ego

 

 

trombei com Jorge e Sandra, eles

demoraram pra notar

a minha presença

pareciam íntimos, mas pelo menos não se beijaram

 

a minha ingenuidade de pensar que eu era a única

 

lenta facada nas costas ao perceber que

não, sua burra, se por acaso o Jorge precisar de uma atriz

ele vai contratar a Sandra, olhe pra ela

 

cumprimento os dois

com naturalidade

 

estava passando por aqui quando vi vocês.

 

eles sorriram,

perguntam se estou bem.

 

estou,

obrigada

 

e depois de mais algumas palavras eu

fui embora

a beleza da Sandra me invadia o peito

eu me sentia tão frágil, era como se eu não tivesse o direito

de existir, a beleza da Sandra

entorpecia meu espírito que finalmente, tiro os óculos pra entender isto, finalmente se descobre um

rato, confirmo no reflexo da poça sou um rato

a rua

está cheia, pessoas caminham como se nunca tivessem perdido

a hora, um brinco

onde estão? os defeitos dos outros

o mal hálito, as desproporções.

 

que solidão

ser um rato sozinha

 

será que

alguém precisa de um camundongo para um filme? um roedor

que se pareça muito com uma mulher?

 

vejo um anúncio no poste

 

 

precisa-se de atriz subumana

 

 

arranco o anúncio

e corro

forrest gump até a produtora

bato na porta

 

estou aqui para o teste.

 

abre-se a porta

 

me instalo no cenário todo branco

 

mal começo a performance que me dá na telha

bem monstra bem do jeito que sou

 

quando escuto

do pessoal detrás das câmeras

 

— corta. o papel é seu.

— sério?

— claro.

— não acredito, que felicidade. mas eu

já posso comemorar? porque toda vez que comemoro

— o quê?

— me ligam dizendo que houve um engano.

isso foi antes, qual é o seu nome?

— Rato.

— aqui, Rato. venha pegar seu cachê teste.

— ah, obrigada. muito obrigada, senhor

— filmaker. pode me chamar de senhor filmaker. anota pra mim seu telefone.

 

obedeço.

 

— entraremos em contato.

— obrigada.

 

abro a porta

da produtora

pesada porta contra fogo

e saio, já escureceu.

 

caminho de volta pra casa

 

me sinto

levemente alegre

 

mas passa

em um minuto ou dois estou melancólica de novo, pequena tristeza caixinha de música.

reparo, enquanto caminho, no cansaço das pessoas que estão no ponto de ônibus, elas me olham também, que ideia fazem de mim?

só espero que não me descubram rato, ainda bem que está escuro

odeio

as linhas da minha boca

odeio meu rosto nas fotos e às vezes o amo

às vezes quando vou dormir e passo creme eu

o amo

faço movimentos circulares ao redor do olho na esperança de que um dia eu aflore ao ponto de ser uma unanimidade

e quando eu for

uma unanimidade

profundamente amada gigante lá do alto da rua eu

vou abraçar

as pessoas que caminham

acolher todas

no meu peito

venham, venham

meus queridos

levem

meu leite pra casa

jorge, sandra

se aproximem, peguem

o que quiserem, anda, o que quiserem, jamais serei cruel com vocês.

 

abro a porta de casa

 

 

(barulho do telefone)

 

 

atendo

 

é da produtora

dizendo que houve um engano.

 

 

 

 

 

uma manhã

 

 

ela saiu do quarto, alcançou o banheiro sem fazer barulho

não queria acordar seu cachorro que

em outros tempos se levantava com ela

agora estava assim

esticando o sono

fora que a roupa de cama dele

era nova, uma toalha por baixo, um cobertor cortado e por fim um edredom. assim que ela terminou de arrumar ele pulou ali agradecido

e se mexeu pouco

durante essas noites de inverno.

mas ela

precisava acordar, seu chefe não gostava de atrasos, quem gosta?, o dela especialmente general.

decidiu tomar um banho rápido pra acordar os olhos que apesar de abertos pareciam mortos, uma preguiça incalculável de andar na rua, enfrentar os rostos e placas

depois o trabalho em cima da mesa isso é pra hoje isso também, onde no corpo nasce a preguiça? sempre pensei que fossem nos

olhos, mas

acho que não, acho que nasce no cérebro, ele que é o responsável pelos nossos sonhos

e por quase todo resto, por isso o rosto a primeira coisa assim logo de frente recebendo vento, beijos, lágrimas.

