©dylanmartinez
 
 
 
 
 
 
 

EROS

 

 

Nascemos indivisíveis, e a parte que em nós se enxerta

não nos completa, em verdade é um outro todo,

cosmo diverso, a outras leis sujeito.

 

Não bem cosmo (não somos assim tão vastos

aprisionados a uma carne que atraiçoa);

como planetas em torno do sol

(de quem só recebemos feixes — que paixão chamamos),

eis-nos incomunicáveis, impossível adentrar o campo oposto.

 

Não somos parte senão de nós mesmos

e o que procuramos é nada além de um reflexo

ou mesmo um diverso de nossa imagem,

distração ao tédio da existência.

 

Se nos afeiçoamos para não adoecer

repetimos modernamente as tragédias gregas

nesse placebo que entorpece o entendimento.

Amor humano, sem a centelha divina, dois egoísmos que se juntam,

não mais que a campa onde repousa o engenho e a vontade.

 

 

 

 

 

 

DESAFETO DO TEMPO

 

 

O poeta de alma infinita como o céu,

de contemplação serena como o mar

e dicção vasta como as idades da humanidade

nasceu no século errado...

 

O amante das belezas ocultamente claras aos homens

e cuja voz timbra entre o vanguardista selvagem

e o artífice grego

viera a ser jogado nesta era

de homens duros como rochas,

de mulheres que mal se prestam a musas,

de tirana idolatria

por versos e prosa enxutos,

áridos como o chão gretado dos sertões

onde não floresce o lírio, a alpínea cor de aurora,

e onde nada há que sacie a sede do espírito...

 

Lamentável seu amor por adjetivos

numa era sem qualidades

onde a névoa que encobre o futuro vem dos abismos do passado.

Era de sensibilidade abundante como o amor entre os povos,

de reflexões profundas como poças de água,

alinhados à esquerda ou à direita, os homens seguem em marcha inequívoca

e o silêncio que paira (mesmo na profusão de palavras)

reflete-lhes o interior.

 

Época alguma se beneficiaria mais de seu canto,

mas o poeta modula seus versos ao vento,

tangendo as belezas que ainda resistem ao mundo.

É o quanto lhe basta pois, visionário,

sabe que fez de si desafeto do tempo

que, implacável, lhe acossa os passos estrangeiros

pela ousadia de, por palavras, apreender a imortalidade.

 

 

 

 

 

 

OSWALD FURIOSO

 

 

Bebemos água brasileira

em copo americano.

 

 

 

 

 

 

EU, O OUTRO

 

 

Esqueçamos então — se não nos conhecemos —

que benefício se obtém da apresentação.

 

Se nenhum, o descaso e a frieza deixemos

ao menos, sem perder jamais essa visão

 

que enfoca, solidária, o mundo interior

que tens e tenho, no universo indiferente

 

(e onde, num enlace, alternam-se Ódio e Amor:

nas relações humanas o eixo permanente):

 

se és o pai e eu o filho, que o abismo entre nós 

se estreite – e nos compete entender sua essência:

 

a intransigência com que calas minha voz, 

a rebeldia com que zombo a experiência. 

 

Se és a esposa, que o amor não seja lei tirana, 

e carne o meu não seja, a outras mais sujeito. 

 

Se amiga, tua vida não imponhas, lev’ana, 

e sequer sonharei com teu corpo num leito.  

 

Se cristão, a Palavra honre, humilde, num gesto, 

que eu, judeu, te enlaço em elo humano e fraterno  

 

— sacramentemos de vez esse manifesto

e, por certo, não longe estaremos do Eterno —

 

(não há, assim, mais tu e eu, tudo está interligado:

desejos, ideais e sonhos lado a lado.

És-me e sou-te — não mais o ser adulterado

que é aos outros o inferno, e em si amargurado

nas repartições públicas, órgãos do Estado,

escolas, hospitais, postos... O homem cansado

aflige a seu igual — sendo um membro integrado

de um sistema arbitrário e desumanizado.

Que nosso eu não se perca, afluindo a este estado...

Podemos ser nós, sem que o eu seja alienado). 

 

Se a teu mundo esses versos levas, esquecendo

de onde vêm, neles um outro mundo acolhendo,

 

posso abandonar o meu ceticismo enfim

(sombra que esses meus versos ronda, como a mim),

 

que em mim te encontras, e teus anseios profundos,

como me encontro em ti, confluindo nossos mundos.

 

 

 

 

 

 

A FORMIGA

 

 

Numa tarde denotativa (dessas que compõem nossos dias),

sentado em meu escritório,

a indiferença a mover minhas mãos

inverte uma ampulheta esquecida no canto...

 

É quando reparo numa formiga ali presa,

operária exemplar, mas que minha desatenção condenara

ao suave precipitar da torrente de areia...

 

No centro dessa ampulheta

a formiga se abandona

hirsuta e conformada

enquanto os grãos

tacitamente

s'esvaindo

seguem

um

a

um

sem parar

soterrando

inteiramente

seu dorso imóvel,

tão frágil aos segundos

que solidamente s'impõem

até que nada reste, senão areia.

 

Atiro ao chão a imponente ampulheta, em vão...

Que mão alguma pode trincar seus alicerces.

 

 

 

 

setembro, 2018

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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