©michelangelo buonarroti | moisés, mármore, detalhe | 1545
 

 

 

 
 

 

 

 

Correnteza

 

 

Meu pai não me falou da correnteza

e nem das tantas pedras que há no fundo.

Se nada me foi dito com clareza

o mar tampouco foi menos profundo.

 

Existe no silêncio a natureza

das coisas que nós vemos num segundo.

E aquelas que não vemos, com certeza,

não gritam para nós, mas para o mundo.

 

Meus pés foram sentindo, lentamente,

a areia movediça do acidente,

e a fala me saía pelos braços.

 

Mas eis que me aparece, de repente,

o mar, a correnteza, novamente,

e eu volto à praia por meus próprios passos.

 

 

 

 

 

 

As costelas de Michelangelo

 

 

Não há Deus me conduzindo

nessa estrada sem semblante.

Deus é grande, Deus é lindo,

mas meu pneu tá na jante,

 

de tão gasto, quase findo

— e no entanto sigo adiante.

Não há Deus interagindo

(seu silêncio é o de um gigante).

 

Belíssima criatura

na abóbada da capela.

Parece até que está viva!

 

Michelangelo, a pintura

que fizeste com as costelas,

eu a escrevo com as gengivas.

 

 

 

 

 

 

Ascese

 

 

                            A Dea Conti

 

 

A luz do quarto sempre esteve acesa

apenas pela manhã.

Com que brancura a sua natureza

nacarada de romã

 

entrou pelas janelas, pela entrada

da cozinha ou da fruteira,

envolta em uma nudez iluminada,

notívaga cerejeira.

 

Os passos, em silêncio de escultura,

fizeram com que a luz, antes escura,

fulgisse no seu corpo, feito a ascese

 

da carne desejada pela insônia,

em meio a uma extensa cerimônia

que alcança esta manhã, tão clara e breve.

 

 

 

 

 

 

Adagietto

 

 

Entre um movimento

e outro

há um líquido que parece

estar parado — como se

fosse possível a um líquido.

Entre uma margem

e outra

o elevador transita em silêncio,

com seu fundo falso

e pesado.

Há uma luz amarela

que parece iluminar e enferrujar

a música.

Entre uma vértebra

e outra

vai a dor amortecendo

o coração.

Há um tanto de cóccix

entre os olhos marejados

de velhice súbita.

Entre uma água

e outra

há o casco do navio

em movimento.

 

 

 

 

 

 

Bênção

 

 

Num sonho de aguardente sinuoso

o rosto de meu pai navega em flores

dançando ao som de um canto mais viscoso

que o excesso de suor, calor e cores.

 

Sem corpo, uma cabeça esquece o busto

e apenas o que fica na cabeça

a máscara, seu rosto, — a face a custo

é mesmo a de meu pai, que eu não me esqueça!

 

Tentei fugir do sonho ou do cortejo

e a fuga de meus olhos, eu, que vejo,

a morte do meu pai sem coração,

 

se fez indecifrada na memória

e nada mais se segue dessa história:

um sonho, e feito um sonho, um pai sem mão.

 

 

 

 

 

 

Integridade

 

 

Se não posso

ser outro ou simplesmente

ninguém — no máximo

o vivo ou o morto —,

que eu seja inteiro

feito a mancha

do sumo de uma manga,

encarnada numa camisa

branca.

Fixo e caminhável,

às vezes recolhido,

às vezes bordejando ao vento;

que eu seja, enfim,

o fruto desdobrável,

a mancha que é rasgada

pelo tempo.

 

 

 

 

 

 

Interno

 

 

Há quem procure

tatuagens em meu corpo.

E quando olham nos meus olhos,

é para ver se estão vermelhos.

Há quem procure drogas

em minha casa,

nas gavetas ou dentro

da geladeira.

Há quem procure comprimidos

atrás dos livros

ou sobre o criado-mudo.

Há quem pergunte

se ouço vozes,

na esperança de ouvirem

minha voz dizendo que sim,

que ouço vozes.

Há quem procure saber

se já fui preso algum dia,

depois de ter sido preso cinco vezes,

desde a gravidez de minha mãe.

E quando perguntam do que gosto,

entre excitados e gostosamente medrosos,

esperam ouvir seus desejos

os mais recônditos, escondidos

atrás de elefantes de louça

com as trombas viradas

para a direita da sala.

E quando cansam de procurar

tatuagens em minha pele, passam

tomografia, ressonância magnética

e psicanálise.

(Eles sabem que hemogramas

não acusam as pinturas

de William Blake).

Há quem procure outros

internos ao meu redor.

Mas eu já disse, inúmeras vezes,

que eu moro sozinho.

 

 

 

 

 

 

Autorretrato

 

 

Sempre ausente,

posando

para um outro

retrato.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Henrique Wagner nasceu em Salvador, Bahia, no ano de 1977. É poeta, crítico de literatura e teatro. Publicou alguns livros de poesia, entre os quais, A história decalcada.