia de Piva

Eu sou o tremor das pernas ao se aproximar o orgasmo

e a marmita estragada dos presídios superlotados

sou o dar de ombros da puta desenganada

e os boquetes desalmados

Eu sou a úlcera sangrando lentamente

Sou o pus de uma sutura mal feita

Sou a tuberculose que matou João da Cruz e Sousa

Eu sou o empréstimo feito para bancar a publicação do livro

os bens vendidos

o nome sujo no serasa

Eu sou a solidão que calou Florbela Espanca

sou a boceta querendo ser fodida

o cuspe e as chicotadas em uma sessão de sadomasoquismo

eu sou

eu          

sou

o cataclismo de um corpo afetado pela poesia

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Estou cansada e assombrada demais

uma velha casa abandonada com os móveis empoeirados e apodrecidos pelo tempo

me pesa os ombros

e o ventre

como se eu tivesse acabado de parir um filho indesejado

Uma náusea constante

que me traz um gosto ácido na boca

a maçã mordida

Eva expulsa do paraíso

odiada por deus

E numa tentativa absurda de me salvar

eu escrevo

Meio egoísta, eu sei

que se foda

Escrevo para me autoexorcizar

do suicídio, da loucura, dos remédios controlados ao lado da cama

Ainda assim me sinto uma miserável solitária

Uma miserável solitária que apaga cigarros no peito

e passa a unha na ferida

deixando-a sangrar

 

 

 

 

 

 

§

 

 

A solidão atrofiou os ossos da minha mãe

e os seus sentimentos mais bonitos

sempre que faz frio

ela se dói por inteira

A solidão tranca meu amigo no quarto

ele joga LOL, toma cerveja

fuma maconha e diz que é só uma temporada de um seriado difícil

A solidão matou meu cachorro de câncer

No quarto do motel Ibiza

a solidão paga boquete em um garoto de programa

A solidão matou os dois filhos e a esposa

e depois meteu uma bala na cabeça

A solidão trepa com desconhecidos

chupa bucetas

dá o cu

está em orgias e em sessão de sadomasoquismo

A solidão se atirou da terceira ponte e foi encontrada boiando na baía de vitória

Ela usa ansiolíticos

antidepressivos

cigarros, bares cheios, pessoas, religião, vodca, facebook, deus

e coloca a cabeça no travesseiro toda noite para dormir

não termina quando a luz se apaga

A solidão está sentada na mesa de um escritório

atrás do guichê de atendimento

e nos silêncios

sem horário de almoço, sem intervalo para fumar

Às vezes acontece dela ser um ás de espadas

quase nunca

A solidão pega ponga no caminhão do lixo

ela é o chorume que o coração chora silenciosamente nos dias de chuva

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Minha mãe tem uma amiga que toda noite senta com ela no sofá da varanda

As duas fumam

Conversam para dentro

e olham para o vazio uma da outra

A mãe coloca o cd do Belchior

Alucinação que ela ganhou do meu ex-padrasto alcoólatra num dia que ele se perdeu voltando do trabalho e foi parar na feira do aribiri e encontrou o cd e mais um litro de aguardente havana

enquanto as duas vilipendiam dores, fracassos e sonhos

"Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"

A amiga tem uma filha que depois de velha decidiu entrar para o convento e um filho que quando mais novo caiu da laje soltando pipa e nunca mais foi o mesmo

A amiga se reveza entre o presídio de Xuri e o convento da ordem das Carmelitas

Ela não chora mais

disse pra minha mãe que de dentro dela só sai merda, mijo e sangue

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Vênus,

protetora das prostitutas

concebidas sem pecado

olhai por nós que recorremos a vós

Maria Madalena arrependida nunca fui

ontem canonizaram minha boceta por 7 vezes

Mártir dos filhos de deus

desamparados

com seus paus duros, meia bomba, broxas

Vênus,

protetora das prostitutas

concebidas sem pecado

olhai por nós que recorremos a vós

Maria Madalena arrependida nunca fui

ontem por duas vezes meu cu foi extrema-unção

Mártir dos filhos de deus

desamparados

com seus paus duros, meia bomba, broxas

Grande Deusa

mãe das putas condenadas

vos suplicamos

Não queremos as alegrias da vida eterna

"engole essa porra"

"chupa gostoso"

"te tiro dessa vida. Monto apartamento. Vira minha amante"

"mulher de vida fácil"

cospe

apedreja

mata

mata

cocaína

campari

cigarros

gemer fingindo

apanhar na cara

assassinada

agredida

sem alma

E a música tocando tocando tocando

dinheiro

dinheiro dinheiro

Vênus,

protetora das prostitutas

concebidas sem pecado

Olhai por nós que recorremos a vós

nos conceda o beijo da salvação

Que assim seja

 

 

 

 

 

 

§

 

 

60 dias exilada em mim

não mais o emprego em que eu passava as tardes escrevendo poesias em blocos de rascunho

encontrando motivos para continuar além do ticket de 550 reais e o brownie de nutella que eu comia todas as quartas

não mais o uniforme que me deixava com cara de secretária de filme pornô amador estrelado no redtube

não mais você que se despediu de mim num quarto de motel

a lembrança do seu hálito corrosivo e do perfume de infidelidade

Agora eu desliguei todas as luzes

dentro do meu peito uma cidade silenciosa

fecharam-se as portas dos bordéis

profanaram o santuário

Eu passo os dias esperando pela sessão da tarde e entre um intervalo e outro me masturbo patética e a cada gozo eu choro

60 dias exilada em mim

esvaziaram minhas reservas de amor

eu sou um bicho morto

Não mais a poesia

eu fracassei

eu errei na vida

Agora o gás está ligado

e minha cabeça dentro do forno

estou sentindo cheiro de flores

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Em mim uma mulher está se afogando.

Percebo seu riso triste e resignado

quando ela me olha e diz:

— O amor, Ingrid,

Tem uma graça sulfúrica.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

No meio da multidão, o que não havia morrido

Cercado por tudo que já mataram,

Sua lágrima era uma ilha

Deslizando no oceano da cara.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ingrid Carrafa é escritora e atriz capixaba. Tem poemas publicados em várias antologias e revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de poemas Entre rosas e abismos (2015), pela editora Penalux e Não joguem pedras na Geni (2016), publicação independente.