©paweł ludziński
 

 

 

 
 

 

 

 

Enquanto o resultado não vem

 

 

Durante uma semana convivi com a possibilidade de ter um tumor no cérebro. Embora fosse apenas uma possibilidade, um tumor é um tumor, um cérebro é um cérebro e uma possibilidade é um monstro sanfonado na cabeça de uma pessoa pródiga a fantasias, tanto boas quanto ruins (a moeda unilateral não existe). Por sorte, o tumor não se confirmou. De qualquer forma, durante dias convivi com esse fantasma e acabei percebendo algumas coisas.

 

É maravilhoso tocar a ponta do nariz com o dedo. O primeiro exame que um neurologista faz para analisar a hipótese de tumor é um pequeno apanhado de testes práticos que verificam se todas as áreas do cérebro estão funcionando, se nenhuma delas está sendo comprimida e danificada por um corpo cancerígeno. Não estamos falando de tocar O Bife no piano, mas de coisas simples como tocar a ponta do nariz com o dedo. Simples? Foi só a médica cravar os olhos no meu indicador que percebi a complexidade do gesto, o GPS mental que trabalha para atingir, em meio a tantos outros destinos — ombros, queixo, bochechas, boca — esse pequeno entreposto de pele e cartilagem em meio ao vasto universo. Depois de uma longa viagem de um segundo, meu dedo atingiu seu destino. Agora por favor, Giovana, ande em linha reta. Siga a ponta desse lápis com os olhos. Seu esfíncter está funcionando? Mando a pergunta para ele, que me responde com um amigável aperto. Fico aliviada, penso em me oferecer para dar uma pirueta, mas minha cabeça segue com a dor atípica, meu ouvido segue zumbindo, e sou encaminhada para uma ressonância.

 

Que otimismo lindo. Comprou onde? Devo esperar uma semana pelo resultado. A dor e o zumbido aumentam. O Dr. Google vaticina: são sintomas de câncer. As pessoas a minha volta dizem que preciso ter otimismo, óbvio que não é nada grave, e eu me interesso por esse artefato exótico, de nome tão sonoro: otimismo, pergunto onde posso arranjar um, mas logo percebo que as pessoas vêm tecendo o seu há anos, que eu não devo ter feito o mesmo porque não devo ter habilidade para tal, e me conformo com as minhas mãos vazias.

 

Uma suspeita de doença grave também pode ser uma pesquisa de satisfação com a vida. Na lacuna do otimismo, entram perguntas. O que eu faria se tivesse poucos meses de vida? Largaria meu trabalho, aprenderia a surfar, me separaria do meu marido para embarcar numa vida de perversão? Com alívio, descubro que eu faria exatamente o que faço todos os dias, com as mesmas pessoas e do mesmo jeito, o que me faz pensar que venho fazendo escolhas certas e que deveríamos nos perguntar com frequência o que faríamos se tivéssemos apenas seis meses de vida.

 

Às vezes um novo par de sapatos é mais interessante do que uma viagem de volta ao mundo. E ainda trotando na possibilidade hipotética da morte iminente, penso em indulgências, no que eu faria com o meu dinheiro, pois como dizem por aí, nada se leva dessa vida. E então lembro de dois filmes. Em um deles um doente terminal resolve dar uma volta ao mundo, despedir-se da vida viajando e, de repente, isso me parece absurdo, eu tendo uma conversa pueril com algum desconhecido num café em Havana quando a alma em queda não quer soltar-se, mas prender-se, grudar como parasita no amor vertido pelas relações cotidianas. O outro filme me parece mais lúcido. A doente terminal resolve presentear-se com um par de sapatos vermelhos, ousadia nunca antes cometida, para então sentar-se com eles no quintal de casa e ouvir seus discos preferidos batendo as solas novas na grama com os netos correndo ao redor.

 

Estamos todos vivos, na mesma hora e no mesmo lugar. Pela primeira vez me dou conta desse fato estupefante: neste exato momento, no planeta Terra, todos nós estamos vivendo juntos o mesmo instante, a mesma magia de não saber o que acontecerá no próximo segundo. Só isso não seria suficiente para olharmos para os outros com mais simpatia?

