A REPÚBLICA DE TODOS NÓS
Naquele sábado, Ana descia a Rua da Consolação, apressada para o ensaio. Antes de atravessá-la, um rapaz, que parara ao seu lado, também aguardando fechar o semáforo, puxou conversa. Perguntou se o teatro de Arena ficava no início ou no final da rua. Resgatada repentinamente de suas lembranças, ela espontaneamente abriu um sorriso e respondeu que estava indo para lá. O rapaz apresentou-se como Sergio e comentou estar atrasado para encontrar um amigo que o convidara a fazer o teste para substituir um dos atores na peça Doce América, Latino América.
Ana imediatamente se mostrou interessada em ajudá-lo, pois conhecia Antônio Pedro, o diretor do novo grupo que se apresentava ali, depois que prenderam Augusto Boal. Veio-lhe à mente as notícias que circulavam à época em que Boal fora levado pela polícia e torturado na prisão, antes de seu exílio. Por bem, preferiu se calar, pois não queria se expor àquele desconhecido sobre esses assuntos.
Lado a lado, ambos seguiram o trajeto, em curtos diálogos sem relevância.
Porém, ao chegar ao teatro, não havia pessoa alguma esperando por Sergio. Sem mostrar nenhum desagrado, ele disse que ficaria por ali e aproveitaria para vê-la ensaiar, enquanto o amigo não chegasse. Amigo esse que não apareceu.
Ana logo pensou que havia caído na cantada de um desconhecido, mas procurou se dedicar de corpo e alma ao ensaio, sem demonstrar seu interesse. Ao término, foi ao camarim pegar suas coisas e, ao se despedir dele, alegou que precisava se apressar na caminhada até a Avenida São João, onde pegaria o ônibus. Ele sorriu e pediu para acompanhá-la, pois ficaria na Praça da República. Ela até que gostou dessa paquera.
Durante o trajeto, repentinamente Sergio desatou a falar abertamente sobre a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia, as células que recrutavam jovens combativas e ousadas "como você" — disse-lhe olhando-a firmemente nos olhos —, para atuarem na resistência e coisa e tal. Demonstrando domínio sobre o assunto, citou Lênin e Trotsky e completou sua fala louvando a Revolução Cubana.
Enquanto ele falava, Ana foi ficando ressabiada. Aquele discurso tinha cara de ter sido planejado, decorado. Não demorou muito para ela perceber a situação em que se metera. Sua intuição dizia para se fazer de alienada.
Então, com meias palavras, ela foi despistando o rapaz com perguntas idiotas, evitando mostrar qualquer conhecimento profundo sobre política. Seus pensamentos eram relâmpagos cruzando sua mente em todas as direções. Desconfiada, concluiu: "Esse homem já está na minha mira e não é de hoje... ele é um agente da polícia e está me investigando". Gelou!
Embora não estivesse comprometida com nenhuma organização clandestina, Ana era contra o regime militar. Sabia de casos de inocentes úteis e 'laranjas' presos por engano. Pressentiu que deveria tomar uma atitude urgente, dar um jeito de se livrar dele sem levantar suspeitas.
Sergio foi apertando o cerco, convidando-a para uma dessas reuniões que ele dizia conhecer. Apesar de sua pronta recusa, ele insistia no assédio.
Alguns passos mais e Ana começou a suar frio, quando viu uma Veraneio C14 cinza estacionada em local proibido, exatamente para onde eles estavam se dirigindo.
"Ai, meu Jesus, por que eu fui brigar com a igreja e não acreditar em você? ... Por favor, senhor meu Deus, me ajude...", orou sentindo suas mãos úmidas de medo.
Ela pensou em seus pais, seus irmãos, sua amiga do grupo de teatro que a vira saindo em companhia de um desconhecido...
"Pronto, é uma armadilha... Eles vão me sequestrar e ninguém vai ficar sabendo o que me aconteceu... Pensa rápido, pensa rápido, pensa rápido Ana...".
Quando estavam quase em frente à Praça lotada, como era comum nos finais de semana, Ana fingiu tropeçar e, de propósito, se atirou ao chão. Na queda, ralou o joelho, a mão e o cotovelo, arrancando-lhe um grito verdadeiro de dor. Sérgio tentou acudi-la, mas ela se recusou a levantar. Permaneceu sentada na calçada, gritando cada vez mais alto. Com isso, conseguiu atrair a atenção das pessoas, que foram se agrupando ao seu redor. Fingindo uma dor absurda, ela desatou a chorar, como se tivesse fraturado alguma parte sua.
Quanto mais gente se aproximava, mais Sergio se afastava para a periferia da roda que se formara. Então, fazendo jus à atriz talentosa que era, Ana completou a cena com um ataque de nervos. Aos berros, foi inventando um monte de mentiras: "eu quero o meu pai... ele é da polícia... preciso que ele venha aqui com urgência...".
As pessoas ali se ofereceriam para levá-la ao pronto-socorro, mas ela queria que fossem até o teatro chamar sua amiga e a diretora da peça infantil na qual participava. Só sairia dali em companhia das duas. Mal terminara de falar isso, ela se arrependeu, pois Sergio poderia suspeitar das outras também. E aí, sim, ela chorou de verdade.
