AMA

 

 

se por amor partido

tua alma tanto pesa

teu corpo exausto verga

e teus olhos já não suportam

o silêncio estacionado no quarto

Ama

 

se tua boca racha seca

teus dedos tremem vazios

tuas noites não anoitecem

e tua carne rompe na pele

chagas incicatrizáveis

Ama

 

se tua veia lateja incêndios

se a lua se tornou prescindível

se o perfume enjoa o pensamento

e tua fonte jorra beijos

em gelos e calafrios

Ama

 

não há nenhum outro antídoto

Ama

 

 

 

 

 

 

SETE VIDAS

 

 

emagreço nas lágrimas

de um choro insistente,

transbordo pelos poros

a urgência de ser toda

em mim

 

escoo

escorro...

agonizo como gato

inexperiente,

que gastou

todas as vidas

numa única paixão

 

 

 

 

 

 

RESOLVIDO

 

 

acordei mais cedo

arrumei a sala

lavei o cachorro

enfeitei a varanda

perfumei a rede

engavetei as contas

acendi velas mágicas

decapitei o ontem

achei o disco antigo

dissolvi as dúvidas

cortei as unhas

interditei o quarto

estiquei o lençol

despertei desejos

queimei o bom senso

exercitei sorrisos

afinei o violão

reli o kama sutra

costurei os sonhos

encomendei oceanos

quebrei o telefone

decorei três versos

rezei dez terços

passei o café

 

e você pensa que não veio

 

 

 

 

 

 

ESTÁ CERTO

 

 

Você pode o que quiser,

desafinar as orquestras das suas praças,

desligar o interruptor das suas estrelas,

embaraçar os caminhos dos seus planetas,

ignorar todas as conchas do seu mar.

 

Pode demolir os sonhos,

enganar a plateia,

dar ralas sopas aos pobres,

simular gemidos nas camas

e costurar disfarces de lantejoulas

nas revelações inevitáveis.

 

Pode pisar

nas suas intuições repentinas

e dizer que estão todas iludidas.

 

Pode embrulhar na cara

máscaras confortáveis

e fazer retrato instantâneo

na paz das cordas bambas.

 

Pode catar flores inodoras

nos jardins dos artifícios.

 

Pode sim.

 

Pode continuar dando socos

nas manhãs

que sugerem movimentos

aos estáticos

e manter as noites maquiadas de

"tudo bem"

nos travesseiros molhados.

 

Pode escrever poemas

sem semear o verso real

e esconder o gosto amargo

da fruta podre que mastiga,

arranjando desculpas perfeitas

para as estrofes desfiguradas.

 

Pode isso tudo

e muito mais...

 

Pode até dar rasteiras nos anjos,

arrancar a fé das suas asas

e dizer que não acredita mais

nos segredos que traziam.

 

Pode desbotar as tonalidades

de todos esses anjos

e sepultar os azuis

dentro de caixas plásticas,

por debaixo de lajes secas

por cima de lanças afiadas.

 

Mas ainda assim

você não pode muita coisa.

 

Não é capaz de esfriar

do meu peito

a chama que alimento acesa,

nem tirar da minha mão

o pedaço de Lua

que aperto.

 

Não pode estancar

a correnteza informal

das lágrimas que são minhas,

nem esconder a nudez

nos sorrisos que decido.

 

Não pode reverter nunca mais

o olhar que seus olhos derrubaram

nos meus,

nem derreter o sabor

das bocas coladas

no beijo que engravidamos.

 

Siga seu chão,

os caminhos estão certos

em todos os traçados.

 

Mesmo que eu veja

panos de teatros nos seus palcos,

acato

cada

ato.

 

Mesmo que os gritos

calem o eco nas montanhas

evidentes,

ouço nos vales

o surdo dos seus ímpetos.

 

Tudo está certo,

são suas as escolhas a si.