 

Não somos treinados para ser demitidos dessa estranha empresa chamada vida. Vi em algum lugar uma médica dizendo que os ateus lidam melhor com a morte, pois os não ateus ficam até o último minuto de suas vidas negociando sua permanência com alguma instância superior. Mesmo assim, invejo os crentes. Talvez a ida constante ao guichê transcendental seja um pouco desgastante, mas pelo menos eles têm com quem falar.

 

Literatura também pode ser religião. E para onde corro quando não encontro Jesus? Para a minha estante, para o sujeito que para mim é um deus, Roberto Bolaño, e então me acalmo e me emociono com seus ensaios sobre doença escritos quando ele estava perto de falecer por insuficiência renal, e com ele descubro duas coisas curiosas: 1. doentes terminais têm vontade de fazer sexo. 2. é possível ver a vida com um certo humor até o limite dela.

 

É complicado pensar em uma música para enterro, pois tudo soa exageradamente vivo. Ainda no delírio da morte hipotética, ouço rádio e penso em possíveis músicas, e percebo que sempre cantamos o amor, nunca a morte. Não há letra que se encaixe num ataúde e toda melodia soa patética perante o silêncio estrondoso da partida.

 

Uma mijada num banheiro imundo pode ser uma glória. Uma semana depois, pego o resultado do exame. Nada grave, apenas uma nevralgia occipital. É meio-dia, sol a pino no laboratório em frente à Marginal Pinheiros. Com o envelope na mão, caminho até o posto de gasolina ao lado. Entro na loja de conveniência, pego uma pequena garrafa de espumante para comemorar. A bebida é doce, vagabunda, mas viro. Depois, vou caminhando até o banheiro do posto. Percebo que, embora já esteja meio bêbada, consigo andar em linha reta. Também percebo que meu dedo dirige-se com precisão até o botão da calça, que meu esfíncter não solta nada que não seja requisitado, que meus olhos seguem a folha de papel higiênico, que minhas narinas decodificam o cheiro de mijos diversos no ar. Sim, eu estou saudável. E, como Zeno, o personagem hipocondríaco do Italo Svevo, provavelmente nunca sofrerei de doença grave, pois minha ansiedade se antecipará ao desenvolvimento de qualquer uma delas. Louca, digo para mim mesma, me olhando no espelho quebrado do banheiro. Mas pelo menos uma louca apaixonada pela vida.

 

 

 

 

 

Idiota outra vez

 

A coisa toda começou com um livro que apareceu quando eu trabalhava numa seção de achados e perdidos. Era muito comum as pessoas perderem livros, mas esse chamou a minha atenção porque a capa não tinha quase nada, só uma palavra escrita num canto. E dentro tinha a imagem que, por muitos anos, ficou na minha cabeça: um homem girando com um chapéu cônico e uma saia branca.

 

Não sei de onde veio o meu fascínio por essa foto — se eu soubesse, acho que o fascínio deixaria de existir —, só sei que às vezes eu ficava muito tempo olhando para ela, investigando cada detalhe, como se ali houvesse algum segredo. A partir desse livro, acabei procurando outros e, alguns anos depois, quando consegui juntar dinheiro para fazer uma viagem, me mandei para a Turquia.

 

Eu tinha só vinte e quatro anos e essa era uma das primeiras viagens que fazia, a última coisa que eu queria era descansar. Cheguei em Istambul no fim do dia, larguei minha mochila num albergue e fui para a rua. Depois de me perder um pouco, cheguei até o Chifre de Ouro, até uma das pontes que ligam uma parte da cidade a outra. Era difícil saber para onde olhar, porque tinha a paisagem, com aquelas mesquitas enormes, mas também tinha uma gentarada espalhada pelas ruas, subindo e descendo de barcos, ônibus, trens e comprando e vendendo desde burcas e sutiãs com enchimento até camarões vivos para servirem de isca.

 

Atravessei a ponte em direção a Beyoglu. Eu sabia que naquela noite tinha um ritual praqueles lados, e eu estava disposta a chegar cedo não só para conseguir um lugar, mas para especular tudo que pudesse. Embora tivesse o endereço, me bati um pouco para chegar. Quanto mais me aproximava, mais as ruas se torciam, se estreitavam, se aturcavam, indicando que eu estava em uma das regiões mais velhas da cidade.

