©joel brochu
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Ela está cansada de ter de se desculpar sempre. Ou pelo menos de explicar que não gosta de cachorros nem de gatos. Até que suporta os felinos, pelo menos não os teme tanto, mas detesta o contato físico com eles, sobretudo quando passam o rabo nas suas pernas. Ô gastura, aflição, fica doida para lavar o local depressa, tem nojo da baba melada.

E quando dão para miar à noite, igualzinho ao choro de um bebê desnutrido, esfaimado e longe da mãe? Que agonia, aquilo. Fica aflita, tem vontade de buscar a gata que o pôs no mundo, esteja ela onde estiver, a fim de acabar com a consumição. Quem pariu Mateus que o embale.

Certa vez, ia fazer uma palestra em outro país e, já arrumada para o evento, calça de malha grossa azul-marinho, inventou de passar antes na casa de uma amiga. Desapercebida, sentou-se no sofá da sala. Ao sair, olhou-se no espelho do elevador. E foi aí que viu os pelos, os enormes fios brancos grudados na sua linda e bem passada calça escura. Tentou puxar alguns, mas nada de sair. Desapontada, teve vontade de chorar. Por fim, ergueu a cabeça, sentindo-se imunda, e foi fazer a palestra humilhada, coberta de pelos de gato.

A sua história com cachorros é bem mais séria. Devia ter oito, nove anos, e vendia verduras na cidadezinha onde nasceu. O quintal da casa dos pais era enorme e havia uma horta muito bonita, onde a mãe plantava hortaliças e alguns legumes. A rama de chuchu era tão grande que subia pelo telhado, cobrindo-o até à metade. Os suculentos tomates-maçãs enchiam um canteiro inteiro. Sem contar os jilós, maxixes, pimentões verdes. Havia alfaces, couves, serralha, almeirão, mostarda, acelga, taioba.

A mãe e ela levantavam-se quando clareava, para colher um pouco de tudo, até encher o balaio que ela quase não aguentava carregar. Tinham uma pequena balança em que pesavam os tomates, os chuchus e os pimentões. Faziam pequenos molhos com as verduras de folhas, amarrando-os com barbante fino. Terminado o café com farinha de fubá torrado, que ela adorava, passava a mão no balaio e ia de casa em casa oferecendo suas mercadorias.

Geralmente vendia tudo em duas horas, no máximo três, pois todos sabiam que as verduras eram fresquíssimas, sem nenhum agrotóxico, adubadas com esterco de boi e de cavalo, que ela mesma catava na rua com uma pá, depois da passagem das carroças.

Certa vez, uma mulher a recebeu furiosa, dizendo que havia sido feita de boba, ao comprar almeirão no dia anterior. Estraguei meu dinheiro, minha gordura, minha lenha, foi horrível, refoguei a verdura só para jogá-la no lixo, acrescentou. Ninguém conseguiu comer aquele fel, não. Atônita, a menina não entendeu nada, até se lembrar de que no canteiro de almeirão tinham nascido alguns pés de outra qualidade, sem que ninguém os plantasse, amargosos. Suas folhas eram um pouco mais largas, mas provavelmente a mãe se distraíra na hora de colher, misturando-as às do almeirão comum. Sem graça, deu à mulher um molho de couves, como indenização.

Mas ela não temia as compradoras insatisfeitas. Seu terror localizava-se numa rua específica, onde sua clientela era grande. Lá moravam as prostitutas da cidade, as suas melhores clientes, que além de comprar lhe ofereciam bolinhos, café com leite, todas extremamente gentis. Até hoje se lembra dos guarda-louças com prateleiras forradas de papel de seda colorido, onde se recortavam lindos barrados de florezinhas.

Ocorre que as filhas das prostitutas não possuíam a mesma gentileza. Duas delas descobriram que a menina tinha medo de cachorros e sempre que a viam estumavam dois ou três na sua direção. Um malhado, bravíssimo, ia ao seu encalço e nem sempre ela conseguia correr com a rapidez necessária, por causa do peso do balaio. Nessas ocasiões, subia nos postes de luz, atravessava cercas de arame farpado, escalava muros, sempre carregando o balaio, o coração batendo forte e o vestido empapado de suor.

Contava à mãe, mas de nada adiantava, pois só às crianças era permitido conversar com aquelas mulheres. A mãe lavava as mãos, fingia não ter ouvido. Ela não entendia o motivo do ódio das meninas. Era muito nova para se dar conta de que elas eram excluídas pela comunidade e que se sentiam perdedoras desde o nascimento. Algumas das garotas eram suas colegas de escola e provavelmente invejavam também suas notas altas, sua desenvoltura e seu prestígio com os professores.

Queria ser amada por elas ou pelo menos respeitada. Ignorava os olhares de deboche, as palavras ásperas ditas em voz baixa. Não atinava com as razões delas e redobrava a gentileza nos cumprimentos, mas quanto mais fazia, pior a situação ficava.

Ninguém sabia da existência de bullying naquela época. A menina não conhecia a palavra, mas foi vítima do mau tratamento durante três anos. Depois a tarefa de vender verduras na rua foi delegada ao irmão menor. O que nunca mudou foi o seu medo de cachorros, embora saiba que eles não eram seus inimigos e sim meros instrumentos de vingança das filhas das mulheres da zona. O fato de saber não regula as batidas do seu coração nem a descarga de adrenalina quando se vê frente a frente com os cães, especialmente os malhados.

 

 

 

junho, 2019