o casal arnolfini, de jan van eyck

 

 

 

 
 

 

 

 

LOUISE, UM ARMINHO

 

 

louise é um arminho.

como arminho, louise prefere

se entregar ao abate a

manchar sua casta lã

com a sujeira da rota de fuga.

e embeber sua branca lã

em seu casto sangue

— pensa ela — lhe confere

uma flor à lapela. uma rosa.

uma rosa liquefeita na neve.

um arminho, um líquen.

um arminho, uma floresta.

louise deixa-se prender.

assenta assustada ao colo da moça

de sorriso lasso.

a moça, igualmente branca — igualmente casta

lhe alimenta, lhe dá banho

várias vezes ao dia —

e não só uma.

o arminho, um camafeu

o arminho, a efeméride da lua.

a moça, um arminho. também uma tundra.

 

 

 

 

 

 

FRANKA, UM HAMSTER

 

 

um hamster agoniza procurando a saída

o labirinto é de madeira

mais rápido, mais rápido!

um hamster, um roedor

um hamster, um corredor de corredores

não se lê o inaprazível, você sabe que elas

sabem o que significa ostentar negligência

'sair daqui logo, sair logo, logo' repete a si

a sola do sapato goodshoe não quer pisar o chiclete goldenheart,

per supuesto, esse país é uma droga

mas ninguém está triste enquanto ainda puder

comer um espetinho de hamster com cerveja na calçada do supermercado

e ver o eletricista adicionar a manicure no zap

Um hamster poderia roer o labirinto em que está encarcerado

'Roa, a madeira é sempre macia para hamsters ajuizados!'

the hamster sprang out of its cage and ran

canta the kinks no rádio

sobre o telhado de uma casa da berlim oriental

em ramster os aviões da frecce tricolori colidiram em pleno voo

foi durante um show de acrobacias aéreas na base militar americana

com um eme é uma cidade industrial, com dois, uma banda de rock || industrial ||

a cerveja está quente, apaga o eletricista o nome da amiga eventual no zap

antes de voltar para casa. antes de. antes

ninguém de bom coração ama a germania

dentro da alemanha

 

 

 

 

 

 

MARTIN

 

 

martin não é um ponto de fuga

martin não é a romã dourada

martin vê a estrela pálida

e não a compreende

martin e sua carruagem de fogo

cáustica é sua fronte

díspares são seus cavalos

posso pensar em martin ao fim tarde

posso tangenciar sua pele à madrugada

quando martin pousa as rédeas sobre o peito

quando a lua dorme orgulhosa ao seu lado

então, silenciosa, sento sobre suas coxas

e sugo todo o sumo desperdiçado

morrendo outra vez

e outra

 

 

 

 

 

 

MARTIN — OS NOMES DOS PÁSSAROS

 

 

martin está muito feliz desde que se livrou de mim

andam dizendo que na junkie box do flamingos's bar

só escolhe mungo jerry, todas as fichas para "in the summertime"

me dizem: 'nunca vi alguém tão feliz' 'tão feliz longe de alguém'

'talvez até nós devêssemos nos afastar de você, hannah'

eu não sei, realmente não sei, como martin pode ser tão espirituoso

ele não para de falar

está o tempo todo falando sobre tudo

já fez até uma lista negra para nomes de pássaros

cuckcoo, melro, hawnk. buzzard — já não podem mais ser citados nem no atlas ornitológico britânico

nem wallace stevens ele perdoa

acho que martin realmente está muito feliz longe de mim

as cátedras lhe fazem muito bem

as princesas da disney

belle (a de beauty and the beast)

até ela lê direto do mandarim e muito lhe ama

muito aplicada usa até vestido com flores diminutas

martin realmente é muito espirituoso

muito sim

martin realmente merece ser muito feliz

L-O-N-G-E- D-E- M-I-M

feliz com sua orgulhosa amargura

 

 

 

 

 

 

MARTIN, SUA PARTIDA

 

 

na mercearia disseram que martin cheirava a hulha

quando deixou a cidade

vaguei por todas as ruas repetindo seu nome

os ladrilhos das calçadas, os paralelepípedos das ruas

nenhum deles simpatizou com minha face eivada por lágrimas

"quem é martin?" — se perguntavam rindo de mim

"foi martin mais surto de hannah?"

os portões rangiam quais cães que ladram

a torre da matriz chamou-me, chamou-me por anna

como se os agás de meu nome não existissem porque mudos

como se eu mesma não existisse porque muda

eu tinha, tinha mesmo que escrever

tinha que correr, deslizar o papel sob o lápis

escrever minhas extremas consoantes

(anima mea)

antes que sumissem desarvoradas ao encontro de martin

eu tinha que escrever, antes de subir a torre

martin partiu, encontrou sua medida áurea

martin partiu para sempre

levando a lua em seu alforje

me causando incompletudes.