 

Acabei encontrando o lugar quase por acaso. A porta estava aberta. Dava para uma antessala com algumas cadeiras e trechos do Masnavi, o maior poema sufi, escrito à mão nas paredes em várias línguas. Quem escreveu tinha uma caligrafia bonita. As letras, abstraídas de seus significados, pareciam ornamentos. Tirei umas fotos. Sentei, esperei. Outras pessoas chegaram. Depois de um tempo, um sujeito com um baita nariz apareceu nos fundos da antessala e disse: bem-vindos, a entrada é oitenta liras.

 

Avançamos atrás do narigudo por um corredor que dava num pátio. Em uma das laterais do pátio, tinha uma sala. Entramos. Estava escuro. Um menino de uns quinze anos começou a acender velas em castiçais espalhados pelos cantos. A luz foi descortinando o ambiente. A sala tinha um teto alto e abobadado e um tablado de madeira no centro. Sentamos todos em volta do tablado. De repente, ouvimos uma palma seca vinda não sei de onde. Os músicos entraram. Em seguida, entraram os outros, vestindo uma capa preta e o chapéu cônico. Um deles recitou alguma coisa que eu não entendi, e todos tiraram os casacos, revelando a saia que ia até os tornozelos. Depois formaram um círculo e, acompanhando a música, começaram a girar em torno do próprio eixo, cada vez mais rápido, as saias subindo com o movimento, até ficarem esticadas como mesas em volta de suas cinturas. Senti inveja deles, porque eu tinha lido que à medida que os dervixes iam girando, iam alterando seu estado de consciência, libertando a mente do corpo e sentindo aquilo que todos nós gostaríamos de sentir: que podemos ser eternos.

 

Quando a cerimônia acabou, eu estava emocionada. E puta, porque não tinha conseguido filmar nada, as câmeras eram proibidas lá dentro. Fiquei de olho neles: todos saíram por uma mesma porta, fechada logo a seguir. Dei mais uma andada pela sala, depois fui para o pátio. Me esgueirei para dentro de uma porta que estava entreaberta, mas, para a minha decepção, era só um banheiro. Quando já estava quase desistindo de travar algum contato, vi um deles passando. Apesar da barba, que dava a ele um ar de mais velho, logo vi que devia ter no máximo trinta anos. Puxei assunto, perguntando se morava ali. Ele me disse que não falava sobre sua vida pessoal porque isso não tinha nenhuma relevância. Depois se desvencilhou de mim de um jeito meio brusco e sumiu.

 

O narigudo, que era uma espécie de segurança, veio até mim e disse que eu precisava ir embora. Eu era a única visitante que ainda estava lá dentro. Fui para a rua. Sentei no meio-fio, debaixo de um poste, e acendi um cigarro. Depois dei uma olhada no mapa da cidade, tentando descobrir onde eu estava e para onde iria. Alguns minutos depois, senti alguém passando por mim. Era o cara que eu tinha abordado lá dentro, agora vestido com jeans e camiseta. Fiquei olhando ele avançar pela rua. Depois de um tempo, ele se virou e gritou: você precisa de ajuda? Preciso sim, eu disse, você conhece algum lugar pra comer aqui perto? Ele pensou um pouco e falou: tô indo num, quer vir junto? Catei o isqueiro e corri em sua direção.

 

Ele me disse que se chamava Tirmik (não entendi se esse era o nome ou o apelido). Depois me perguntou de onde eu era, o que fazia, essas coisas. Respondi tudo, mas não devolvi as perguntas. A última coisa que eu queria era azedar de novo a nossa conversa. Quando ele ficou sabendo que era a minha primeira vez em Istambul, resolveu me explicar sobre a cidade, onde estávamos, quais eram as coisas que eu devia ou não devia fazer.

 

Acho que andamos bastante. Depois de descer uma ladeira, chegamos numa rua cheia de bares, de mesas com toalhas coloridas na calçada. Ele acenou para três caras que estavam sentados numa mesa. Fomos até lá, sentamos junto com eles. Eram amigos de Tirmik, pareciam gente boa. Esforçaram-se para conversar comigo, mas o papo não foi muito longe porque eles quase não sabiam falar inglês. Não achei ruim. O fato de eles falarem uma língua que eu não entendia me libertava de prestar atenção na conversa para observar tudo o que estava acontecendo à minha volta.

