©sirawit seengam
 

 

 

 
 

 

 

 

Nunca se olha um peixe de frente

 

 

: a garota se inclinou pra frente, um pouco dura, com o corpo quase todo: abaixou os braços, pacientemente, e não levantou: forçou e girou as duas imensas rodas da cadeira, com alguma dificuldade: não ter percebido antes a fatalidade: mas ainda antes, foi o peixe

: as escamas saem em movimento de bicho quando a gente joga pedra: a faca, usa de serra para isso sempre, anda a superfície de terra do corpo marinho de peixe: o sol alto talvez já ajuda a fritar ali mesmo no quintal, onde a mesa coberta de jornal fica só pra isso de ato final da faca: dar um fim pra pesca: por isso é bom jogar os descamados direto no gelo de volta, era o que sua vó dizia, esperava muito do sol

: tainhatainhatainhatumatum: peroá

: ali sentia o sal da água, que não tava longe, uns dez minutos pra frente, colando nos cabelos: quando virava o tempo de descamar pro de abrir aquelas entranhas marinhas, já sentia que era ela também mar, um enjoo preso no nariz, na boca, na garganta, quase como se matasse ali a si mesma naqueles bichos mortos e que cheiravam como ela: igualzinho: e cortando de cu até baixa-cabeça, se é que o nome é esse, chama assim porque é bonito, ê se é…

: ela chorava, mais pra lacrimejar, como cortar cebola, devia ser o sal ou o sol: não se corta peixe no quintal em dia de chuva, apesar de ter quem pesque: não chora quando chove, no sol quando corta, mas aí que tá, teve aquele dia

: atum: bagre: cação: agulha: espada: tainha: peroá: faca: escama

: aquele dia

: aquele mesmo dia que foi olhada pela garota se inclinando na cadeira, os olhos brilhando, com uma demora que já a tirava do mar por inteira: ela olhava fundo aquela falta em suas pernas, as faixas brancas: a garota falava coisas que ela não escutava: não era dia de chuva, era de sol mesmo, só que todo errado, sabia disso porque errou

: se cortou: não com faca, mas com barbatana, quase faca mesmo, mas de peixe: fala de peixe espada, mas pouca gente sabe que todo peixe é meio faca: tem peixe que é agulha também, os que têm ferrão: sangrou bastante: colocou a mão na boca pra chupar o sangue, tava um gosto de ferro, sal, uma coisa um pouco podre também, sentiu lagriminhas no canto dos olhos: quando a gente anda pode ser que a brisa não basta: o sol tá sempre lá, aberto e quente, cozinhando tudo, fritando os peixes ali mesmo na mesa onde sua mãe estava, no seu lugar

: por isso tem que jogar de volta no gelo

: caçãobagre: caçãobagre: cação: pequeno tubarãozinhoinho: bagremortal

: passa isso pra cá, que tem 'cê? nunca foi de errar: pois é, nunca foi de errar

: não seguiu a estradinha pra cidade nesse dia: seguiu o caminho meio sem estrada, passando no meio dos arames farpados, agora não importava, nada é como barbatana afiada pra manter a vida

: no tempo que a outra se movia dava pra colocar o mar inteiro

: o dedo pulsava

: sentou na mesa da cozinha com um copo d'água: enquanto bebia, ficou olhando mais pro dedo, o curativo tava meio avermelhado, será que tava sangrando mais?: levou pra perto do nariz e sentiu só cheiro de sabão: levantou da mesa e foi se jogar no sofá, deitada de barriga pra cima, com o dedo machucado em cima da testa e a outra mão pra baixo, tocando o chão: cantarolou, olhando pro teto, nããããoooo dá mais era uma briga em cima da outra ôôôô moçaaa não dá mais: sentou: olhou parada, igualzinha a peixe morto, de novo pro indicador: abriu um pouco as pernas, apoiou os cotovelos nas coxas e juntou as mãos, só com aquele dedo levantado: girou o pé, o direito, no chão, num círculo: pela janela o cheiro de sal e o sol entrando: nada pra fazer, ali, agora, aqui, então, no sofá

: peroá: porcodomar: um ronco de horr-ô: peroá: porcodomar

: nunca se olha um peixe de frente, só de perfil, uma umidade mais violenta

: ficou parada: não ter percebido antes a fatalidade: sentia latejar o dedo e o sol queimar, enquanto as rodas deslizavam pela varanda, saindo pra terra batida: as marcas das rodas que ela mal conseguia ver, aquele corpo se movendo com certa dureza, daquela garota, moça, mais nova que ela e suas pernas, que onde os joelhos em vez de continuar paravam, em faixas brancas, delicadamente atadas, não como o curativo mal feito do dedo

