O ENIGMA

 

 

bordar um leão no peito mas

por dentro ao redor do coração

usar o fio da mais bruta montanha

não chorar ou desesperar-se

a dor ergue edifícios mais fortes

a vida não é uma dispensa gorda

a vida é um largo quintal de projeções

algumas vezes um filme chato

um romance sem graça

outras vezes uma mítica águia branca

com olhos turquesa e plumagem cristal

pronta a nos dar sua enorme cabeça

 

 

 

 

 

 

O PRESENTE

 

 

na escura caverna uma faísca de ouro

um buraco aberto no céu

um buraco fechado na terra

a semente é sanguínea

escorre quieta, sem pressa

flores de silêncio pairam no vazio

do teu rosto

 

 

 

 

 

 

O HOMEM

 

 

são como farpas atravessadas pelo desejo

húmus decomposto pela carne do destino

são cavalos cegos galopando pelas beiras

relâmpagos lufados pela existência

homens não são mais que instantes

roendo o futuro que não lhes pertence

 

 

 

 

 

 

A ESPERANÇA

 

 

há um animal que ri

selvagem

na atmosfera do dia

há um grito ecoando

labiríntico

nos mais altos céus

há o desejo

habitando os seres viventes

há o fruto

há um fruto

há uma sombra que envolve

o teu nome

há uma marca em tuas mãos

e dança quando olha pra mim

 

 

 

 

 

 

ESCURIDÃO

 

 

não pisam ainda os ventos

sobre as águas e rapidamente

a grama azul se espalha

sobre o mar e as nuvens suspiram

pela terra fértil

 

é outono e o globo terrestre

se contorce frente ao estranho

linguajar das algas

 

é frágil o sono dos penhascos

e melancólico o riso dos trovões

 

a espessura do momento exige

substância vasta, é escasso o vinho

que alimenta as plantas

 

a erva nova avista grande precipitação

os morcegos se enraízam na terra úmida

fecundando a clausura dos dias

 

a carruagem da noite se avizinha

é forte o aroma das cores no cio

 

 

 

 

 

 

NOVAS REFERÊNCIAS

 

 

essa coceira ruidosa entre os dedos da mão

essa coceira miúda, frágil, orgânica

desenha lembranças de quando fui mar

essa coceira prediz a queda da terra

e o nascimento do planeta aguado

ouço estalos! ondas quebrando meus ossos

é preciso escrever o manual da nova terra

é preciso ressignificar a vida terrena

rasgar os olhos das montanhas

lhes dar lições de como ser icebergs

 

 

 

 

 

 

O VOO

 

 

um pássaro negro atravessa-me os nervos

e é dia

já não há o que ensinar às águias

os sonhos amontoados de fome

não explicam os pastos

ou a costura das nuvens

um pássaro negro me intimida

converto-me em sal

há muita noite embaixo das águas salgadas

entre os nervos, lanço pedras no rio

nos pés de um possível amanhã

os sonhos:

ouro brilhando na imensidão do voo

 

 

 

 

 

 

ORQUÍDEA

 

 

você não sabe

o que é dobrar

uma primavera

você só entende

de invernos

de edredons

camisinhas

band-aid

merthiolate

e seriados

 

um cavalo atravessa furioso

esse lago

fundo dos teus olhos

galopando, galopando, galopando

 

você não sabe

o que são anzóis

você não sabe

o que é um cavalo

 

a saliva escorrendo da tua boca

escorrendo pelo canto esquerdo

dos teus lábios

vermelhos-sangue

 

uma isca escapando do anzol

 

você me chove e chove muito

chove imensa constelação

você não sabe

como molha dentro de mim

como boiam minhas entranhas

e afundam

 

 

 

 

 

 

TEORIA X

 

 

a cosmologia pode explicar o nascimento do universo do mesmo jeito que explica o controle da gravidade sobre nossos corpos

até o ponto de colidirem

a partir da colisão

nada se explica

o fenômeno ainda é desconhecido pelos cientistas 

quando dois corações colidem propagam tsunamis gravitacionais 

nem beuys previu em terremoto no palácio tamanha energia propagada

os padrões vibratórios são frenéticos

astros se formam a partir da agitação das partículas 

oscilações de luz ocorrem nos olhares com muita frequência e o movimento dos corpos no espaço se tornam imprevisíveis

 

 

 

 

 

 

PONTO DE NÃO-RETORNO

 

 

absurdos matemáticos

distorções entrópicas

não há linguística avançada que o descreva

fórmula física que o explique

matemática que o calcule

a velocidade da luz por ele é descartada

não há velocidade possível para libertar-se do seu campo gravitacional

chegando em seu horizonte de eventos

qualquer matéria será influenciada por sua força significante 

haverá fricção significativa

o corpo será propulsionado ao ponto de não-retorno

essa ação fantasmagórica a distância

foi denominada pelos cientistas de amor

e figura entre os grandes mistérios da humanidade

 

 

 

 

 

 

FRAGMENTO VOYNICH

 

 

o próximo amor virá do espaço

precisamente de kic 8120608

curvará o sol em um clique

em dois ressuscitará os mortos

diz a profecia que ele escreverá ficção

trará uma herança nas pernas cruzadas

dará aos pobres de espírito esferográficas

nas pálpebras carregará rolos de kraft

será revolucionário

abolirá o uso de calças legging

substituirá os mágicos por bexigas azuis

dará aos pesadelos bilhetes pornôs

por fim, quando tomar consciência da vida

bordará falsos poemas nas nuvens

e cobrirá o mar de insignificâncias

 

 

 

 

 

 

PLUTÃO

 

 

por que todo esse desespero?

deite sobre o meu peito

ouça o universo

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcel Fernandes, nasceu em Antonina/PR, na primavera de 86. Além de poeta, é artista visual e apaixonado pelo universo e seus mistérios. Seus poemas já aterrissaram em diversas revistas literárias, como a Escamandro, Garupa, Parênteses, a americana Gramma Poetry e as portuguesas Enfermaria 6 e Piolho. O Cochilo do Céu (Kotter Editorial, 2018) é o seu primeiro livro.