 

Mas não lhe permito

qualquer toque,

por mais leve que seja,

na minha alma exposta

no meu córrego livre

na viagem que em mim

faço ida

sem interromper com mentiras

de volta.

 

 

 

 

 

 

LAPSO

 

 

Onde estarão tuas luas,

eufóricas,

impregnadas de marés andarilhas?

 

Onde os teus murmúrios contemplativos,

tuas veias aquecidas pelos vapores

das estrelas elétricas e

despudoradas?

 

Em que reinos ficam agora

os palácios da tua morada branca,

as janelas abertas

dos teus entusiasmos meteóricos,

sempre insuficientes ao insaciável

do teu desejo?

 

Onde as festas e

o contentamento

da tua criança rebelde,

inconstante,

habitante do planeta ouro,

viajante dos mergulhos rasantes?

 

Para onde olham teus olhos vitrines

regados de céu,

olhos de noites que se recusam

a escurecer?

 

(teus olhos lagos

de manhãs úmidas,

teus olhos firmes

de fogo ardente,

teus olhos sorrisos

de leitos espumantes)

 

Em que porto o barco ancora

os sopros dos teus anseios

violetas?

quem assiste agora tua teimosia

por primaveras?

 

Em que oratórios estão pousadas

as preces das tuas mãos gentis?

em que barros elas buscam

as essências dos invisíveis,

as esculturas dos inícios,

que desenterramos dos porões?

 

(tuas mãos almas

tuas mãos harpas

tuas mãos nuas

viagens minhas)

 

Por uma fração de segundos

caiu pesadamente em mim

a ignorância das impressões,

espécie de alucinação,

pesadelos talvez.

 

vi raízes expostas, arrancadas,

tempo prematuro e acelerado

evaporando levianamente

a harmonia da nossa fragrância.

 

Tu estás aqui ainda

eu sei,

livre e intimamente

com o todo teu

colado no todo

meu

 

Tu permaneces

eu sei,

banhando os pés

nos infinitos rios

dos meus movimentos

mariposas.

varrendo essas ridículas

poeiras que corrompem

a paisagem do original

 

Tu estás comigo

eu sei,

ignorando todas as leis impingidas

pelas histórias foscas,

inúteis cacos de vidro

espetados por dentro

dos nossos gozos.

 

Tu ficas

eu sei.

 

peço perdão

pelo tempo desse poema,

foi apenas por um lapso,

por um breve instante,

que ele se levantou.

 

foi apenas pela confusão da mente,

que por vezes,

sem medir consequências,

me ataca em dentes.

 

foi a saudade que

repentinamente me colheu.

 

Ah essa indiscreta e infiel saudade

a me distrair!

 

é,

foi ela,

foi a saudade,

que trouxe a nítida impressão

de que eu havia acordado.

 

 

 

 

 

 

MISTÉRIO

 

 

perdão se te tiro do mar

a mim não bastou

a explicação do livro.

 

mostra-me tua mágica,

o mistério do irrespirável,

revela-me tua arrogância

de fazer o que eu não sei.

 

morre no meu ar,

ou leva-me em tuas escamas

e

ensina-me a engolir o mar.

 

 

 

 

 

 

CHOCOLATE

 

 

tem gente que se lambuza

e desfaz a dor no palco do festival

gente que entende de gente

que inventa raio de sol

que salpica luas nas ruas

e distribui chocolate

 

tem gente que ri de profecias

que mostra a língua pro presidente

que se despe de patrões almofadinhas

gente que perdeu as calculadoras

que arrebentou com a poupança

que aguenta firme o orçamento do mês

e espalha chocolate

 

tem gente que encara tempestades

cabeças em corações encharcados

transbordando os arcos das íris

gente que planta semente no chão astral

que anda na boleia do caminhão

respirando o pó do país que é bom

e oferece chocolate

 

