AS CIDADES SEDADAS
carta de achamento do desastre
1 / [trânsitos e paralisias]
os inframericanos ¦ a sobrecriatura
¦ escapes ¦ capturas ¦ as patrulhas de procuras
¦ as provisões de previsão do tempo exposto
entre os nervos do espaço ¦ nas póvoas ímpias
¦ blindados ¦ blecautes ¦ blocausses ¦
os silenciários ¦ sedados ¦ os suicidados ¦
(...) e aa quarta feira seguimte pola manhaã
topamos aves a que chamam fura buchos (...)
¦ os acostamentos ¦ as hosanas de sirenes ¦
nichos escuros do metrô em que mineram
os acossados consanguíneos ¦ os bichos derruídos
nos cediços do não éden ¦ a força-peso
em que se chumbam ferram meteoram
os consumidos subsumidos na pista da antevisão:
dois acidentes se aproximam nos fins da sinalização
2 / [área de embarque]
e me chamassem
na antessala da emergência
os remorrentes do acidente
encordoados de fisionomia
e recém-saídos da aparência
e me ensinassem
suas coisas de ciência curta
e demorássemos (convivas)
no entorno de suas terrinas
repletas de terror ameno
despedidos dos inânimes da carne sobrenadam sem alerta os decaídos
sobre o cimo incendiado do edifício: ceras leves sobre sua pele: acesas
3/ [use your seat cush for flotation]
e eu lhes tocaria
o fundo falso dos aspectos
suas células secretas
todas as áreas da inocência
e nos vulneraríamos
no mercado de futuros
ou nos espelhos populosos
carregados pelos pesos
de um piso pênsil em asas
incendiadas pelos usos
como se nos alimentassem
somente pães de explosivo
OS INQUILINOS
essas roupas estiradas na tormenta
sobrepairam a superfície onde o piso
se ressente do recinto em desalinho
e desvigam e desvidram desarvoram
e assentam sobre áreas sem serviço
deserções (uma desaparição que fica)
e os ossosos adensados dos amores erodidos
no organismo (os despedidos de hospedeira)
em carga bruta ou sobreveste que desventra
e a morada, muda a muda, desmorona
sua falta silhueta na hipótese do espaço
(onde as arribações do espaço passam)
PARKOUR
o transtorno do escritor saído à intempérie
o toma com os usos do medo e do impulso
tendido entre músculos e aços de edifícios
enquanto se sustenta em sobressalto inato:
a ameaça de seu vulto (sem salvo conduto)
tomando-se de assalto de um a outro pulo
no sobrevôo em falso, intempestivamente,
pendido e sem teto, no alcance do encalço,
ou choca contra a pele o escalpo do espaço
ou levanta, devoluto, e levita, evaporando
SE UM DIRETOR-EXECUTIVO
DO MERCADO DE FUTUROS
aos espelhos populosos
dei família
de entre úmeros e rádios
e umidades relativas
levantei-me
fiz de argila
um mercado de futuros
fiz polícias
mas caralho!
dor da luz nenhuma me lateja
(não consigo)
dei tumultos:
outra bala de borracha
no meu filho
O ENTRESSONHO
plano-sequência lento. travelling — em outro planeta, técnicos-cientistas trabalham numa estrutura metálica de cinco ou seis metros de altura, movendo-a sobre trilhos. ao fundo, os promontórios de pedra e a escuridão do cosmos — o ar é muito rarefeito e (eu sei) o oxigênio está na iminência de acabar. câmera subjetiva. elipses — corredor de edifício branco: no alto da escada, a luz concentrada e ofuscante flutua, aparentemente movida por força própria. duas enfermeiras se assustam — é a peste, dizem — correndo para dentro da sala. corro e a luz se movimenta em nossa direção. continuo fugindo por salas labirínticas. tumulto. a luz nos persegue. me refugio numa das últimas salas e sei: se ela vier até aqui não terei para onde fugir. passam instantes e finalmente sei que a luz se foi. ando pelas salas que atravessei, agora com instrumentos cirúrgicos e macas (o aspecto é de total assepsia), com pessoas sendo medicadas ou em observação. há inúmeros feridos, ensanguentados, e mais e mais em direção à porta, corpos calcinados como as vítimas de pompeia. me chama a atenção a enfermeira tomada por luminosidade que lateja sob a transparência da pele — eu sei, ela também foi contaminada.
