Pescaria
Na fila de emprego
me deram uma vara de pescar.
Contrariando as profecias,
não conquistei o universo.
Não havia isca
não havia lago
não havia nada.
Os peixes sumiram (!)
sugados por quem já sabe pescar,
por aqueles que pescam de família em família
com o mar à mão
e dedos ensinados;
será que têm varinha mágica?
Será por isso que não pesco?
Há tempos desato o ofício da pescaria
e nunca dá certo.
Faz anos também
que o cheiro do peixe invade as paredes, o catre, os sonhos, a minha oração.
Eu continuo: persisto,
de anzol gasto,
no exercício de dar de comer
à mãe, às filhas, às irmãs;
mas todas minguam
na tarefa diáfana
de enganar a fome
de soletrar a morte.
Por isso, no auge daquele dia,
convencida de que pescar
sem peixe, isca ou lago
não enganaria a dor, a miséria,
amarrei a linha no tronco mais rijo;
e lá, de corpo pendurado,
olhei pra sempre o açude vazio da minha casa.
Noturno n. 4
À noite,
No descanso das injustiças e das fraquezas,
Eles decretam no palácio a tua próxima fome.
Quando amanhece, o sol não nos fala
Nele, uma cortina de 100 dólares ponta de estoque
Em nós, o medo e o mito do silêncio.
Bronze o dia as aflições pelo trabalho e pelo sono
E quando enfim madruga e a jornada de tantas horas parece que chega ao fim
Eles dizem que haverá mais
Que haverá mais porque é preciso cansaço para os nossos olhos
É preciso sangue
Para que não se possa meditar
Para que sigamos
Máquina aos moinhos
A moer tudo aquilo que somos, tudo aquilo que não podemos ser.
Faísca
Ontem havia esperança
toda a esperança do mundo.
Hoje sou um estilhaço
um catálogo de dúvidas
e desejo.
Os pássaros não voam mais
e o dia que nasce
é o luto ordinário, grave,
posto sobre a mesa.
A boca diz o que o coração fala
e a dor é antiga:
chega, se instala
abre ocos na aorta, devagar,
para o aprendizado —
do enigma
da sutura
da ferida
da beleza.
Os fracassos... saúdam uns aos outros;
o que fica é o peso
a humilhação calcada nos olhos.
Digam que perdi:
que faltei às classes de empreendedorismo
e visitei às de angústia e miséria;
que não vou ao shopping
que rasguei os papéis e os comi.
Digam que perdi tudo:
a fé, o sonho, o dinheiro que não sobra
mas amo como se fosse eu o país
essa cavidade aberta
exposta, sangrando até a morte.
Terraço
Não há lugar em que eu me sinta em casa
Não há salvação.
A sirene roda alto
e o lá fora é meu tórax cheio de inverno e de vazios
:
minha mãe morta em 86
o maço de contas que me fazem um número
o avô fugindo na mata
e os porões como almas que choram no caminho
Amei tanto que parei no meio
(o oco é um futuro sem volta
é minha humanidade depositada no meu cão)
Nosotros in USA
seríamos felizes talvez
ignorando o pano de chão no varal há trinta anos
o pó da mala
nossos parentes atravessando a rua do muro
roubando batatas direto da plantação;
e seria só um protesto tímido
a infelicidade que habita o tempo do futuro.
Outlet
Os sonhos em promoção:
o mundo à venda
mas nada se realiza.
Só este vazio com desconto
preenche de gordura a mercadoria.
[As gaivotas desta tarde...]
As gaivotas desta tarde
cravaram dentes
repetindo o sinal da cruz
de tanta tristeza,
não andam mais juntas
em busca do sol:
guardam a dureza
de quem surfa a morte como os abutres.
Prece
Na vida,
aprendi os salmos perdidos;
são eles que me pegam
quando o continente
cobre os meus olhos
de deserto.
[Poemas do livro O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição, 2019]
Altar
Migra a coisa escondida
sem hora, sem dia.
O tempo repousa fundo
e corre pelas sombras e pelos vales.
Será que volta? Será que vem
levar da vida
as horas de trabalho,
as rezas não ouvidas,
os olhos demonizados
num lugar que não acalma,
nem guia
mas bate e apavora?
Será que é pra lá
que vão?
Não olham o céu ou o dicionário
Mas, ah, a novela
— esse livro didático, esse mantra,
essa bíblia que enlouquece.
Deus proteja a família:
os filhos adoecidos,
a mulher lavando pratos,
o homem na rua babando por criancinhas
— o museu fechado.
O mundo e sua indústria da carochinha,
é dele o dinheiro sagrado.
Woman sapiens
Ao lado do formicida das horas
me preparo para decapitar a memória,
esse exército adversário,
as aulas de etiqueta que não tive.
Preparar o frango é um raso do cotidiano,
quando o outro parece uma agulha nos ombros.
No princípio, o fim não sabia
que chegaria na longa fila dos anos — e do sus.
No instante em que aportei
minha língua não me disse
que a vida escreve os nomes da eternidade.
O neolítico é um planeta onde as dunas viram sangue,
e os corpos
passagens do agreste.
Neste espanto do mito
sonho um teste de virgindade da beleza na boca dos homens
e cumpro o destino absurdo do mundo.
Carta
Também fui puta desde o amanhecer.
Hoje me cultivam girassóis que não saram
e doem roturas no meu corpo.
A minha cinta nunca festejou um braço;
Queria mesmo a febre que a pele não realça
Mas as pedradas que me arranharam
os traços de mil trapaças
estes não subsistiram
Daí,
eu escrevi trinta mil sobrevivências
e cruzei a valsa livre dos cabelos cortados,
das irmãs inocentes e violadas
daquelas madalenas.
Amor sem capas
Esta é a pessoa que amo,
com o dedo no nariz
a calcular, remendar sonhos
É esta
que reclama;
nalguns dias acesa, noutros triste
Quem eu amo...
com a barriga por aparecer
e as costas magras, sombrias
Eu amo:
dum amor tão grande
todo cheio desse cotidiano
a semear, inundar meu desvario.
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