LIRA XXXVII

 

 

Na janela de vidro

Embaçada pela neblina da madrugada

O poeta procura por Marília: em vão.

 

No céu, a última estrela despede-se da noite,

Enquanto nos submundos homens sórdidos

Tramam a guerra do dia que virá.

 

Nos subúrbios, as crianças esperam

Por dias melhores: virão!?

 

 

 

 

 

 

A LEITORA

 

 

Sob a luz do abajur lilás,

A moça lia.

Conversava com

Machado de Assis e com

Clarice, e cantava com Cecília.

O silêncio das palavras

Reverberavam em seu coração,

Com a Olivetti do lado e

O rádio do outro.

Passado e presente

Entrelaçados na eternidade

Daquele instante,

Sob os auspícios

Do delírio noturno!

 

 

 

 

 

 

MAIO DE 68

 

 

Na Champs-Élysées, uma multidão

Empunha a liberdade guiando o povo,

Ao som de canções a iluminar a noite.

O delírio é palpável,

Como a utopia tomando o poder.

Um século de história

Revividos na intensidade

Daquele instante: éramos Maio de 68.

Onde está tudo isso agora?

 

 

 

 

 

 

TERRA VERMELHA

 

 

                   A Antero Santana (em memória)

 

 

Da varanda da casa do meu avô

A cidade se mostrava diante de mim

Guardada em seus mistérios.

 

Itanhém, Macondo e cem anos de solidão

Guardados em mim, de que falava

O escriba latino-americano.

 

Memórias de meu pai, avô, que

Me iniciou nas letras.

Livros na sala, fotos envelhecidas na parede:

O passado explica o presente!

 

 

 

 

 

 

MOTIVO

 

 

Escrevo porque a vida exige

E existe, renovada, a cada amanhecer.

Dores, angústias, sonhos, vitórias

São imagens, marcas que

Vão ficando ao longo do caminho.

E no entanto, a alma sonha

Em breves lapsos ritmados.

Em que versos, fotografias, lembranças

Ficaram perdidas a felicidade!?

 

 

 

 

 

 

QUANDO SAUSSURE CHOROU

 

 

A palavra pinta como Cézanne

Representa como uma escultura de Michelangelo

Emociona como uma sinfonia de Beethoven

Diz como os heterônimos de Pessoa

Liberta como a verdade de Sócrates

Na grande apoteose do gênesis escrita

Na linha do tempo da palma da mão!

 

 

 

 

 

 

A CARTA

 

 

A carta se perdeu nas areias do tempo.

De Bandeira a Drummond,

Rimbaud a Verlaine,

Cecília a Clarice,

Registros, letras e marcas atemporais.

Ontem, a grafia, a página escrita com devoção;

Hoje, a fria letra impessoal na tela digital,

A refletir o inadmirável mundo novo!

 

 

 

 

 

 

O SOM DO SILÊNCIO

 

 

Quando a noite cai, mergulho no âmago

Das palavras e em seus muitos sentidos.

O que querem dizer, que mistérios guardam!?

Preciso sentir o seu silêncio,

Navegar nas ambiguidades,

Na intimidade do meu mundo.

Bandeira, Drummond, Pessoa,

Palavras imortalizadas na alma e no coração!

Cecília, Clarice, Florbela: como na pintura

Iluminista da França revolucionária,

Conduzam-nos à liberdade,

À sustentável leveza do ser!

 

 

 

 

 

 

PARA LER UM POEMA

 

 

Para ler um poema é preciso

Apagar todos os conceitos,

Sobretudo os pré-conceitos,

Sem nada esperar das burocráticas regras,

Inclusive as gramaticais.

Romper com os ideologismos, ismos,

Etecétera e tal.

Mas se te sentires

Mais (demasiadamente) humano,

Com a transcendência e essência das palavras,

No infinito desejo da felicidade,

Então tereis lido

Verdadeiramente um poema!

 

 

 

 

 

 

RAÍZES DO BRASIL

 

 

Câmara Cascudo quis retirar

A pedra do meio do caminho

Para o folclore passar

E chamou Lampião e Maria Bonita.

Drummond consentiu e

Mario referendou

Com Macunaíma.

Da Amazônia,

O canto de Cobra Norato

Revelou as raízes do Brasil

Na longa noite

De lua cheia.

E assim foi se entendendo

A gente brasileira!

 

 

 

 

 

 

REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

 

 

Ao romper a manhã,

O povo ocupa as ruas

Na Cinquentenário,

Na Paulista,

Na Candelária,

No Farol da Barra.

 

Na esquina do café,

Uma moça entrega

Uma rosa ao soldado,

E logo várias rosas

São entregues em

Meio à multidão.

 

Na TV, Bethânia recita

Castro Alves e Pessoa;

E no muro está escrito:

Revolution!

 

 

 

 

 

 

POR QUEM OS SINOS DOBRAM

 

 

O pão não repartido

O menor abandonado

O filho que não retornou.

A paz perdida

O livro não lido

A carta que não chegou

O dia que não veio.

Vivemos, padecemos,

Ou sobrevivemos?

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Erivan Santana é poeta e cronista, natural de Itanhém/BA, mas vive em Teixeira de Freitas/BA há muitos anos. Titular da Cadeira 36 da Academia Teixeirense de Letras (ATL), estreou na poesia com o livro Para ler um poema (PerSe, 2018), do qual foram extraídos os poemas acima e que lhe valeu o Prêmio Destaque Poético 2018. É licenciado em Letras e mestre em Ciências da Educação e Multidisciplinaridade. Em 2019, lança uma coletânea de crônicas intitulada Tempos Sombrios: Instantâneos da Realidade, também pela PerSe. Sua poética é marcada pelo diálogo constante com a modernidade e pós-modernidade.