 

Lembro, e me sinto ridícula ao lembrar disso, de ter deduzido que, entre eles, Tirmik era o único dervixe. Nem sei bem por que deduzi isso. Talvez porque dois deles disseram que trabalhavam o dia todo e porque o outro, que se chamava Sercan e parecia o mais próximo de Tirmik, usava uma camiseta justa (e falsificada) escrita Dolce & Gabana.

 

Depois de comermos, Tirmik me disse que eles estavam indo para um outro lugar e perguntou se eu queria ir junto. Saímos os cinco a pé. As ruas estavam cheias. Boêmios indo e vindo ou apenas existindo parados na calçada. Entramos numa viela que tinha uma corda de varal esticada de uma calçada à outra, cada ponta presa na janela de um apartamento. O varal estava cheio de camisetas e calcinhas. Fiquei imaginando o desprendimento daquelas donas de casa, muçulmanas resignadas à vida urbana, exibindo peças íntimas para uma população de treze milhões de habitantes. Quando passamos por baixo do varal, Sercan chamou Tirmik, deu um pulo e bateu numa das camisetas. Tirmik tentou fazer o mesmo, mas, como era bem mais baixo que Sercan, não conseguiu, e os dois deram risada.

 

Logo depois, no final dessa viela, tinha uma boate. De fora, já dava para ouvir a música eletrônica, um bate-estaca duro e estéril, sem vozes nem efeitos para aliviar as cacetadas. Achei estranho quando, no hall de entrada, Sercan e os outros dois tiraram as camisetas. Ao entrar, vi que isso era normal. Quase todo o público da boate eram homens, mais da metade com o abdômen à mostra. O resto eram mulheres ou pessoas difíceis de rotular, como uma morena de vestido de franjas, muito mais feminina do que eu, exceto pelo bigode. A princípio, fiquei um pouco intrigada com tudo aquilo, depois passei a olhar para Tirmik com ainda mais admiração, porque eu sabia que, ao contrário das outras correntes do Islã, o sufismo, dos dervixes, respeitava a pluralidade.

 

Fomos para a pista. Eu queria interagir com Tirmik, mas estava difícil. Ele e Sercan não paravam de conversar, mesmo enquanto dançavam. Como a música era alta, eles precisavam chegar muito perto um do outro, tipo boca na orelha, o que para eles não parecia um problema, e sim um prazer. Também reparei que Tirmik estava animado. Uma hora saiu e voltou com bebidas para todo mundo, fez Sercan virar a dele de uma só vez. Bebi a minha e fui ao banheiro. Fiz xixi suspensa sobre um assento imundo (a noite é a noite em qualquer lugar). Quando voltei, Tirmik e Sercan não estavam mais na pista. Os outros dois estavam conversando com outros dois. Fiquei um pouco por ali, sem saber o que fazer, depois fui dar uma volta.

 

Um tempo depois encontrei, em uma sala de paredes estofadas atrás do bar, Sercan com uma mulher de uns sessenta anos. Tinha a pele meio despregada, uns olhos expressivos, e usava uma pulseirada que ia até o cotovelo. Não sei quem era ela, acho que alguém importante, a dona da boate ou alguma atriz, porque tinha um garçom ali perto só para servi-la. Ela deu um gole na champanhe e passou o dedo em um dos mamilos de Sercan, e depois enfiou o dedo na boca.

 

Fui procurar Tirmik, ele não estava em lugar nenhum. Passou um tempo e então encontrei-o saindo do banheiro, com as pupilas dilatadas e uma cara de quem tinha levado uma surra. Life is shit, me disse. E perguntou se eu queria tomar mais uma. Fomos até o bar. Ficamos encostados no balcão, bebericando e olhando as pessoas, até que resolvi ir embora. Ele esticou o pescoço para trás mais uma vez, para a sala onde Sercan estava, e disse que também estava indo.

 

Lembro da sensação boa que senti ao sairmos da boate: o ar fresco, o silêncio, o dia nascendo na cidade que eu mal tinha começado a descobrir. Falei para Tirmik onde ficava o albergue, perguntei como fazia para chegar até lá. Ele me disse que era muito cedo, o ônibus que eu deveria pegar ainda não estava rodando, eu teria que tomar um táxi. Eu disse que não tinha grana para isso. Ele disse que também não tinha para me dar, tinha gastado tudo em bebida. Falou que morava perto dali. Sugeriu que eu fosse para a sua casa e desse uma descansada até a cidade começar a funcionar.