Naquele momento, uma mulher se apresentou como enfermeira e pediu que todos se afastassem, alegando que Ana estava em estado de choque. Disse que ficaria ali com ela, enquanto alguém correria até o teatro para avisar o que acontecera.
Dando graças à providência divina pela aparição daquele anjo, Ana disfarçadamente olhou ao redor.
Sergio já não estava mais ali, nem a viatura C14 lá estacionada.
Logo chegaram a diretora e sua amiga e, aos poucos, todos foram se dispersando.
Aliviada, Ana se levantou, limpou do rosto as últimas lágrimas e suspirou...
Sua República voltara a brilhar naquela tarde ensolarada, desafiando o cinza-escuro da ditadura. A transgressora Praça da República dos Meus Sonhos, do grande poeta maldito Roberto Piva, o poema-oração que ela escolhera para declamar ali em silêncio:
"A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela
paisagem de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças
brincando na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas..."
Por muito tempo Ana se recordaria de cada detalhe desse episódio sem chegar a uma conclusão sobre o repentino sumiço do rapaz: "Seria ele um rato infiltrado ou um contato de verdade tentando me recrutar?".
Jamais ficaria sabendo a resposta. Da mesma maneira que veio, Sergio desapareceu sem deixar rastro.
Era verão de 1972.
O BLUES DELA É VERMELHO
Acabava com a caixa de lenços de papel, enxugando lágrimas de tristeza e coriza ao mesmo tempo, enquanto tudo era abafado pelo barulho das máquinas de escrever e dos ramais que não paravam de tocar. Naômi viajava em seus pensamentos: "mais este plantão interminável com a editora-nariz-chefe-empinado ... vontade de sumir, sair desta maldita gripe e deste emprego... tô pelas tampas, não aguento mais esta merda...". Deu uma olhada na última pauta do dia: entrevistar o velho mestre Assad: "O senhor aprecia mortadela?". Pepinos destinados apenas à repórter ralé, matéria por telefone, piada: a fanha entrevistando o outro que não ouvia. Mas fez, não sem escapar das gargalhadas a cada pergunta que berrava sobre o embutido gourmet.
"Por hoje chega", pensou, "que não venha mais nada...".
Toca o telefone e todos fingem ignorar. Naômi vai atender quase se arrastando:
— Redação, boa noite.
— Boa noite, meu nome é Ney... queria passar uma nota sobre o Mautner para o caderno de espetáculos...
Enquanto Naômi anotava tudo mecanicamente, pensava naquele nome e na voz que não lhe era estranha. No final, arriscou:
— Ney... Ney Rama?
— Sim...
— Oi, sou Naômi Medeiros...
Bastou ouvir o nome para que ele se abrisse em surpresas. Entre as lembranças, um convite. Na semana seguinte um café, e depois muitos outros.
O país atravessava uma crise e ninguém acreditava mais no governo sequestrador de poupanças. Grana escassa, salários aviltados. Sem um puto para se mudar de um pequeno apê de quarto e sala que teve de voltar a dividir com os pais, Naômi não reclamava de ter gastado suas economias naquela viagem. O lugar, portanto, não importava, pois nada poderia ser mais blues do que sua rubra personalidade encarnada. Perfeita draga a devorar tudo em suas entranhas em chamas. Gostava mesmo de topar com almas torturadas, obcecadas e pessoas loucas, e também de atrair homens que falassem seu idioma, o mesmo para traduzir a idiotice que é obedecer a regras e sofrer de esperança. Não, ela não fora talhada para isso. Desconfiava de tudo, desde que nascera. Sua alma só conseguia aportar em nostalgias de lugares por ela inventados, da lembrança de um paraíso perdido que sequer tinha certeza de sua existência, mas que já havia lido em livros de esoterismo, não desses que ficam largados na mesa da recepção de consultórios, todo rabiscado e faltando páginas. Não era dessa fonte que ela bebia. Sua busca abdicava de turismo, coisa de que ela passou longe no tempo em que esteve fora do país e do ar, mergulhada em autodescobertas, enquanto lambia feridas e colava cacos de sua vida destroçada pela dor dos lutos, de morte a descasamento.
Ney atualizara seu passado com Naômi em tórridos encontros. "Como era bom poder escapar de vez em quando para aquele refúgio face norte, tão quentinho no inverno polar de Sampa". Uma dádiva para quem já não sabia mais o que era intimidade amorosa desde que havia voltado ao Brasil. Devolveram-lhe tesão, afeto e consolo com juros, além de juras e de uma leitura da alma, dessas que não se consegue proteger qualquer segredo de quem já lhe penetrara por inteiro. "Tipo de encontro alquímico: nada se perde, tudo se solve", definia para si mesma, sem nenhuma certeza do que isso significava.
