©josué gonzález
 

 

 

 
 

 

 

 

Travessia

 

 

                            Para Fernanda Tavares

 

 

                            "The sky is his crystal cathedral

                            And dawn is his altar to God".

                                               - Vachel Lindsay

 

 

das travessias múltiplas que se pode fazer

caminhamos sobre o sol

e por de sobre o sol caminhamos até escurecer

até o adormecer na cama de UVs

sob o cenho da pele

sobre a maré dos polos  de andrômeda

na travessia centáurea

de patas por sobre o sol

 

de todas as travessias múltiplas que se pode fazer

caminhamos sobre o sol

sobre a maré do sol onde se encena

a eternidade, seus afazeres

sem anjos ou deidades

onde se encerra

a humanidade

de carne, de chumbo ou de algodão.

 

das travessias múltiplas que poderia fazer

somente a uma não renunciei

quando a terra já sempre caiu sob o sol

sob o sol que envelhece

sobre o qual caminhamos.

 

 

 

 

 

 

Cosmologia

 

 

                            Para Alexandre Pereira

 

 

a Terra de água não é feita

mais que a água é feita da Terra

por isso seu nome erra

em vacâncias do que se lhe afeita

 

nas mãos a vacância se aferra

água e Terra se ajuntam aos dedos

põem fim à palavra-degredo

renunciam o nome desterra

 

na boca só tem água turva

e vacância de sons ansiosos

por abrir seu próprio encerro

 

somente o espalmo em descerro

para fazer a colheita da chuva;

seus afluentes silenciosos

 

 

 

 

 

 

Da falta que lhe faz

 

 

das coisas que resplandecem

de dentro do abismo do Ipiranga

o que foi que lhe faltou?

abafado o brado voraz

do breu que te reflete

não lhe faltou

nem risos das castas

heroicas de chicotes

que ostentas em riste

também não lhe faltou

o que foi que lhe faltou?

seria o berço de tuas

crianças plácidas e pálidas

de américas refutadas turbulentas

ou o céu da pátria em cinza de tormenta

isso também não lhe faltou

algo decerto lhe faltou?

falta-lhe sobras do seio

de liberdades negadas

também não lhe falta

falta-te o som do mar

profundo de dores de outrem

que te embalam o sono

também não lhe falta

falta-lhe glórias do passado?

falta-lhe clava forte

paga em vermelho

para o sangue azul —

você que adora a morte! —

o que foi que lhe faltou?

 

salve! salve-te do abismo

de tua face pálida

em cujas margens plácidas

precipitas o verde-ouro

do couro das gentes

 

é só o que lhe falta.

 

 

 

 

 

 

Incogito

 

 

nunca eu sou todo agora

me apego a velhos conselhos

dispenso novos concílios

deixo pra dar no que der

vai dar no que se deixar

 

não atino pro presente

sumo fato quebradiço

sumo no espaço e decanto

memórias a estarrecer

 

eu sou todo intransigente

desaceito o transponível

recato tudo imóvel

transpiro contra o infinito

 

resta que sou desatento

todo de velhos concílios

deixo a ti novos conselhos

pra dar no que se deixar

se der pra ti vai que dá

 

 

 

 

 

 

Moscas Volantes

 

 

                            "Rise after rise bow the phantoms behind me".

                                                                           - Whitman

 

 

Dizem que o visto não pode ser desvisto

o que se viu, uma mancha na memória

mas a retina transforma em moratória

o não visto comprovado pelo visto

 

Do que não se viu não se conta história

e a história que se conta não diz nada

e mesmo com moratória assinada

é inválida qualquer oratória

 

O que não se viu é quase um cisto

quase que uma insígnia expiatória

quase uma sina estagnada

 

Quase que a vista se lesionada

o não visto que se dá imprevisto

quase visão premonitória

 

 

 

 

 

 

Teremim

 

 

                            Para Pierre Kuster

 

 

Sei bem o que é alma,

algo que resulta dos

ruídos invisíveis

dos choques assombrosos

dos mínimos indivisíveis,

 

é ordem desordem

do tempo dos choques

o assombro nas mãos

o tamborilar pelo espaço

 

das formas sombrosas

que escrevem aos ouvidos

 

o choque invisível

aos olhos atentos

(perco as palavras)

a alma a escorrer-lhe

pelos dedos.

 

 

 

 

 

 

Do chão

 

 

Dos campanários não se vê rachaduras no céu. O breu que recobre o leste estende-se por todos os pontos aniquilando os ventos da rosa.

 

Não há rachaduras no céu

dos campanários edita-se

obsolescência

de areias,

pêndulos e cucos

sobretudo os cucos

e os galos.

 

Da imensa presença noturna não

se escutam trovões nem tufões

ou badaladas

é tempo noite

à força

e todos parecem mudos.

 

Dos campanários

já nem um suspiro.

 

Pode o sol rachar do chão?

 

 

 

 

 

 

Tanta coisa que eu tinha a dizer

 

 

                            Para Vina Barth

 

 

do vermelho ao verde é o novo tempo das epopeias

das jocosas palavras e das comédias

dos anseios imediatos e dos devaneios longínquos

 

do vermelho ao verde é o tempo que sobra para tragédias

para as medeias e as dores abruptas,

os receios soturnos e elegias longevas

 

do vermelho ao verde é o único tempo dos profundos silêncios

dos calados carregados de quatro olhos mil

das quietudes remansas ou remorsos semblantes

 

do vermelho ao verde

e eu sumi na poeira das nuvens.

 

 

 

 

 

 

contrabatida

 

 

                            Para Lorenzo Bonicontro

 

 

ressona no peito o couro da ceifa

no vão das batidas a contrabatida,

(um silêncio contrapartida)

a soma precária,

aos poucos, precária

(a conta é jamais remida)

um som de silêncio desdiz o audito

a cada duas batidas um interdito

(sem eco ou alento)

da soma precária,

que vaga, precária

(morrer é muito lento)

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Gustavo Jugend publicou Arabesco, seu primeiro livro de poemas e contos, pela Editora Urutau, em 2018. É mestre em filosofia pela Universidade Federal do Paraná, onde atualmente cursa doutorado.