 

Continuamos subindo as ladeiras do bairro. Eu já havia reparado que Istambul tinha muitos cachorros vira-latas, mas agora que as pessoas tinham se recolhido, vi que era muito mais do que eu havia percebido, era uma verdadeira população paralela. Naquela hora, a cidade era só deles, e eles aproveitavam, deitando nos bancos, no meio das ruas, mijando nas colunas, bebendo nas fontes, revirando os lixos. Perguntei para Tirmik de onde vinha tanto cachorro. Ele me disse não saber ao certo o porquê daquela cachorrada, mas tinha uma teoria: os navios. Todos os dias centenas de navios aportam em Istambul, praticamente todos trazendo algum cachorro na tripulação. Animais de estimação que saem com os marinheiros do porto de origem ou cães vagabundos que os marinheiros pegam nas cidades por onde vão passando. Quando o navio aporta, alguns fogem de bor- do, outros são despachados, aumentando o contingente de vira-latas na cidade. Olhei para um casalzinho que estava trepando na soleira de uma loja, ele com as patas bem cravadas nas costas dela. Pensei que talvez ele fosse espanhol e ela chinesa, que talvez não estivessem entendendo nada do que o outro estava latindo, e achei romântico.

 

Logo depois chegamos no prédio de Tirmik. Ficava no alto de uma ladeira e estava caindo aos pedaços. Enquanto subíamos, ele me contou que, um dia, haviam sido bons apartamentos. Depois foram picotados, transformados em quitinetes, mas ainda tinham uma vantagem rara. Ao abrir a porta, apontou para a janela. A janela ia do chão ao teto e era circundada por uma varanda muita estreita. Passamos para o lado de fora. Tive a impressão de estar no ponto mais alto da cidade. Dali dava para ver um monte de casas, prédios e mesquitas encarapitados nos morros e, cortando tudo isso, o Bósforo, azul na luz do dia.

 

Ficamos um tempo olhando para fora. Depois ele entrou, foi pegar alguma coisa para gente beber. Virei-me e percebi que no canto da sala tinha uma saia branca em um cabideiro. A saia parecia uma cúpula de um imenso abajur. Aproveitei a oportunidade para finalmente tocar no assunto. Apontei para a saia e disse: te admiro por isso. Ele deu uma gargalhada. Você acha que sou dervixe, não acha? Claro, eu disse. Sou só um bailarino, um bailarino pago pra fingir que é dervixe. Acho que olhei para ele com cara de quem acordou de repente, porque, em seguida, ele disse: desculpe te decepcionar. E depois de um tempo, continuou: sei que não é um trabalho muito honesto, mas a grana é boa, e eu tô juntando dinheiro pra mudar daqui. Você sabe como é a Turquia. Se até as mulheres sofrem preconceito, imagine uma bicha bailarina.

 

Depois, vendo que minha curiosidade ainda não estava saciada, ele me contou um pouco mais sobre os dervixes. Disse que tinham sido banidos da Turquia por Atatürk, em 1925, como parte das reformas para ocidentalizar o país (até aí eu sabia) e que, desde então, a situação deles nunca mais se normalizou, eles só praticavam os rituais em casa ou em lugares muito escondidos. O que eu tinha visto eram os shows que rolavam por uma questão de demanda turística e que nunca incomodaram ninguém, de tão falsos que eram. Olhei bem para ele: então quer dizer que você não acredita... Nem em Deus, ele me disse. Me debrucei na varanda. Acendi um cigarro. Fiquei ouvindo as vozes que vinham dos alto-falantes das mesquitas, chamando os fiéis para a primeira oração do dia. Puta que o pariu, tô me sentindo uma idiota, eu disse, e não é a primeira vez, sempre caio em tudo que é história. Ele riu. Depois disse: melhor ser das pessoas que acreditam em tudo do que das pessoas que não acreditam em nada. Tentei formar uma opinião a respeito, não consegui. Já eram quase sete da manhã e eu estava chumbada. Apaguei a guimba num cantinho da varanda, fui até o sofá e capotei.

 

 

 

 

 

A teta racional

 

 

Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. Ajeito a peça plástica em volta do mamilo, aperto a válvula com força, vejo o leite esguichar pela cânula e cair dentro da mamadeira. Eu poderia fazer isso de olhos fechados. Poderia fazer isso de olhos fechados assobiando o hino do Brasil. Faço isso quatro vezes por dia, cinco vezes por semana. Depois guardo a mamadeira na geladeira da copa e, à noite, volto para a casa carregando os frascos a tiracolo, como um entregador de leite. No dia seguinte, a babá serve tudo para o meu bebê.