tem gente que rasga os preconceitos

que pega nas mãos dos terminais

que acolhe criança de rua na alma

que faz passeata de bandeira limpa

gente que cansou do lamento empacado

que não acredita mais no pecado

e reflete chocolate

 

tem gente que tira o terno de linho

que desabotoa o tal vestidinho

que não encara mais regra de hipocrisia

gente que torrou da verdade tampada

que revela os escondidos por baixo dos panos

gente que rasgou as encíclicas do papa

e usa camisinha sabor morango

gente que acredita no poema dos trilhos

que edita o verso da estação

que experimenta gosto de contramão

e multiplica chocolate

 

tem gente que faz do hoje

o tudo que existe

gente que vê em cada amanhecer

brincadeira de amor viver

toma pinga com coca-cola

café com caldo de cana

e inventa em cada passo

um dia mais chocolate

 

 

 

 

 

 

VIAGEM

 

 

Quem eu amo

vive mar dentro de você

e na transparência das distrações

deságua espumas lençóis em mim

Quem eu amo

vive campos dentro de você

e nos vales dos lírios íntegros

florescem colheitas essenciais em mim

Quem eu amo

vive vento dentro de você

e nos desfiladeiros mais altos

precipita saltos múltiplos em mim

Quem eu amo

vive fogo dentro de você

e nas calmarias desnecessárias

desperta paixões gritantes em mim

Quem eu amo

vive música dentro de você

e nas noites sombrias

canta odes inéditas dentro de mim

Quem eu amo

vive destemor dentro de você

e nos momentos de desânimo

refaz coragem heroica dentro de mim

Quem eu amo é assim

em paz agitada dentro de você

em luta santa nos seus pensamentos desatentos

em tons que você já ouve mas ainda não escuta

em gestos que você já conhece mas ainda não dança

Quem eu amo é assim dentro de você

cavalo desatando cabrestos aos prazeres

cacto alagando oásis nos desertos

calor espalhando verão aos quatro tempos

naus encontrando as terras dos submersos

louça leve no afago compacto do bronze

Quem eu amo

vem no compasso das suas permissões

devagarinho

disfarçando, dando, negando

por vezes distanciando

por outras tocando novas imagens

abrindo lentamente as portas dos seus sótãos

levantando gentilmente as janelas dos seus emperrados

E você temendo e querendo tanto

experimentando e rejeitando os riscos aqui de fora

obedecendo e transgredindo as trilhos das paralelas

não pode mais desistir da viagem

E eu silenciosamente

fico

pedindo ao pássaro que espere

mantendo fiel a luz do girassol

rodando o planeta entre os astros das sintonias

E eu apenas fico

sem pressa

sem esbarrões

sem alardes

Quem eu amo vive ainda dentro de você

e só virá para mim

se tiver que vir

 

Minha festa

independe dos mapas traçados

é viagem inspiração em mim

encantada

intacta

esfuziantemente

arte

 

 

 

 

 

 

SANGRA

 

 

Sangra

dói em mim como aço prata

que entra pelo gosto da boca

e encerra definitivo a dúvida

não subo a montanha

não cheiro o mato

não banho meus pés

tem pitanga caída, fria no chão

um pássaro que desistiu

um córrego que reverteu

dói como tristeza de sol posto

sem plateia para assistir

corrompe, acusa, ofende

rasga, sangra, enferruja

dói como lágrima de menino

caindo em sorvete de creme

 

 

 

 

 

 

SEMPRE

 

 

                            Para Florbela Espanca, em 8 de dezembro,

                            seu nascimento, sua ida.

 

 

Hoje, mais ainda hoje,

sopro a poeira dos séculos

e abro seus cadernos

nas páginas dos ventos.

 

Hoje abraço mais seus versos,

rasgo as rugas das inquietudes

e pinto em linhas serenas

as manhãs das suas rimas.

 

Hoje dobro ao seu lado

as esquinas das dúvidas

banhando sua alma

nos rios perdidamente amantes.

