©lisa baird
 

 

 

 
 

 

 

 

poema de finados

 

 

quando fui te visitar

fazia um calor

de poeira e asfalto

sem sombra

nem brisa

nem mar

 

na necrópole do quarto

o teu ossário ficava

na primeira gaveta da escrivaninha

saudando minha dúvida

diante da porta

 

teus poucos restos

jaziam em caixinhas

de madeira nobre:

da cabeça não se tem mais pista

mas os pés estão preservados

em páginas de caderno

(universitário vinte matérias)

 

enterneceu-me a caligrafia

de quem sonhava ser diplomata

 

do outro lado do espelho,

conforta-me a tua figura finada

e o silêncio nos basta

 

ainda busco com o olhar

na varanda do último andar

maré que baixe e suba

levando nossos sustos

 

 

 

 

 

 

quercus acutissima

 

 

um bonsai não faz sentido diante do horror:

a poda calculada

a mordaça

o arame protetor

as algemas

a rega milimétrica

a tortura

 

um bonsai não faz sentido diante do horror:

carvalho japonês

a vertigem envidraçada

a paz miniaturizada

o monstro no living

o troféu vivo

o choro na condução

 

um bonsai não faz sentido —

devido à presença de usuário na via

os trens estão circulando

com velocidade reduzida e

maior tempo de parada

 

 

à memória de Lara de Lemos

 

penso em Lara no cárcere

enquanto corto

minhas próprias asas

com a ajuda de um espelho

e dobro

uma a uma

as mais de mil plumas manchadas

 

(mil bastarão

para deter a mão

que anuncia o fuzil?)

 

etiqueto pássaros mortos

encaixoto voos extintos

penso no parco espólio de Lara:

 

em meu acervo de perdas,

não há tamanho silêncio

 

 

 

 

 

 

a impostora

 

 

ah, Adília, desmascararam-me!

 

sou quem não me tornei

não serei quem me tornar

perdeu-se a autoria dos clichês

junto com a pele da rosa

uma rosa é bolor é rosa é bolor é bolor é

um ato extremado de amor

os tapetes e espelhos do palacete

cobertos de mofo imemorial

não há cartas ocultas em frestas

não se vendem verdades manuscritas

reeditadas em línguas mortas

quem me conheceu, que me venda

no estado em que me encontro

o bolor a medrar dentro dos ossos

 

Adília, Adília, deixei de dormir há anos

para admirar o suicídio da rosa

 

 

 

 

 

 

NÃO HÁ VAGAS

 

 

as mulheres e as construções

envelhecem antes do mundo

 

embolorecem em véus de chuvas

a toldar-lhes os desgostos:

 

suas fachadas sujas

desbotam-se

desgraçam-se

sujeitas ao mesmo sol

de muitas vidas

 

as raivas das mulheres

são nódoas em lençóis rotos

expostos na vertigem dos varais

as mulheres-edifício

abrigam moradores

demais

 

 

 

 

 

 

c.q.d.

 

 

ouço o chamado

subo ao tablado

escolho o giz

traço a solução

 

dentro da boca

sinto dedos

extraindo dados

 

escuto risadas

a sala escurece

recebo a avaliação:

 

a única resposta aceitável

envolve o perfeito funcionamento

das lâmpadas da casa

 

os dedos sobem para os olhos

contaminam as escleras

com ciscos

 

forço a vista

limpo a garganta

os dedos descem

emudeço:

 

impossível ter argumentos

com tantos pedaços

nos meus orifícios

 

quod erat demonstrandum

 

 

 

 

 

 

Sitting at the bar,

I told you everything

You said, "Holy shit, you almost died"

Sharing a shot, you held my hand

Knowing everything, knowing everything, we cried

I told you everything about everything

Sharon van Etten — I told you everything

 

 

avisa

que eu ainda estou viva

que expeli

as tripas da noite

na pia do bar

 

avisa

para as manchas da mesa

que era tudo mentira

que o preço do quarto

é o mesmo

que o sábado amanheceu

como sempre

 

avisa

que houve uma queda

de causa não esclarecida

 

avisa

os jornais

os programas policiais

 

por delicadeza

vão dizer que o corpo

era de uma jovem

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Anna Clara de Vitto (Santos/SP, 1986) é poeta e autora de Água indócil (Urutau, 2019). Desde 2017, integra a coordenação do Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora e poeta Jarid Arraes. Pela Casa das Rosas, em São Paulo, frequentou o Curso Livre de Preparação do Escritor – CLIPE (2018) e o curso Poesia Expandida (2019). Possui poemas publicados nas revistas Ruído Manifesto, Literatura e Fechadura, Algo deu Errado, Fazia Poesia e Revista FNX. Além das publicações esparsas, participa de saraus, performances poéticas, leituras e mesas de debate. Em novembro de 2019, publicou sua primeira plaquete artesanal, intitulada MEADA.