Entre um gole de aguardente e um trago nos cerca de 80 cigarros que Fernando Pessoa fumava todos os dias, o poeta plural escrevia versos com o catarro que seus pulmões escarraram durante os meteóricos 47 anos de sua curta existência. Ele soube existir, pensando durante décadas. E concluiu no Livro do Desassossego: "Pensar é não saber existir".

Tímido, introvertido, Pessoa verteu-se para dentro de si e lá enxergou a presença de várias pessoas que traduziram literariamente a sua individualidade dividida. No singular e no plural, as pessoas de Pessoa escreveram enxurradas de palavras em diversos gêneros. Tímido, isolado, acompanhado de suas criaturas imaginadas, Pessoa era um escritor inquieto e aflito. Como tudo o que vivenciou, transformou a angústia cotidiana em livro. É, portanto, em uma espécie de diário ou blogue, que o mais universal dos escritores portugueses traduziu o tormento existencial no Livro do Desassossego, um diálogo entre os pensamentos do poeta que surgiam entre as intermitências da vida, que saboreava no álcool e no tabaco.

Um livre pensador, Pessoa foi vítima de sua genialidade: viveu preso dentro de um lirismo do qual não conseguiu se livrar. Neste livro desassossegado, que é também um ensaio filosófico, ele escreve, em prosa, uma tentativa de traduzir a essência da vida. E acaba demonstrando que o vazio existencial é recheado de aliterações sofismadas em lirismo. Afinal, "Quando o estio entra, entristeço". Com tristeza, Fernando Pessoa passeou, neste "Desassossego", por temas diversos, como sonho, solidão, literatura, consciência, amor e morte, entre outros. E, na tentativa de se esconder na seriedade de definir as incoerências da existência, ele diverte o leitor, exibindo uma escrita poética que tinge a cinzenta angústia de cores mais vistosas. Refletir sobre o desassossego pessoano é uma tarefa tão complexa quanto espalhar uma palheta de sons audíveis apenas em uma frequência infravermelha.

Digamos que o ser humano tem um nome. E que se chama Vicente Guedes ou Bernardo Soares, autores fictícios do Livro do Desassossego, ou que se chama Fernando Pessoa, que, em última instância, é sinônimo próprio e abstrato para ser humano. São estes "o único autores" (sim, na discordância nominal há a concordância nominal) do Livro do Desassossego, que desafiam o sossego do leitor que se arrisca a se incomodar com o "gemido" de suas páginas, que ecoam "bocados de personagens de dramas meus". Descobrir-se, na solidão da timidez intelectual, ser um espelho humano atormenta a "ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro". E a solidão acompanhada de si mesmo incomoda o poeta que escreve no seu quarto "triste, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei". Talvez, como Cazuza, Pessoa desejasse ter uma bomba para explodir em uma impossível solidão a dois. Impossível, pois, "se eu vivesse um grande amor, nunca o poderia descrever".

A consciência de se ser só deixa no ser humano um gosto oco de quem goza "sem amargor a consciência absurda de não ser nada". O niilismo o entristece e o anestesia, pois, ao contrário de Descartes, Pessoa declara: "Não penso, portanto, não existo". Fernando Pessoa escreve por meio de negações para se sustentar. E nega os argonautas ao afirmar a relevância de sentir a vida insossa no paradoxo existencial em "sentir é preciso, mas não é preciso viver". Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, desdiz Fernando Pessoa, pois afirma com todas as letras que "Nada vale a pena". Se achamos que conhecemos de cor os versos desse poeta plural, aqui ele nos desassossega o que pensávamos ser a verdade pessoana. O autor português escreveu versos impecáveis em inglês e em francês; ele é, acima de tudo, um paradoxo intranquilo. Basta lembrar que Pessoa, autor do verso "Minha pátria é minha língua", morreu em inglês, sendo estas, suas últimas palavras escritas: "I know not what tomorrow will bring". Qual foi a pátria que pariu a sua morte?

Apesar de desfilar genialidade em reflexões neste livro, algumas passagens incomodam porque foram escritas com uma pitada um tanto arrogante de autoajuda ("Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela") ou de machismo ("Concedo que a inferioridade feminina precise de macho"). O desassossego na leitura das ideias aqui escritas jaz também no fato de não ser possível concordar com o que se lê. O ser humano pode ser genial em sua imperfeição.

Se for lido de maneira linear, o Livro do Desassossego abrange entradas que vão de 1913 a 1934, um período que varre desde a Primeira Guerra Mundial até o início da ditadura de Salazar em Portugal. O absurdo de Kafka e o inconsciente de Freud estavam sendo desvendados. O pano de fundo histórico não permite tragos em tabacarias outras que não sejam fumaças de puro desassossego.

O Livro do Desassossego avança dentro de opostos (vida x morte; sonho x realidade) que são tragados pela nicotina diária que injetamos em nossas veias pelo simples fato de experimentarmos a vida em viciantes goles de aguardente. Recomendo que você, leitor, respire fundo e relaxe antes de mergulhar no copo dessas águas turbulentas. Se recordar é viver, é possível sentar na cadeira e esquecer "a vida que me oprime". Desassossegue-se em paz, se for capaz.

 

 

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O livro: Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.

São Paulo: Companhia das Letras, 2012, 544 págs.

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setembro, 2019