 

Hoje faço um dezembro mais justo

que inventa curativos,

que derruba sono nos pesadelos

e borda lenços nas suas aflições.

 

Hoje reverencio a tinta

na mão que segura a pena

conduzindo os violinos dos sonetos

afinados nos arcos do seu eterno.

 

Hoje apago a morte,

realço no canteiro a flor que é bela

e espanco todos os demônios

do seu quarto.

 

 

 

 

 

 

DEIXO QUE SEJA

 

 

não importa que a tarde tenha caído mais cedo,

nem que as fadas dos meus sonhos

tenham perdido suas varinhas de condão.

 

não quero saber da minha saudade,

deixo que ela deslize pelo íngreme da ladeira

sem os empurrões das interferências.

 

não me incomodo que você esteja distante,

você continua você,

esteja eu onde estiver.

 

não quero saber dos olhares evitados,

sei que eles nadam em lagos

absorvendo as esculturas das lembranças.

 

não vou avançar nos mistérios,

os imprecisos se decidem em quietude.

 

não importa se fui alvejada pelo susto,

com certeza ele deveria mesmo assustar.

 

nada acontece em espinhos desnecessários,

por isso não me debruço no alto dessa escada,

não me mato em seus degraus difusos,

nem me consulto sobre hipotéticas quedas.

 

não borro a pintura do acaso,

nada pode ser estreito

se ainda percorro o corredor mais amplo

nada pode ser aprisionado

se a porta da gaiola estiver aberta

nada pode ser escasso

se a chama mantém exaltação.

 

não importa que a tarde tenha ido,

foi apenas uma tarde que anoiteceu mais cedo.

não quero saber se ela escorregou

pelas frestas da minha indolência,

ou nos clarões ansiosos de uma lua apressada.

 

não quero invadir os significados

dos acidentes naturais,

não prendo rédeas em minhas mãos

nem escolho os atalhos das retas emendadas.

 

arde a tarde em mim,

e deve arder,

recebo o toque ferro

na face nua do imprevisível.

 

 

 

 

 

 

ESTE LADO PARA h

 

 

                            Para Silvana Guimarães

 

 

Então fica assim:

você leva meus prazeres,

mas só aqueles que escaparam

dos luares imprudentes.

 

Leva o nosso jeito tango

no todo sentimento

do seu piano verniz,

teclas pretas e brancas

coloridas de Chopin.

 

Leva mais:

as mãos

os olhos, a voz...

errantes expressões

a adotarem

meus transtornos infantis.

 

Leva os conflitos

que julgamos resolvidos,

mas que continuam aflitos

nos mal interpretados dos sonhos.

 

Pode levar o perdão concedido,

ele não desculpou em semente.

 

Leva minha alegria renovada

pela sua vinda diária,

criando acordes convictos

nas juras das repetições.

 

Leva a ansiedade,

a intensidade, o telefone

que não toca mais você,

e que traz agora na linha,

ruídos que não me solicitam.

 

Leva também aquele filme que,

tão louco,

filmou minha arrogância

de ultrapassar paraísos.

 

Ah, sabe do que mais?

Leva tudo!

Não vou ficar aqui

fazendo contas,

inventários de separação,

sangrando a calculadora

de idas que nunca se vão.

 

Fico com o que sobrar,

com tudo que você

não aguenta carregar.

 

Guardo no sótão da memória,

este lado para cima h,

nas prateleiras crédulas,

abarrotadas da sua volta.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Claudia Penna (kk). Carioca, trabalhou na PUC-Rio, onde fez os cursos completos de Letras, Mitologia e Psicologia, como ouvinte. Seu trabalho na área de extensão cultural deu-lhe o direito a frequentar as faculdades. Nessa época, conviveu com Affonso Romano de Sant'Anna, de quem foi assessora. Morou algum tempo em Portugal, onde realizou outros estudos. Vive em Vila Velha/ES.