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Anatomia da fala

 

 

Corto a palavra de ponta a ponta com um estilete

Ela se abre feito veia e derrama incontinenti

Clamores vermelhos, uma canção guardada de cor

Nunca antes pousada como pássaro implume

Em um caderno de escrituras

 

Um poema machucado de amarguras

Letras soltas como gritos mudos

Atiradas a esmo no que se define absurdo

Estende rimas no curso de mãos desnudas

 

[Palavra gótica, surreal, obscura, notívaga,

Amante de sombras difusas e partos natimortos]

 

Se disseco todo o alfabeto, separo Paulos de Albertos,

As Margaridas das Rosas, os jardins de mel

Dos invernos circunspectos

Sempre pintados de cinza-chumbo

Tiroteios se ouvem em todas as prosas,

Contos, ensaios, crônicas porosas

Estilhaços de alento, romances desarmados

Descem indefesos, folha por folha

Rios da vida adentro

 

Palavra, ora pro nobis

Ceia consagrada de uma bíblia

Profana, proscrita, maldita

 

Anatomia de discursos bandidos,

Trechos proferidos às escuras

Apenas com um estilete em punho

[Palavra, morre quieta, vai!]

 

 

 

 

 

 

 

Doação

 

 

Doa-se sangue, sono e órgãos

Doa-se comida aos pobres

Alívio para culpas lodosas

Doam-se bolsas família

Para esconder o dolo

 

 

Doam-se animais, antes de estimação

Juras de amor, antes eternas

Crianças a abrigos, velhos a asilos

 

Doa-se o ócio aos vícios

As lamúrias à inveja

A tristeza ao câncer sorrateiro

Mas doa-se ainda mais

 

Flores ao acaso

Sorrisos ao descaso,

Carinhos explícitos

A estranhos sem ninho

 

Doa-se também a vida

A quem a tornar mais querida

 

[Aos que curam em silêncio

Feridas magras e mudas

De corações que dão dó]

Doa-se a quem doer

 

 

 

 

 

 

Partituras

 

 

Acorda

Reverbera

Agarra o som que te move

A melodia que ondula em teu corpo

Tira a poeira desse silêncio morto.

Faz isso e escorrega por entre claves de sol

Ou quem sabe, segue o rastro das claves de Lua

Lua plena, crescente, nova

Lua abusada, grávida de horizontes

e engolidora de estrelas

Sim, pode ser uma oitava acima

Bem acima, aliás, do teto do mundo

Lá tudo é de prata

Até mesmo a música

que se esconde no assoalho dos segredos

E a que forra a terra dos humanos tristes

 

 

 

 

 

 

Capítulos

 

 

Quero uma palavra

pendurada em cada orelha.

algumas vogais salteadas

piercings de puro ouro

 

joias bailando suaves

em minhas narinas e língua

 

Exijo a "filosofia" inteira

em alfinetes de platina

 

Almejo que a cada parágrafo

eu me sinta mais menina

 

E que possa refletir

uma sobrancelha arqueada

 

Procuro um diamante

com a interjeição "oh!" gravada

lindo de tão solitário

exclamando em meu umbigo

segredos de um longo diário

 

Pesquiso frases inteiras

para adornar o meu corpo

dizendo o que mais não digo

 

Anseio por livre voragem

insanas páginas românticas

se alternando em cada braço

lavradas em pura prata

expondo desejos de aço

 

Quem sabe se tu leitor

um ourives literário

decoras com todo ardor

meu incerto itinerário

 

Ao tamisar o destino

peneiro terras molhadas

talvez eu descubra pepitas

histórias imaculadas

 

 

 

 

 

 

Salve a sua pele

 

 

Das noites sem lua, das terras sem sol

Das mãos tão vazias, dos sorrisos órfãos

 

Dê sua cara à tapa, à luz, ao vento

Às travessuras das crianças

Que adormecem dentro de você

 

 

Caia na pele da poesia

Do afeto alardeado

Da comunhão entre os povos

Da breve flor anunciada

 

[Entre na pele dos desejos,

Solitários silêncios vagos]

 

Sinta na pele o residual da superfície

O rosto que se embebe nas sombras

A luta que adormece exausta

E as alvoradas que não desistem de você

 

— O amor, você sabe, é uma questão de pele

De conseguir tocar, bem de leve

as delicadas tessituras da alma

 

 

 

 

 

 

Pontuações

 

 

todas as vezes em que

você escorre reticências por meus olhos

elas recendem a especiarias marinhas

talvez um caviar beluga

que se enfileire num colar

e atice sem pressa

minhas ávidas papilas

 

Todas as vezes em que

você polvilha virgulas em meus ouvidos

fico à espera de novos parágrafos

e da conclusão de mais uma história rendada

 

Todas as vezes em que

você despeja parênteses em minhas mãos

eu procuro cuidar de tudo

que não foi dito, mas intuído

 