ela começou a sentir o peso da própria cabeça

ensaboou os cabelos, inclinou pra enxaguar. jornalista. será mesmo essa a profissão que lhe cabe? escolheu ali, de acordo com o que conhecia de si mesma aos 18 anos e também baseada nas matérias que ela gostava no colégio, era curiosa, falava bem.

mas e se essas qualidades culminassem por exemplo em um amor pelas montanhas? se não por escalá-las, talvez

por desenhá-las, como ela saberia se nunca tentou?

fechou o chuveiro sentindo que levava sua vida de uma maneira menor do que poderia, como se morasse num casarão de fazenda e ficasse vivendo dentro de um único cômodo

que tinha suas janelas e quadros, mas isso não quer dizer que ela ficaria ali pra sempre. coragem pra abrir a porta, ela pensou

coragem pra seguir pelos corredores

explorar outros cômodos

ser expulsa aqui já tem gente demais. continuar caminhando

até mesmo pra longe

da fazenda

o mundo é tão Grande, dá pena

dos mapas.

é isso, ela pensou. tenho que me contentar com a mesa no jornal da minha cidade porque se não fosse essa

seria outra

e no começo as coisas até pareceriam boas, mas

logo viria a crise

mata o sonho quem o realiza

ao mesmo tempo não estou assim tão infeliz. é só

muito cedo

e faz

muito frio

de toalha enrolada no corpo ela procura uma roupa pra hoje.

 

o cão

hiberna

 

isso não a preocupa porque o tórax dele está se mexendo

mas vê-lo dormindo sem acompanhá-la como de costume

acaba sendo uma prévia da vida sem ele e

é horrível, ela se sente desamparada

precisando de um conselho que a fizesse enxergar algo profundo e pensa que até nisso seu cão é muito generoso

está velho, uns poucos anos e

pronto, ele se vai

até pra isso

ele a prepara

dorme cada vez mais pra que ela vá se acostumando

mal e mal

com a solidão.

 

 

 

 

 

por amor

 

 

a gente ia na missa todo domingo, eu gostava de agradar mamãe pra ver se ela me amava mais forte e esquecia da minha prima Lisandra sempre pulando no colo dela, espero que a Lis não venha no natal, ela vem?

eu chegava

de mãos dadas com a minha mãe na igreja

depois ela sentava

no banco

prestando atenção no padre noelzinho muito sono. de vez em quando minha mãe chorava por que você tá chorando?

eu abraçava as pernas dela

por jesus?

minha mãe se

acalmava até que rápido

então eu ia escalar as pedras da capela.

tentava me machucar

pra ver se minha mãe chorava por mim também

o padre noelzinho dava muito sono

mas eu não podia desistir.

o problema é que eu

não conseguia me entregar na queda, sentia medo de machucar o joelho muito grave, tentava todo domingo até que numa missa ao invés de igreja

ficamos andando pela rua segurando um ramo.

fazia sol, minha barriga roncava, tinha muita gente envolta do padre noelzinho mãe, existe padra?

— fica quieta, estamos em procissão.

— prefiro na capela.

 

e as janelas dos apartamentos se abriram.

 

 

— mãe, tô com febre.

— Ana, por favor.

— a Lisandra vai vir no natal?

— filha, agora não.

— ela vai vir?

— chega. você quer apanhar?

— não. e você?

 

ela se fez de surda

 

estava brava, idaí? eutambém estava

que saco ficar andando com esse ramo

o pior é que

eu não sabia rezar direito

pra pedir pra deusvem logo, a Lisandra sabia, já vi ela rezando de joelho e

olho fechado

ótima posição pra levar uma machada na cabeça

vou enterrar o corpo embaixo da minha cama, dormir em cima do corpo

mãe.

viramos na cauaxi

os carros passavam devagar, mostrei a língua, tá olhando o quê?

se eu soubesse do calor

tinha vindo de biquíni

muita gente, que cheiro

de gente

— mãe.

o padre noelzinho ficou careca

de sol

um monte de pinta marrom na cabeça dele

comecei a cantar hosana nas alturas

baixo, pra tentar ser fiel

ao meu cansaço

ao mesmo tempo dizendo bem as palavras

assim mamãe perceberia que eu estava cantando, ela parecia

mais calma agora, se eu ajoelhar aqui na rua rezando talvez eu machuque meu joelho ou

quem sabe se eu

 

 

— Ana?

Filha?

Socorro, gente

ajuda aqui!

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. É colunista do site cultural Livre Opinião — Ideias em debate e foi escritora convidada na Primavera Literária; Sorbonne Université, França 2018. O peso do pássaro morto, finalista do Prêmio Rio de Literatura e do Prêmio São Paulo de Literatura é o seu primeiro livro.