 

 

 

 

 

 

SOLITUDES

 

 

benjamin diz que quer ficar só. para ficar completamente só,

vai ao bar para se encontrar com amigos que, como ele,

também gostam de ficar completamente sós.

 

reciprocamente sós, após muitas observações sarcásticas, fofocas, piadas,

repentinamente, todos calam.

é nesse átimo de silêncio, de 10 a 50 segundos de duração,

que cada qual encontra sua solidão.

 

laura tem cachos dourados escuros.

ela sempre soube que caramujos

são labirintos solitários. e que em labirintos solitários, dourados, escuros, há muito mais minotauros que heróis e mulheres razoavelmente belas, ébrias e encarceradas.

 

há muito mais minotauros em labirintos dourados escuros que em highways lisas e objetivamente negras. lisas, negras, de poucas e elegantes palavras são as highways. muito menos complicadas, por certo.

 

laura tem um touro no sofá da sala.

o touro lhe ferve a água do café na cozinha. na cama, o touro lhe penetra com seus chifres até a altura dos rins. até o amanhecer. o touro não responde a barbitúricos.

 

laura é solitária. ben é solitário. solidões paralelas se encontrarão no infinito. as transversais, como a de laura em relação a de ben, acabam por se encontrar numa finitude qualquer.

 

 

 

 

 

 

LO REYE DE ESPANCA

 

 

lo reye de espanca,

não escuto o rei.

de seu alto trono,

só vejo os pés-

que esmagam minha face.

vermelhos dentes de cão branco,

treinado para exterminar ciganos,

da romênia : os kaldarashs

iugoslávia: matchuanos

ibéria: calons

lo reye de espanca,

não escuto o rei.

sua cama é de ferro,

não deito em sua cama.

o que está além — ele mutila

o que está aquém— esgarça.

lo reye de espanca,

procusto,

ele encontra

sempre uma palavra um motivo

para esmagar. para morder.

para ladrar aos quatro ventos.

sou uma caravana de cobre,

ouvidos à prova de gritos,

retóricas e subterfúgios.

lo reye de espanca

espanca por entre pedras da estrada.

espanca enquanto fujo.

 

 

 

 

 

 

NIMROD

 

 

este é nimrod ele tem o pé-de-cabra

este é o homem que está perto da verdade

acima do everest acima da intenção do texto

acima das notícias

este é nimrod ele tem o pé-de-cabra

ecce homo ele não vale quarenta siclos

ele vive há mais de vinte séculos

subindo e descendo montanhas

movendo-as como nuvens

bebendo-as em sua sede de deserto

este é nimrod ele tem o pé-de-cabra

se a cabeça é a razão os pés são a alma

a alma é peixes voltados para si

em seu nado taciturno as escamas deslizam

sobre a areia escaldante do deserto

seus miolos fritam chips de batata

doce é seu pensamento

é tudo que consome durante a travessia

dos saaras de concreto

eis o homem ele é nimrod o bastardo

que rompeu o lacre da irmã ela ficou paralítica

com a pernas retorcidas como guarda-chuva alquebrado pela tempestade

este é o filho-da-puta que desposou a mãe

ela se enforcou com a teresa com que se foge dos albatrozes das misérias

o bandido que matou o pai carrasco

o nimrod que furou os próprios olhos

para não mais ver a verdade externa

para enxergar a verdade de si

este é o homem que está perto da verdade

acima do everest acima da intenção do texto

este é nimrod ele tem o pé-de-cabra

 

 

 

 

 

 

NÍNIVE

 