(e então principio a trançar entrelinhas)

 

Todas as vezes em que

você me apresenta interrogações

eu procuro escolhê-las

como se fossem alfajores

 

e deixo-as rodopiar

em minha lânguida língua

como um dolente tango portenho

 

De todas as pontuações

os pontos finais e as exclamações

declararam greve e esconderam-se

provisoriamente das falas e dos livros

 

afinal a vida merece ser fluida, fluida, fluida

 

 

 

 

 

 

pianíssimo

 

 

senti — dó

ele deu marcha à — ré

ficou de — mimimi

eu disse — fá-la

mas preferiu ficar — solzinho

e — si calou

 

[não adianta bater na mesma tecla, eu sei]

 

 

 

 

 

 

Quero muito

 

 

Eu quero o outro lado da noite

Com a lua nascendo aonde o mar faz a dobra

E agarra peixe grande num abraço de sal

Eu quero vidros sem janelas

Um almoço sem pratos

Um sofá sem pessoas nem xícaras de chá

Quero ideais rasteiros aos montes

Pra furarem a terra e decretarem raízes

Quero tudo ao contrário

Quero ainda um amor sem asas

mas que seja forasteiro

Beijos sem boca, fecundos de línguas

 

Quero o outro

Aquele que ainda não nasceu,

Mas já brinca de rolimã e cavalinhos de gravetos

bem lá dentro

 

Nas bordas do útero do mundo

 

 

 

 

 

 

 

Eternidades

 

 

Quero morrer

Um pouco

Ao longo do dia

 

Mastigar os 60

Minutos espremidos

Entre as 2 e 3 horas

 

Os 120 minutos

Acotovelados entre

As 3h e 10 e às 5h e 10

 

Ir morrendo assim

Enquanto as horas

Passam encharcadas

De bocejos, tédio

Impossibilidades

 

Quero morrer assim

Quando a vida se

Esquecer de acordar

Para esfregar meus olhos

Com as cores do universo

 

Quero morrer de um jeito

Que ninguém perceba

 

Que eu liquidifique

As horas, minutos

E segundos em

uma grande jarra

 

Um suco arroxeado

Sem sonhos, nem sal

 

Quero morrer sem parar

Até a meia noite e vinte

 

É o único jeito de

No dia seguinte

Ao abrir os olhos

Eu ter a certeza

De que viverei

Para sempre

 

 

 

 

 

 

Palavras vazias

 

 

Palavras vazias são casas mortas

Caracóis escondidos, folhas secas

Árvores nuas, ventos ausentes

Mares sem peixe e sem sal

 

Os dias estão cheios de palavras vazias

Perdeu-se a fala, o sentido, os gritos

dos significados, a transparência

dos gestos e das intenções

 

Me vê um copo de cinismo gelado

Com três gotas de pura ironia

 

O dia de hoje é uma casca velha

De laranja bichada e jogada no lixo

Um chinelo furado largado no mato

Um mato sem saída e sem cachorro

 

Ninguém escuta ninguém

As palavras vazias são mudas

A esperança está de ressaca

E todas as crianças restam órfãs

 

 

 

 

 

 

Harmonias

 

 

Respire a vida com estética

Encantamentos, música e alegorias

Seja você um poema humano

repleto de versos nos gestos

 

Faça isso, leve danças

aos palcos do cotidiano

ainda que passe

por dias adversos

 

Vale uma advertência

vire o avesso do avesso

e entorne o caldo da velha

e falida rotina

 

Afinal, você sabe, só vive mesmo

quem lucidamente desatina

 

 

 

 

 

 

Português pra inglês ver

 

 

Ando muito subversiva

Quero adjetivar verbos

Substantivar predicados

Humanizar conjunções

E enxugar a empáfia

de advérbios e interjeições

 

Que tudo seja assim:

a gramática solta no ar

como andorinhas sem direção

sentenças sem gaiolas

nem coordenadas ou orações

de qualquer tipo

 

Valha-me Deus!

 

Ando muito subversiva

Quero dar um pontapé nos artigos

definidos, indefinidos ou bissexuais

 

E que "todos sejam todos"

no coletivo mesmo

 

Vou mais longe nesta

transgressão idiomática

Sinto ganas de passar

borrachas nos dicionários

das polissêmicas metalinguagens

 

Os lexicógrafos que me perdoem

mas enterremos logo

os velhos e estéreis significados

que já morreram e não sabem

 

Adeus semânticas empedernidas

Até não mais ver

sintaxes ensurdecedoras

 

Ando muito subversiva

 

Quero que o capital se renda ao amor

a ganância torne-se perdulária

 

E que as vaidades outras

asfixiem-se na própria

vacuidade narcísica

 

Vamos criar outra língua?

Lets try together!

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Graça Taguti. Poeta, contista, cronista. Jornalista, publicitária, professora universitária e de MBAs. Mora no Rio de Janeiro.

 

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