EROS
Nascemos indivisíveis, e a parte que em nós se enxerta
não nos completa, em verdade é um outro todo,
cosmo diverso, a outras leis sujeito.
Não bem cosmo (não somos assim tão vastos
aprisionados a uma carne que atraiçoa);
como planetas em torno do sol
(de quem só recebemos feixes — que paixão chamamos),
eis-nos incomunicáveis, impossível adentrar o campo oposto.
Não somos parte senão de nós mesmos
e o que procuramos é nada além de um reflexo
ou mesmo um diverso de nossa imagem,
distração ao tédio da existência.
Se nos afeiçoamos para não adoecer
repetimos modernamente as tragédias gregas
nesse placebo que entorpece o entendimento.
Amor humano, sem a centelha divina, dois egoísmos que se juntam,
não mais que a campa onde repousa o engenho e a vontade.
DESAFETO DO TEMPO
O poeta de alma infinita como o céu,
de contemplação serena como o mar
e dicção vasta como as idades da humanidade
nasceu no século errado...
O amante das belezas ocultamente claras aos homens
e cuja voz timbra entre o vanguardista selvagem
e o artífice grego
viera a ser jogado nesta era
de homens duros como rochas,
de mulheres que mal se prestam a musas,
de tirana idolatria
por versos e prosa enxutos,
áridos como o chão gretado dos sertões
onde não floresce o lírio, a alpínea cor de aurora,
e onde nada há que sacie a sede do espírito...
Lamentável seu amor por adjetivos
numa era sem qualidades
onde a névoa que encobre o futuro vem dos abismos do passado.
Era de sensibilidade abundante como o amor entre os povos,
de reflexões profundas como poças de água,
alinhados à esquerda ou à direita, os homens seguem em marcha inequívoca
e o silêncio que paira (mesmo na profusão de palavras)
reflete-lhes o interior.
Época alguma se beneficiaria mais de seu canto,
mas o poeta modula seus versos ao vento,
tangendo as belezas que ainda resistem ao mundo.
É o quanto lhe basta pois, visionário,
sabe que fez de si desafeto do tempo
que, implacável, lhe acossa os passos estrangeiros
pela ousadia de, por palavras, apreender a imortalidade.
OSWALD FURIOSO
Bebemos água brasileira
em copo americano.
EU, O OUTRO
Esqueçamos então — se não nos conhecemos —
que benefício se obtém da apresentação.
Se nenhum, o descaso e a frieza deixemos
ao menos, sem perder jamais essa visão
que enfoca, solidária, o mundo interior
que tens e tenho, no universo indiferente
(e onde, num enlace, alternam-se Ódio e Amor:
nas relações humanas o eixo permanente):
se és o pai e eu o filho, que o abismo entre nós
se estreite – e nos compete entender sua essência:
a intransigência com que calas minha voz,
a rebeldia com que zombo a experiência.
Se és a esposa, que o amor não seja lei tirana,
e carne o meu não seja, a outras mais sujeito.
Se amiga, tua vida não imponhas, lev’ana,
e sequer sonharei com teu corpo num leito.
Se cristão, a Palavra honre, humilde, num gesto,
que eu, judeu, te enlaço em elo humano e fraterno
— sacramentemos de vez esse manifesto
e, por certo, não longe estaremos do Eterno —
(não há, assim, mais tu e eu, tudo está interligado:
desejos, ideais e sonhos lado a lado.
És-me e sou-te — não mais o ser adulterado
que é aos outros o inferno, e em si amargurado
nas repartições públicas, órgãos do Estado,
escolas, hospitais, postos... O homem cansado
aflige a seu igual — sendo um membro integrado
de um sistema arbitrário e desumanizado.
Que nosso eu não se perca, afluindo a este estado...
Podemos ser nós, sem que o eu seja alienado).
Se a teu mundo esses versos levas, esquecendo
de onde vêm, neles um outro mundo acolhendo,
posso abandonar o meu ceticismo enfim
(sombra que esses meus versos ronda, como a mim),
que em mim te encontras, e teus anseios profundos,
como me encontro em ti, confluindo nossos mundos.
A FORMIGA
Numa tarde denotativa (dessas que compõem nossos dias),
sentado em meu escritório,
a indiferença a mover minhas mãos
inverte uma ampulheta esquecida no canto...
É quando reparo numa formiga ali presa,
operária exemplar, mas que minha desatenção condenara
ao suave precipitar da torrente de areia...
No centro dessa ampulheta
a formiga se abandona
hirsuta e conformada
enquanto os grãos
tacitamente
s'esvaindo
seguem
um
a
um
sem parar
soterrando
inteiramente
seu dorso imóvel,
tão frágil aos segundos
que solidamente s'impõem
até que nada reste, senão areia.
Atiro ao chão a imponente ampulheta, em vão...
Que mão alguma pode trincar seus alicerces.
setembro, 2018
Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.
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