A cada três finais de semana trabalhados, Naômi desfrutava um de descanso. Mas não naquela fatídica data da morte da atriz. Convocaram-na para cobrir o acidente do bateau mouche na baía da Guanabara. Para sua surpresa, já que nunca era chamada para nada fora do jornal, muito menos da cidade. Lá se foram sua folga de final de ano e o bota-fora do Ney.
Mas o destino novamente colaborou, colocando ambos no mesmo voo. Para ela, ponte área, para ele, conexão. Ela ficou no Rio, ele seguiu em outro avião. E quase trocaram as mochilas, entre abraços emocionados e o beijo da derradeira despedida.
Dele, ela alugou a kit, herdou o LP dos Beatles, um livro de poesia, o mezanino de madeira, marcas de amor no colchão e a imensa alegria de voltar a ter seu cantinho. Dela, ele levou um coração envolto em mata-borrão, que era para que o sangue da ruptura não deixasse pistas em sua repentina decisão de retornar para a mulher e os filhos.
Naômi chegou tarde da noite e foi direto para a redação, deixou a matéria sobre a mesa da chefa e pediu as contas. Haveria de se manter de outra maneira, qualquer uma que pudesse substituir tanta perda por qualquer ganho de melhor remuneração. Dali em diante, estava valendo qualquer risco.
QUINTA DE LUA NOVA
— Aberlado... eu sei que você ainda está aí. Que coisa feia... Batucar na porta do meu armário enquanto fica me olhando transar com o Celso?
Silêncio.
— ... tô perdendo minha paciência. Não vai dar sinal? Não de vida, né Abelardo, que já faz dois anos que você desencarnou. Xispa daí. Vá buscar o caminho da luz, o caminho da roça, o caminho da putaquetepariu! Fora daquiii!
E, aos berros, ela corria insana pela casa de imensas janelas de vidro. A cena se repetiu tantas vezes, que o showroom virou distração da vizinhança desocupada, praticante da bisbilhotice. Em pouco tempo, fofocas sobre a 'viúva histérica do 125' circulavam por toda a redondeza.
Ninguém mais, apenas Júnia podia vê-lo, mas somente quando 'ele' queria. Quando não, ela apenas pressentia o ambiente carregado, o hálito frio em sua nuca e o riso safado na cara do falecido.
Aquilo não podia ser só uma alma penada. Era um implante maligno em seu cérebro, uma obsessão, um desastre do cosmos, um encosto. Carma e punição!
Sobre a mesinha de cabeceira de seu quarto, havia um altar bonitinho. Apesar do entulho de pedras, sal grosso, 54 tipos de incenso, patuás, velas e santinhos, era um capricho que mostrava uma intenção.
Ela havia tentado de tudo. Em casa, trouxera de pai de santo pós-graduado na Nigéria à caça-fantasmas, confundidos a primeira vista com o pessoal da desratização do telhado. Ninguém, nada mesmo, conseguia dar um jeito de mostrar o reto caminho àquele habitante do limbo.
A casa, em si, não atrapalhava tanto a paz de Júnia, pois, quando ausente de figuras masculinas, o falecido praticamente sumia. O problema era quando encontrava alguém especial, um amor. Ah, isso não podia.
Foram várias as tentativas de namorar ali em seu quarto, todas sem sucesso. Abelardo aparecia de repente e ela o via, ora sentado no sofá do canto, ora assistindo tudo do alto, pendurado no lustre ou sobre a cabeceira da cama. Até que chegou esse dia, quando ele resolveu batucar em ritmo de axé. Quem trepa numa cadência dessas? Para ela, foi a gota d'água. Seu poder de abstração chegara ao limite.
Toca o telefone.
— E aí, foi lá?
— Sim, comprei tudo, mas tô numa dúvida. O cara é muito estranho... Perguntei se não havia outra saída.
— E ele?
— Disse: "são 500 reais", já abrindo a porta da rua...
— DEMORÔ, Júnia! O cara é bom. Faz que é batata! — respondeu a amiga, desligando em seguida.
Pior é que o 'trabalho' precisava ser feito naquela mesma noite nublada de lua nova. Não bastava o escuro da praça da encruzilhada, sequer havia o brilho das estrelas ou do luar. "Melhor", pensou, "isso vai ajudar a me esconder".
Mas se o feiticeiro era bom mesmo, ela nunca soube, pois, como era de costume, o que se ouviu naquela madrugada foi a gritaria de uma voz bem conhecida no bairro.
— Tirem-me daquiii! — Júnia berrava com toda a força de seus pulmões.
No alto da seringueira, traída por uma pisada em falso, ela estava ali, presa à árvore apenas pela capa de pomba-gira, que ameaçava rasgar. Embaixo, a vizinhança de pijama. "Não é a histérica do 125?", perguntava a notória fofoqueira, apontando um sapato vermelho de bico que pegara no chão, enquanto Júnia era iluminada pela lanterna da equipe de resgate.
Em um galho, girava Júnia, de corpete vermelho de cinta-liga rendado, pé descalço e, em cada mão, um maço de cigarros Gonzaga e uma garrafa de Moët & Chandon. No outro galho, sentava Aberlardo, o fantasma que só ela enxergava.
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