*

 

 

levemente e sem penas

Álica promove o que a manhã emana

são brancas tessituras de um resto de mar agreste

que se entranha pelas nervuras das costuras de todas as mangas

 

de qualquer camisa que tenha ficado a secar esquecida

 

a noite lança madeixas longas e atravessadas pelas bocas do negrume mais intenso

que se escapa da luz que quer chegar na madrugada

 

 

 

 

 

 

*

 

 

quentes os dias

frias as noites e de deserto ninguém

ninguém se escapa

será que o vento forte se prepara?

 

que calor

quem me diz por favor onde a água se instalou e se derrama agora?

as crianças devem brincar dentro dela

ou será que agora é só lama?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

a sentença seria a quebra do velhaco

se o velhaco se mantivesse sossegado

 

mas não é que o velhaco continua?

haverá sentença mais crua?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

os nevoeiros trazem-me dores

na anca esquerda

sou hoje

uma bailarina mutilada

 

 

 

 

 

 

*

 

 

no que predizes

na acorrentada espera

Penélope

no meu inteiro corpo

 

 

 

 

 

 

*

 

 

tenho as sardas da velhice sobre os dedos

sobem para as costas das mãos

e encontram-se com os pelos dos braços

 

diz-me o meu irmão              mas tu não és velha minha irmã

digo              não sou velha mas tenho as sardas da velhice

 

 

 

 

 

 

*

 

 

lambe assim a minha cara

secas lágrimas que me deixam

 

é a noite

sem lua

clara

calma

apagada

 

e és vento

que corre como um lobo sem nome

 

 

 

 

 

 

*

 

 

a escrita descreve o tempo na folha branca pousada

de um pó que se agarra ao bico da esferográfica

em volta pedaços de tinta

despedaçado o azul se afigura

 

 

 

 

 

 

*

 

 

que dificuldade

é conseguir brotar noutras pétalas

a dor do autor

 

a dor do amor

a dor seca da glória que se transfere

e consome nos cantos leves das folhas

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Entre o ruivo e o esverdeado há um espaço semicerrado

de encontro com um tom quase vago

mas de tonalidade de um afago

a aurora

e o anil aflora como espaço que prende e decora

uma capa

silenciosamente dada

ao Poeta

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Inez Andrade Paes nasceu em Pemba, Moçambique. A natureza, a escrita, a arte são o fundamento do seu universo — pintura, ilustração, poesia, prosa, fotografia, música. Coordena, desde 2012, o "Prémio Literário Glória de Sant'Anna". Publicações: O Mar que Toca em Ti (crônica de viagem, 2002); Paredes Abertas ao Céu (poesia, 2011); Libreto em três Actos, constituindo a Cantoriana Marítima — Acto I Mar Falante, Acto II Transparente Luva de Água, Acto III Flores de Acanto em Marfileno Lençol; Da Estrada Vermelha (poesia, 2015) Da Eterna Vontade (poesia, 2015); À Margem de Todos os Rostos (2017); Por editar —Antes que morra (no prelo). Participa das antologias Dos silêncios que cantamos (CEMD Edições, 2014); Entre o Sono e o Sonho (Vol. V Tomo I, Chiado, 2014); Cintilações da Sombra 2 (Labirinto / Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014); Clepsydra (Coisas de Ler, 2014); Cintilações da Sombra III (Labirinto / Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2015) e Zalala (CEMD Edições, 2017). Tem textos publicados em várias revistas literárias. Mais em Contos de Fadas Não de Reis.