o estreito de bósforo

 

 

falo da embarcação que invade

noite longa, noite que não acaba

o massacre cheira a cravo,

tem gosto de peixe e o sol vermelho

bordado ponto a ponto no fio da espera

não há veste que não retenha a agulha

não há pele que sobre

-nomes esquecidos

pretas.brancas.vermelhas.amarelas

seus cabelos são crespos, meu bem

seus cabelos são louros, não importa

no cais estão escritos, choram

os pescoços estendidos

o bósforo é a traqueia

os olhos ejetados da mater

morta a pau na pátria nossa

carcada de estrupro pelo pai, filho

espírito de abismo

o ar comprimido

o território invadido

múltiplos dilacerados

e os peitos pálidos que nutre as meninas

crescidas nesse mundo sem direitos.

 

 

 

 

 

 

poema para embalar estatísticas

 

 

pelos corpos das moças mortas

vermes copulam sincronizados

elas não podem dizer nada

elas não podem mover um dedo

as extremidades azularam

as córneas acinzentaram

o medo cerrou os dentes

 

pelos corpos das moças mortas

palavras de ordem são ditas

elas não foram comedidas

botaram pernas na avenida

ah, se fossem elas as tais pudicas

quem sabe estariam vivas

ainda que servidas frias

 

 

 

 

 

 

mulherzinha

 

 

mulherzinha. atrevida que só ela,

anda do lado de fora do passeio

à toa, sem medir o valor do passo

a passo que firma a pedra

no chão. e o sangue verte

sua coragem de pássaro. voa

além da sombra do medo.

não diz ai.

parideira de mundo que é.

 

 

 

 

 

 

acordei_ra Nanã

 

 

no canto da sala escondida

no canto da sala humilhada

no canto da sala cuspida, rota

da noite escura

da brisa ressentida

a mortalha do tempo

Nanã invade o peito

seu cheiro é raspar de tachos

Nanã acolhe o lamento

sua voz é feita de silêncios

a tempestade lhe enverga o corpo

seus pés se prolongam no pântano

seu caminhar é lento

passa, passará, isto também passará

 

 

 

 

 

 

coma tudo

 

 

reaproveite os nossos restos

para dizer que fizemos poesia

naqueles dias em que vivíamos

sob um teto esfarelado

de papel.

apanhe sua agulha

para costurar as sobras

do amor que lhe faltou.

coma tudo.

coma

tudo.

deite numa esteira de palha

para digerir nossas mazelas, mas

projete na parede oca

minha farta descompostura

serpenteando

múltiplos gozos.

faça de mim algo sublime

de tão inútil. feche os olhos

e sonhe a linha da tua vida

na palma de uma mão

estendida por trocados.  

a escuridão de nossa memória resistirá.

a solidão que nos habita resistirá.

nossos punhos marcados pelas palavras ditas.

nossos pés acorrentados em geleiras.

 

 

 

 

 

 

quando o entregador arremessar o jornal à sua porta

 

 

quem sabe você não volta ao campo para ver as andorinhas que chegam com a primavera num céu azul que é a visão mais-do-que-sensata do paraíso

 

só não esqueça de levar

a comida do cão tinhoso

que te espera libidinoso

com seu verso de armar

 

ele vai dizer que você é diferente

ele vai jurar que nunca sentiu isso por outra mulher

 

use boa receita, sal grosso

fubá, pimenta, pescoço

vela, charuto, cachaça

uma língua de boi pregada

 

ele vai tentar sem poder dizer 'você não presta!'

ele vai sobrar nada-além-retrato-desbotado-jornal-arremessado à sua porta 

 

quem sabe ele ainda consiga ver de soslaio seu riso abrir céu azul nas asas das andorinhas que chegaram para a primavera

 

 

 

 

 

 

o amor é um lugar

 

 

O amor é um lugar

onde uma torneira pinga 

incessantemente. 
Atormentados, queremos seca, 

mas de seca ninguém vive.

O amor é um lugar nenhum.