 

porque tu sabes, nínive, que de chumbo e cobre

são as garras e a mandíbula do cão do mar dentro do tigre

e que não há muralha ou açude que retenha a ira

do deus que suturou as moleiras

dos crânios que formam tua tenebrosa pirâmide

e que de tão furados seus olhos ainda mais enxergam

e de tão decepados seus braços ainda mais se erguem

indiferentes ao teu prejuízo, ao teu arrependimento

de chumbo e cobre, nínive, de titânio e prata

é a justiça do pai do homem e do homem

que abrirá teus flancos com a suname do tigre

corte suave como criança que singra com os dedos

a película de água parada em gamela abandonada pelo gado

tu bem sabes, nínive, que seja em quarenta dias ou cem anos

que a ampulheta será novamente tornada

e vagarás pelas margens do eufrates

faminta e imunda

a ponto de esquecer da iniquidade que por ora executas

tão faminta e imunda

a ponto de perdoares a ti apoteose e declínio

e seres somente esterco somente ferrugem

 

 

 

 

 

 

ANAGRAMA

 

 

o anagrama de ana

vi seu palíndromo no anúncio:

lindíssima irresistível seios de tungstênio bumbum de platina poliglota [pelúcia negra]

ARO 30 calói made in hanói

tenho tantas qualidades que nem sei por que fui virar puta. fone: 9544-7581

palindrogrâmica ana

ana vietinamita

ana: sashimi em mil lâminas

é preciso todo o kama sutra

é preciso toda a lista telefônica

toda grama selvagem

as suturas entre as montanhas

os caminhos entre as colinas

ana de arqueadas colunas entre as colunas as colinas da acrópole

ana a noroeste ana a nove pés ana a estibordo

volver al sur o revólver o azul

(mais lúteo) de ana

as comissuras (escorregadias) de ana

voltar ao fundo da terra ao magma original

para encontrar ana em ana em anna em hannah em.

 

 

 

 

 

 

TRÊS PASTAS E UM ÁS DE ESPADAS

 

 

três cavalos sobrevoam os telhados de berlim

o casarão do cosme velho é bombardeado

a amora equivale a 81 megatons

uma rosa é esmagada no bico de um flamingo no arrebol do atacama

o travesseiro não registra um sono tranquilo

há mais de um ano

em vigília, os pesadelos são as contas atrasadas

de um rosário desbotado

da pedra do arpoador se vê as patolas

do caranguejo escalar as paredes do vazio

jacas são descartadas assim que tocam à terra vermelha

king kong devolve à gaiola sua barbie verão

numa GF-523 empoeirada por toda

minha vida é interpretada pelos menudos

robby rosa oferta todas as neblinas da manhã de manhattan a diadorim

john cage metralha por 3'44 minutos

babel cai como uma princesa no capô do cadillac azul

joe the boss masseria não assistiu até o fim

o formidável striptease das irmãs gloria e limp stein

lucky luciano abreviou sua sorte

ás de espada era tudo que precisava para seu royal straight flush

as três pastas de dólares somem antes de chegar a polícia.

 

 

 

 

 

 

O CASAL ARNOLFINI

 

 

O Casal Arnolfini não receberá visitas esta tarde

Não há mais núpcias em suas noites

Os ratos no porão festejam sob a percussão dos tamancos da madeira sobre o assoalho

Eu sempre disse que o mofo é espesso nesta cidade

Não há futuro que se sustente nos pregos da parede

Antes, por duas vezes, eu vi a liberdade

Se espatifar antes de ser assentada ao chão

O Casal Arnolfini teve seus anos de núpcias

Antes da Senhora Giovanna se vestir de verde

Antes do Senhor Giovani se vestir de negro

Sim, eu vi a Paixão na moldura do espelho

Sim, eu vi a castidade se impor como o pavão

Mas um tanto estáticos eram os movimentos

Mas um tanto encenada era a redenção

E tão drástica a ruptura semântica

Que não pude crer em meus olhos pios

O Casal Arnolfini teve seus anos de núpcias

Foi num tempo tão próximo a este que a perspectiva se perdeu

E talvez seja preciso renavegar entre os naufrágios

E talvez seja preciso acentuar ainda mais os segundos planos

Até que a distância nos traga perspectivas que nos estendam a mão

 

 

[O Casal Arnolfini é o mais famoso quadro do pintor flamengo Jan van Eyck, pintado em 1434, e levou cerca

de 17 horas, 12 minutos e 3 segundos (incluindo o tempo de limpeza do pincel), para ser produzido.]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Fabíola Lacerda já publicou poemas em revistas de Literatura e participou da coletânea A noite dentro da ostra, organizada por Claudio Daniel (Lumme Editor, 2019). Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Pernambuco, é servidora pública e escreve como leitora, para homenagear os autores que mais gosta.