: olha que tem dias desse, onde as coisas giram devagar, onde pode dar tudo errado, porque não estamos acostumados com o ritmo, com essas falhinhas no dia: no quintal, todas as roupas no varal, nada pra lavar, um nada pra fazer: andou, a brisa vinha do lado do mar, bom, bom: passou os limites do terreno

: tinha nada com ela não: até ali tava tudo é bem, normal, ritmo de rede, acordou bem cedo e fez o café da casa, forte: fumou o cigarro na varanda enquanto o dia aparecia por cima da estrada que leva no mar: depois pegou a vassoura e varreu: quando a irmã acordou, partiu pra arrumar a mesa dos peixes, pegou a caixa dos que estavam gelados de ontem e começou: aí deu nisso

: tainhatainhanhanhanha

: e cada pouquinho que andava não podia mais voltar, não podia, não podia mesmo, porque vai que tudo dá errado: já depois de tanto pasto, o chão virava terra batida, tava lá uma casinha, pequena, com alguém sentado na varanda: correu: tinha alguém na varanda que precisava ser avisado que tudo, tudo podia dar errado e daria: com toda certeza daria

: em casa, lavou o dedo, o sangue escorreu pela água girando, uns peixiinhozinhos: fez um curativo: levantou o dedo e colocou contra a luz do sol que entrava pela janela: ficou olhando: mas que merda: depois foi pra outra janela e viu a mãe limpando os peixes: virou e foi batendo os dedos pela parede, sentiu o cheiro bom do almoço que a irmã fazia: olhou a panela: peixe: pra variar: os peixes não têm nome, só são, enquanto nadam o mar inteiro desconhecendo o perigo que vivem: o dedo latejava um pouco, parecia vivo, ou querendo ser vivo, como peixe na vara, nos dias em que, à toa, caem pra pescar sozinhas, ela e a irmã, finais de tarde: ou quando a rede traz em arrastão os peixes pulsantes do mar: corriam pra pegar o que restava, o que era inútil e sem lucro, as estrelas do mar de ponta quebrada, as águas-vivas transparentes e frias, conchas enormes e um bocado de outros bichos e coisas que não conseguiam conhecer bem

: atumbagrecaçãoagulhaespadatainhaperoáfacaescama

: conseguia ver que era uma menina, ali sentada, moça, mais nova que ela, uns cabelos compridos cor de mel: essa menina precisava saber: tirou o curativo do dedo e levantou: olha, foi o peixe!, gritou, o peeiixxee, o pe-í-xe, daqueles que já são um pouco eu, gritou: era mentira: ela que já era totalmente que nem eles: a garotinha parecia ouvir, só que sem entender, apontava com o seu fura-bolo intacto pros ouvidos, fazendo como se não entendia: ninguém conhece o perigo até que ele chega

: acendeu um cigarro e desceu pro outro lado do morro: nada podia lhe parar, não ali, com aquele dedo cortado, e aquela vontade de acelerar o dia: de empurrar, fazer descer rolando, mandar à merda, arrombar a marretadas: nunca foi de errar: pois é, nunca, até ali: soltou os cabelos e continuou andando: por baixo dos shorts, as coxas suavam: fresco: e assim foi, por um tempinho, longo, não dá pra contar bem, mas o sol queimava a pele um pouco bronzeada desde sempre: sentia e merecia

: ficaram como pedra: a outra, aquela garota, moça, mais nova que ela, pegou a sua mão cortada: a brisa trazia o sal até elas, enquanto o sol queimava: ainda podia dar tudo errado: dias de Sol, é, esperamos tanto

: tava quente, de cima de um morro viu, jura, mais ou menos, na verdade, viu o carro de sua irmã como um pontinho, mas sabia que lá tava aquele peixe que cortou o seu dedo e com ele apontou: no morro tinha um pasto verde, mas não muito verde, era meio amarelo, negócio feio, de longe ela podia ver o mar: sentiu mais daquele cheiro de sal, precisava daquilo, que cobrisse sua pele, que grudasse nos cabelos grossos do seu braço e da sua canela: fazia calor e tudo podia dar errado

: e o que veio do cheiro e gosto de sal e sangue, na boca, na pele, quando a outra ali parada na sua frente era tão real, com a falta nas pernas, tão pequena e dura, na cadeira de rodas velha, com ferrugem, enquanto a olhava com seus olhos de peixe tão maiores que os dela e perguntou, oi, qual o seu nome?, sorrindo, um sorriso que lhe era estranho, que lhe era impossível naquele sol onde ela tava no lugar errado: veio o enjoo ferroso de quem é peixe e se vê pego num anzol, preso no canto da boca, um metal pesado

: dedo doía

: não respondeu seu nome, mostrou o dedo ferido: foi o peixe

: sardinha: tilápia

: tilápia

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Guilherme Condimoura (Curitiba/PR) é pesquisador de literatura e artes, colecionador de bonecas, ex-futuro grande atleta e acidente fonológico.