 

 

 

 

 

 

receita antropofágica

 

 

não se compara

ao gosto

de gente

que se pode

amar

-gura

às ambíguas

criaturas

carnes

ditas duras

que fodem

pal.a.dar

 

 

 

 

 

 

do pre_fácil ao fim

 

 

a vida é mais ou menos uma balança

sem pratos, não pende e nem tem

percepção do peso que carrega. a vida é curta

como um rio que corre por dentro da terra e

não se vê a olho nu porque nossos pés

estão secos. a vida é uma casca de ovo

a embalagem onde nada se compara

ou se pode comparar

de notável perfeição. a vida hoje,

um dia após o outro, o roupão pendurado

na porta do quarto e um corpo de alguém

que não precisa de vestes.

poderia eu ser a vida na tua vida para a vida minha

ter mais vida, mas não percebemos nada

disso. por isso, bebemos

e rimos de bobagens

e somos felizes por um segundo.

se eu fosse poeta, eu me levaria mais a sério.

 

 

 

 

 

 

ela vinha pelo corredor para me servir a sobremesa

 

 

na primeira vez, ela vinha pelo corredor para me servir

a sobremesa — a taça, o creme macio, o rosto emol-

dura duas rodelas de pepino, o frescor, a boca

o traço de licor.  a vida uma sexta-feira e ela

a me servir a sobremesa.           

 

foi a primeira vez que a vi — a taça,

os peitos duros, o rosto macio, duas rodelas                                                   lágrimas sobre a mesa.

 

na primeira vez,  a vida uma sexta-feira

para me servir sobremesa batom, dois mamilos duros,

a boca emoldurada, o rosto aberto,

o frescor sobre o corredor. o pepino desliza e ela

a saliva licor.                             

 

ela é digna de confiança a par seja bonita demais  e

seus mamilos na taça         a saliva         duas rodelas

creme sobre a mesa.

 

 

na primeira vez, eu vinha pelo corredor

ela quase me escapava, os mamilos, duas rodelas,

o pepino com o batom, o creme,

o líquido sobre a mesa.  a vida uma sexta-feira e ela

a me servir a sobremesa.

 

 

 

 

 

 

notícias populares

 

 

ela geme

ela grita

ela diz que vai morrer.

— eu morro.

joão tem um metro e oitenta e quatro, teresa não

passa de um mulher de estatura pequena

contrário de maria, mulher longilínea feito

égua para antônio

ele puxa pelos seus cabelos, ela empina

— geme, grita, diz que vai morrer!

— eu morro.

pedro manipula os dias,

não dorme a noite conceição,  os dedos

no gatilho, a senha bancária, a vizinhança que diz

— assim mesmo,

homem é assim mesmo.

ela geme, ela grita

ela diz que vai morrer.

— eu morro.

lúcio perde a razão

escandaliza na porta da seção

o chefe acena na despedida

— faz vergonha, rita

vê se não geme, vê se não grita.

morrer é melhor saída.

 

 

 

 

 

 

a chave

           

 

                   para minha mãe e avó

 

 

chave sobre criado-mudo

gaveta vazia de miudezas

embrulhadinhos, origamis,

botões, formas não concebidas,

fios de lã, uma tesoura que veio da china

agulha enferrujada, pe-

da-ço de algodão, fotografia,

cartão de visitas, cartão de banco,

cartão de parabéns à você,

uma nota de perfume, caderneta de

endereços que não visitará

aquele colar, aquele relógio de fundo

azul. a aliança de casamento ficou

a lembrança do seu rosto frio

ficou a gaveta. a chave.

meu coração mudo.

 

 

 

 

[imagens ©maisie cousins]

 

 

 


 

 

 

 

Penélope Martins é narradora de histórias, escritora, colunista de literatura no blogue Toda Hora Tem História, curadora do projeto Mulheres que Leem Mulheres, elaborado sob a premissa de estimular autoras a produzir vídeos e áudios a partir de suas leituras favoritas, a fim de somar na voz a autoria de outra mulher, incorporando sororidade e afeto. Advogada, pós-graduada em Direitos Humanos pela PUC Campinas, dedica-se à leitura em sentido amplo, pesquisando as possibilidades para re-significar narrativas individuais com auxílio da literatura, o que reflete em seu trabalho para infância e formação de novos leitores, assim como nas reflexões com educadores, mediadores e narradores de história. Entre seus livros publicados estão: Princesa de Coiatimbora (Editora Dimensão), Quintalzinho (Bolacha Maria Editora), Poemas do Jardim (Editora Cortez) e Que amores de sons! (Editora do Brasil). Escreve em Penélope Martins Literatura.