 

O meu chefe bate na porta e pergunta se vou demorar. Mais uns dez minutos, eu digo. Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e tento mentalizar coisas que despertem o meu amor, porque uma amiga me disse que o amor estimula a produção de ocitocina e isso faz o leite fluir mais rápido. Penso no meu bebê, nas covinhas dele, e começo a sentir um negócio no peito, um negócio que me deixa toda animada porque é forte, funcional, produtivo, um amor funcionário do mês que vai estimular o meu corpo todo, e já sinto os dutos se enchendo de novo, a válvula chiando, a peça plástica pressionando, o leite esguichando, um barulho ritmado, um cântico de adoração à teta, tchof tchof tchof, e então o babaca do meu chefe bate na porta de novo pedindo que, quando eu sair do banheiro, vá direto para a sua sala.

 

Meu mamilo brocha. Eu juro por Deus, ele brocha. O bico, que estava duro, amolece e se retrai, deixando clara a sua recusa de trabalhar em tão precárias condições. Puxo-o para fora, mas, como se fosse revestido por uma mola, ele volta para dentro.

Lembro de uma cena que vi um dia. Uma cadela estava deitada na calçada, amamentando. Os filhotes se revezavam nas tetas. Uns mamavam, outros brincavam com uma lixarada jogada ali perto. Quando eu estava voltando para casa, vi a cadela deitada no mesmo lugar, as oito tetas esparramadas, alguns filhotes mamando, outros brincando, tudo igual, com a única diferença de não estarem mais sob a luz do sol, mas de um poste.

 

Eu limpo o mamilo, guardo a teta, fecho a blusa, solto a trava de segurança, desrosqueio a válvula, tiro o receptáculo, desencaixo a cânula, derramo o leite num frasco, anoto a data num adesivo, colo no frasco, esterilizo as peças, guardo tudo na bolsa de amamentação e saio do banheiro.

 

No caminho para a sala do meu chefe, paro na copa e guardo o leite na geladeira. Depois olho no relógio: sete e meia da noite, hora de eu ir.

 

A porta da sala dele está aberta e eu entro, dá licença, você quer falar comigo? Meu chefe diz que sim. Sabe aquele cartaz de Natal que você fez para o shopping? Eu faço que sim com a cabeça. Pois é, eles não gostam da foto do Papai Noel, acham que o velho tá muito... murcho. Penso em dizer que todos os velhos são murchos, é uma commodity da categoria, mas nem perco meu tempo. Digo tudo bem, amanhã troco a foto. Meu chefe diz que não, tem que ser hoje, o cliente quer ver o cartaz pronto o quanto antes. Lembro ao meu chefe que o Natal é em dezembro e estamos em junho, por que a pressa? Ele me diz que sabe em que mês estamos mas todos os lojistas precisavam aprovar o cartaz. Levando em conta que são cem lojistas, até dá para entender a urgência, não é mesmo? Não digo nada, só baixo a cabeça. Olho para os meus pés num par de sapatos e, com tristeza, constato que não sou uma cadela. Digo ok, pode deixar que eu resolvo.

 

Já estou saindo da sala quando ele me pede para fazer um favorzinho, já que estou de pé, já que vou passar pela copa mesmo. Que eu traga para ele uma xícara de café com leite, com duas gotinhas de adoçante, se não é pedir muito.

 

Vou até a copa. Pego uma xícara, coloco na máquina, aperto o botão. Enquanto a engenhoca rosna depurando o grão, abro a geladeira e fico olhando para os meus frascos, para o líquido quase amarelo de tão denso, para os riscos que marcam os mililitros. Pego o último frasco que guardei, o leite ainda está morno. Despejo um pouco na xícara. Acrescento as duas gotas. Depois vou até a sala do meu chefe e entrego a xícara para ele, que diz obrigado e dá um gole. Eu pergunto tá bom? Tá ótimo, ele fala. Digo que bom, fiz com carinho.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Giovana Madalosso é autora de A teta racional (Grua, 2016), livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional, e do romance Tudo pode ser roubado (Todavia, 2018).