FASES DA FISIONOMIA
[SOBRE O AUTORRETRATO DE OUTRA PESSOA]
a aparição em claro-escuro
sopesa o outro sobre a pele
entre uns nichos de tecidos
e as suas células moventes
(o que respira ainda é rosto
sobre o remoto sobrerrosto
nas carnações do movediço
e os seus maciços sinuosos)
mas a figura o escasseia
em levas de fisionomias
(pelame voz temperaturas
cabeça posta sobre a febre)
e a dentição sob o desenho
devora adentro a identidade
caso o disfarce não falseie
o impossível da aparência
todo mesmo é diferença
(idades da alteridade)
todo retrato é insciência
feição da sobrenatureza
DESAFINADOS
[SOBRE DUAS FOTOGRAFIAS DOS RADÜNZ]
e o mais grave das famílias
de instrumentos, contrabaixo,
no estranhamento do retrato
me descende os seus parentes
sangue afora, uns falimentos:
herbert, o avô ainda menino,
filia-se ao lauro, seu rebento,
o que me fecundou, descendo
o encordoamento de sua voz
em tom de surdear as peles
e ritmar (nos dois silêncios),
desde a origem, o batimento,
mais os ribeiros de meus dias
e os fins nas águas negativas
em que os avô e pai me foram
incendiando-se nos dentros
e o ateamento de arethuza
(a mais extrema dos radünz)
me antepassando a vozaria,
onde sonado eu contracanto
REPRODUÇÃO POR DESLIZAMENTO
[VERBETE DE UM FASCÍCULO DE INSCIÊNCIA]
jazem musgos no infra-mundo do jardim
sob o nicho que a bruma obra em úmidos
contra escuros que hibernam nos escuros
miúdos musgos que extremam os confins
nos secretos dos insetos que os devassam
quando deitam-se no cio de outro musgo
onde o sexo não tem caules nem escamas
e se enleiam nos deslizes contra os lodos
desde o fundo todo em húmus e enzimas
e se lançam em abismo de outros sumos:
no limoso são os inéditos da pele
que dormindo tocam nus de toda a relva
REPRODUÇÃO POR DESLIZAMENTO
[VERBETE DE UM FASCÍCULO DE INSCIÊNCIA]
jazem a olivetti lettera 35 cinza do jardim
sob ultimou o tempo ma obra em úmidos
contra escuros que hibernam nos escuros
miúdos um a olivetti studio 45 verde fins
nos se acabou baldia tos que os devassam
quando deitam-se no cio de outro musgo
o certidão nenhuma de nascença escamas
ou se enleiam nos deslizes contra os lodos
desde o a máquina-de-escrever-vergel ma
riscou a sensação antiga de outros sumos:
no o sol no teto: a casa se sustenta
qu pela silhueta ocam nus de toda a relva
ONDINA
[DO EXEMPLAR DISSECADO POR WALMOR CORRÊA]
dois ouvidos internos desde a escama escutam
voz de onda sonora em vibrações por segundo
onde o nado desanda a superfície das sombras
em labirintos de tato no outro mundo da água
e, entre ventre e dorso, corre a linha de escutas
que orienta no fundo as posições para o corpo
ou desventra no ósseo o membranoso do nada
quando emana o agudo o sono mudo de cegos
e o mundo grave de fora na endolinfa se chega
e se esconde no espelho, todo ouvidos, o peixe
CINQUENTA CRUZADOS NOVOS
os cruzados novos, custo caro de carlos,
quando circularam uma soma de ocasos
consumida em cruza de papéis e moeda:
o gasto do rosto no inconsútil da cédula
os bens e os haveres ou a cifra das juras
a fronte refuga ora fora do lucro?
em que marca de água uma cara valora,
em espécie e viva, mas perdida do uso?
repentinamente, a imatéria corrente
dissipa no vulto sua pessoa de monta,
de mora e de amor, desvalor e demora
centavo a centavo, o semblante sustenta
a cor inventária deserdada na pele:
a face consuma uma dor de cinquenta
MUSEU-MUNDO
eles não salgaram
a carne da cadela laika
eles não restauraram
um dos olhos de gagarin
eles não conservaram
o pé original de armstrong
: eles não se salvaram
os animais que humanaram a terra
colecionamos águas ¦ a substância sonial da água ¦
acumulamos dados sobre as transições de estados
mais medições de lúmen e o que volver ao mundo
¦ as carnações das nuvens ¦ as saliências líquidas
¦ nascemos fora da membrana ¦ além da enclítica ¦
¦ somos vindos do infra-leve ¦ livres de ovulação ¦
somos levas de extravivos extravivos extravivos
mas colheremos no subsolo
o insumo do que sobrou do sapiens
e esses resíduos terão reserva
nas umidades do museu do homem:
o dedo de galileu
o cérebro de einstein
o último exemplar
de ética a nicômaco
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