tempo
não enobrece o homem
o trabalho:
antes, submete
antes, violenta
não dignifica o homem
o trabalho:
antes,
muda o significado
dos dias das horas
— cuidado, é coisa frágil
a vida —
é triste o modo de
contar o tempo
dos homens de
agora
(o tempo é o quinto
dia útil é quando
fecha a fatura
é quando pode
haver fartura
é quando cabe na
conta
— só sabe
quem conta —
pulam os dias
de sete em sete
só entende quem
pulsa os sete
os sete
a conta conta
oco oco o eco)
— cão —
late,
vem e morde:
dá empate
eu também assim,
vate de merda,
nem vi,
dentro a palavra
rebate,
sabe,
é tanta coisa
que seca e
a gente só
percebe
quando sangra.
[Poema inédito]
trítono
(Para Teofilo Tostes Daniel)
porque grávida
de ausência
urge o sorriso grávido
de alguma falta,
ruído grave, gestando
o impronunciável,
urgem lábios, margens
obscenas da inundação
possível, sorriso
discreto, palavras impressas,
parto, farol de ruas
sem esquinas, ruas-rio,
(quero morar numa cidade sem esquinas,
meus olhos ardem,
tenho uma pasta de urgências dentro de uma pasta de urgências dentro de uma
pasta de urgências,
o corinthians foi campeão,
o preço dos tomates & a crise política & a meteorologia)
há meses
(são apenas dois olhos
duas pernas e dez dedos para tantas
urgências no mundo que,)
transbordo.
— porque grávida
de alguma ausência
que o CID
não gera
entre as margens
absurdas da normalidade
o abismo
fere e confunde,
meu bem
fluxo
de realidade nítida
há dias não acordo
tampouco durmo,
apenas observo:
há em mim alguma coisa
sem nome e excessiva
que torna a existência
impraticável, tanto pior
às duas da tarde
quando de fato são
duas da tarde
e a lucidez é tamanha
que desejar é a borda
do abismo, e sangra.
quatro poemas da série homem clichê
I
autoestima
com que apreço contas
tuas pequenas glórias
que não servem de tema
pra nenhuma épica
o segundo lugar
num concurso primário,
algumas dezenas de mulheres
conduzidas pro abate
e alguma outra dezena
de malandragens tortas,
mas que entoas degustativo
(com peito estufado
& testa sem rugas)
II
negação
mais ou menos quando eu disse
— te amo
e tive como resposta
— hoje vou cortar as unhas
me ocorreu como
é excessivo o branco
do teu figurino,
como caberia bem
ali, três dedos
abaixo da gola,
uma mancha
de café amanhecido
ou placenta
III
gaslighting
palavra navalha,
ferida crua:
seriam minhas
essas mãos
que me saem
dos braços,
que pendem
feito pêndulo
de temporizador
de mortalha?
ou sou apenas
paisagem estática,
desenho feito
com sangue e farsa
na ponta dos dedos?
convém dormir
cedo, a rota longa
agrava
tudo.
IV
manual pornodidático para homens
pra maior parte sou apenas
buraco penetrável,
boca, cu e cona,
chegam logo me enfiando a rola
em dez minutinhos
de estocada frouxa
e está acabado:
meus caracóis ainda secos
e o macho já vira de lado.
pra um dei um manual
de anatomia, bem explicado,
mas ele entender zona erógena
foi trabalho de parto,
e meu um metro de busto
permaneceu intacto.
tudo que digo agora é
vida longa às pilhas,
porque não anda fácil:
esse jeito de foder,
meninos, está todo errado.
[Poemas do livro Acúmulo. Patuá, 2018]
corpo, ou poemas para se escrever com tendinite
I
tudo para existir precisa da máquina
cabeça ombro joelho e pé diz a canção
uma ginasta ficou tetraplégica
que a rouquidão não alcance os professores
que a tendinite não chegue aos escritores
que a surdez não recaia sobre os musicistas
para que a grama onde pisar ainda exista
grama de um verde orgulhoso de si como aquela
joelho e pé joelho e pé eu alternava rápido
gosto de lembrar mas prefiro não
II
é estratégico o esquecimento
mesmo involuntário
joelho e pé joelho e pé eu alternava rápido
tão pouco sedentária porque jovem em tudo
tanto que a morte era apenas um burburinho tímido
para além do raio da voz
eu não dizia mas secretamente duvidava
que ela existia
III
joelho e pé joelho e pé eu alternava rápido
e ele sentou naquela grama de um verde
tão verde e me puxou para o seu colo
e me contou que as pessoas quando gostam
umas das outras se beijam
mas ele era grande muito grande
muito maior que eu eu não entendi
eu nunca tinha visto um homem grande
beijar uma menina pequenina como eu
IV
ele explicou que se eu não beijasse
era porque eu não gostava dele
e ele ficaria muito muito triste
e eu seria muito muito má
porque ele gostava muito muito de mim
uma menina tão levada mas mesmo assim
ele gostava ele disse que era assim
que o mundo funciona e que eu não sabia
só porque era muito muito nova mas um dia
um dia eu ia entender hoje eu entendo
cabeça ombro joelho e pé diz a canção
não é mesmo?
[Poema inédito]
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