FOTOS DE UM AGOSTO REVELADAS EM ABRIL

 

 

A madrugada desliga brinquedos

e o silêncio pega a noite pra pensar.

Clico com os dedos, ponho palavras em poses.

Mas vem do ouvido da janela o ofício de um galo

que não se quer esquecer.

Era uma vez um galo lusitano numa lata de azeite

que veio pra cá há muito tempo daqui. (eis um close)

Era outra vez tia Cococa numa cozinha distante

rodelando o vermelho dos tomates e o branco das cebolas,

em paciência, sobre alfaces na travessa:

"Pedro não vem comer por estas bandas hoje não".

"Azeite!" (voz do tio Zacarias)

Azeite e Aceite é a mesma coisa mesmo em línguas diferentes.

(eis um zoom)

Minha forma inventada por meus pais inaugurou-se num agosto

no ano de sessenta e cinco, bem no dia vinte e dois.

Por isso gasto os folclores, fados dançam meus nervos,

sacis seduzem marchinhas, fui anjo de procissão,

mas perdi meu catecismo pra foto da comunhão

e o padre ralhou comigo.

O meu primeiro poema já sabia olhar pra trás,

uma saudade danada de tudo que carecia

do olho vivo de palavras pra poder mexer no tempo

sem virar estátua de sal.

E de tudo que escrevo há um traço indefeso

dos retratos.

 

 

 

 

 

 

CERTAS COISAS NA JANELA

 

 

Meu pai, homem de poucas palavras,

possuía uma certa ingenuidade cabocla,

mas nós víamos bússola em seus olhos.

Lembro-me de suas risadas

quando pra ele eu lia sobre um auto

e uma compadecida.

Depois, nos lembrávamos de nossa terra.

Histórias de João cambão da Costela do Cão

que passava na rua

e a criançada gritava em refrão:

'João cambão, Costela do Cão,

trocou a mulher por um pedaço de pão'.

 

Certas coisas sempre voltam

quando abro a janela.

 

 

 

 

 

 

O POETA QUER IR PRA CASA

 

 

Entre verdades e mentiras o dia acontece.

Talvez não deva levar em conta

aquilo que não sou e que não vou...

Os anos jovens contam-se lá para os lados do oeste,

isto é verdade.

Sinto-me inédito abrindo o livro

e aceitando com coragem os números naturais,

isto é mentira.

Meu destino prateado que julguei regar

reluz seu alumínio distante...

 

Então é isso que choro agora?

 

Nada têm a ver as folhas secas

decorando o chão das árvores

com o que deixo de ouvir nesse momento:

O latido de um cão guarnecendo seu dono

no pátio da noite...

A poesia não veste a roupa, não quer comer,

não fala coisa com coisa, não acorda nem dorme direito,

nem se adivinha em versos de seda pura.

Há de sair um terço de voz, insisto.

Assim que o dia se vestir de sol

em seu rosário completo.

 

 

 

 

 

 

SUPOSIÇÕES NUMA CONVERSA

 

 

Vai ver nos livramos de nós mesmos,

aguardando na fila por cópias de títulos

aduzidos pela ciente estrada,

documentos supondo identidades, abolições.

Apreciando nas vitrines mais arremedos.

Buscando coisas e coisas...

Obedecendo aos transtornos urbanos

e às placas explicando desculpas ao cidadão.

E, desastradamente, mantendo distantes

dos nossos sentidos

a beleza que urgencia o olfato, o toque,

o olhar e o silêncio dito das flores do campo.

Há raios por toda parte deste inverno

e dores de ouvido suportando gritos do mundo.

Daria meu reino inconsistente de pedrarias,

conquistas calculáveis

e avesso de indagações,

os ensaios tolos das prioridades

por uma pétala que tenho sequer.

Menos meus poemas — a palavra poesia, mãe que destina

e comanda meu gesto crédulo de aceitar o incontestável.

 

 

 

 

 

A RIZOTÔNICA

 

 

A ausência dos meus frequenta-me

na madrugada de rosto amarrotado, baldio...

A velocidade no inseto sai da mesa

pra partir outros ares.

O tempo é veloz, à noite não.

Nomes conhecidos por muitos

e que assoviam os becos sem saída

benzem as águas das carpideiras,

a ilha dos féretros, os castiçais

que ostentam em luz um corpo inerte;

os tecidos opacos e decisões sobre restos,

Orações de misericórdia ao pó.

E que ainda assim,

constados em verbetes no dicionário

da vida.

O mundo demógrafo exibe seu peso e o silêncio

Nunca diz seu nome...

O que sabem os epitáfios?

O parapeito das janelas é mais nítido,

sustentando horizontalmente ereto,

com suavidade estável,

as flores no talo esverdeado.

Os que não compreendem a morte

mastigaremos o que preciso for

pra moer a indagação intermitente

daquilo que o coração não pode bater

 

 

 

 

 

 

POUSO PARA UM SILÊNCIO

 

 

Era um bicho enciclopédico e, apontadas

avulsamente, as partes em setas:

Penas. Bico.

Asas — duas — uma esquerda e uma direita.

Pés — dois e com três dedos cada.

Olhos — dois — um do lado e outro do outro.

Mas foi inteiro que ele pousou no chão da mesa

quando eu tomava um café

sem palavras.

 

 

 

 

 

 

MALABARES PARA O COTIDIANO

 

 

Dentre os meus tenho o sotaque

mais estranho.

Meus versos partem em busca

de esconderijos pela casa.

Zanzam noturnos como ratos na cozinha.

Mas falo do palco, do trapézio,

do contorcionismo lexical da poesia.

Eles fazem sim com a cabeça,

simulam sobre os olhos atenção

e engatam com a prosa corriqueira:

O vizinho que pôs o lote à venda,

a ração do gado que deve ser complementar,

a ingenuidade capital que tinha nosso pai.

Fico por aqui, prendo nos olhos

feições secretas do mandacaru.

E da cozinha surge a voz da mesa posta.

Mas nos amamos sob a mesma lona

e construímos ali juntos

nossos trejeitos indulgentes.

 

 

 

[Poemas do livro Quanto Tanto. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015]

 

 

 

 

 


 

 

[imagens ©laura makabresku]

 

 

 

Marta Eugênia de Oliveira é baiana radicada em Alagoas. Graduada em Letras e Especialista em Linguística, é poeta e professora de Língua Portuguesa, Redação e Literatura na Rede Pública e Privada na cidade de Arapiraca. Ministra oficinas de Poesia em eventos da Universidade Estadual de Arapiraca (UNEAL) e Federal do Sertão (UFAL) de Delmiro Gouveia, também no SESC em 2016 pelo programa "Arte em Circuito". Publicou Quanto Tanto (Rio de Janeiro: Multifoco, 2015).