FILOSOFIA DE FUNDO

 

 

O bolso é um buraco costurado.

É um buraco.

O mar é um buraco cheio d'água,

que se olhando da beirada

parece o infinito, que é outro buraco.

O amor é um buraco.

E nada mais.

 

 

 

 

 

 

TRUQUE DO TÉDIO

 

 

                            (de como um negro observa os Cem sem, enquanto

                            os brancos refazem o pixaim evitando alisantes)

 

 

Tenho motivos para falar de amor,

mas não hoje. Hoje você fica.

Sem saber o que se passa no meu coração.

A faca, o canivete, a capoeira, o canhão,

instrumentos das minhas revoluções

não sairão às ruas cortando a noite,

instruindo gente a encher cântaros

na fonte sagrada da justiça.

Negros, assim, sentimos a sede

com outros sentidos...

 

As palavras, meus últimos argumentos

não serão proventos nos poemas

de poeta algum, nem de políticos.

E se acaso eu deparar no meu caminho

com um beija-flor, uma orquídea

ou mesmo com uma negra altiva

que me acene com intimidade, com carinho

... ainda assim, vou ter que estar sozinho.

 

E quando os mortos do meu povo,

que vivos seriam sendo desse inferno

juntos com os vivos deste inferno,

que mortos continuam sendo o meu povo,

me perguntarem se desisti, eu direi NÃO!

pelo contrário, continuo, ainda,

sendo a porta de serviço,

sendo colheita dos milharais,

sendo o negro que a polícia dá sumiço,

sendo a puta, o pivete, o maluco do hospício...

 

Tenho motivos para falar de amor,

mas na memória desses anos,

na angústia desses gritos,

a única força que restou foi a sabedoria

do ódio, foi entrar na sua alma

para entender a sua histeria,

tecer com os seus motivos a minha magia

e falar para as crianças, para os velhos,

para os negros da minha idade

sobre a arquitetura da sua maldade

e sem dúvidas alertar que

democracia racial, nunca mais.

 

 

 

 

 

 

RETRATO

 

 

Perdi o movimento

do ciclo

virei domesticado

bicho de circo

desprovido de sentido

e dialética.

Aceitei tanto as grades

que me transformei em jaula

e me prendi dentro de mim.

 

 

 

 

 

 

MORAL SEM HISTÓRIA

 

 

Como é que eu vou falar mal

do gringo lá da fábrica

ele até que é um cara legal.

Tem que ver no Natal:

tem a maior festa

para a nossa família.

Hora extra, ele paga dobrado;

vale, ele dá até metade do salário.

Não tô aqui pra puxar saco de ninguém,

mas acho que é o melhor patrão que já tive.

Agora, eu não sei por quê

que quando ele passa à tardinha,

fazendo a inspeção,

me dá uma coisa por dentro,

um negócio assim...

Uma vontade de agarrar, esganar,

torcer o pescoço dele...

parece até que ele é um ladrão, sei lá.

Mas depois passa,

porque eu sei, quer dizer,

eu acho que ele é um cara bacana.

 

 

 

 

 

 

LUAR DO AMOR DEMENTE

 

 

Viro fera, fico com raiva,

mas não sou mais

o bicho que eu era,

não sou mais aquela força

que com outro amor se supera,

mas desprezo quem espera

a hora da minha sangria.

O meu sentir tudo empedra

e se aparento por clemência,

com essas dores de amor,

e se choro, e se farrapos sou,

não sou eu que quero assim;

é o luar do amor demente

que me esfola por dentro

e estraga a minha arrogância,

é o luar do amor demente

que me consome em tormentos,

como uma criança e seus medos

como a paisagem e seus ventos.

 

 

 

 

 

 

AMOR PERFEITO

 

 

Os bons são amorais.

Melhores ainda, são os que

atrapalham  a produção,

rompem com o lucro,

na euforia vão fundo

até sufocar o outro

com um mofo arejado.

Amores bons

não louvam a dor

como quem cumpre

um destino,

não iludem, não são desatinos.

Mas amar enjoa a qualquer um

como a ressaca de um bom vinho.

 

 

 

 

 

 

JANELA

 

 

O mundo segue

nas alturas

e nós vivendo

nesta prisão

de vertigens.

 

 

 

 

 

 

MULHALHAS

 

 

Intransponíveis.

Pessoas.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Éle Semog "é carioca" de Nova Iguaçu, Vila Valqueire, Bangu, Leblon, Botafogo e Humaitá, tudo Rio de Janeiro e mais um tiquinho de vida por outras partes do mundo. Poeta e contista, militante do movimento negro. Tem formação acadêmica como mestre em História Comparada (UFRJ/PPGHC), analista de sistemas (SESAT) com especialização em administração de empresas (PUC-Rio) e pedagogo (UNESA).  Integrou o Grupo Garra Suburbana de teatro e arte de resistência; fundou e contribuiu com os grupos Negrícia Poesia e Arte de Crioulo e Grupo Bate-Boca de Poesia, Bloco de Afoxé Lemi Ayo, Jornal Maioria Falante e Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP). Integrou o Conselho Executivo do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH). Foi presidente do Bloco Carnavalesco Passa Régua de Bangu. Coordenou o I, II e III Encontros de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros. Foi membro da coordenação executiva do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-racial do Rio de Janeiro e da Comissão de Políticas de Cotas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Como escritor e militante da literatura negra brasileira, participou e/ou apresentou trabalhos em congressos, seminários, encontros, palestras e recitais em Portugal, Peru, Alemanha, Angola, Argentina, França, Nigéria e Burkina Faso. Foi incluído em várias antologias, nacionais e estrangeiras. Publicou, entre outros, Curetagem (poemas, Ed. do autor, Rio de Janeiro, 1987); A cor da demanda (poemas, Ed. Letra Capital, 1997 e Ed. Malê, 2018 2ª ed.); Tudo que está solto (poemas, Ed. Letra Capital, 2010); Guarda pra mim (poemas, Ed. Letra Capital, 2015).