ENCALHES

 

 

A caravana persistente desvenda

um catálogo de explorados a cada visita.

 

A coleta sela um compromisso

entre extirpados; só há silêncios

neste varal de desistências.

 

O calejo revela um contingente

de adormecidos em órbitas de suor.

 

Nenhuma voz, por enquanto, foi capaz de ceifar

aquilo que sustém novelo tão infame que produz

o costume de costurar-se a si próprio

(bocas olhos ouvidos tripas),

que se impôs e impera, lento no sufocar,

com seu sopro de ar letal a comprimir

todos os ossos. De ecos e fósseis são feitos

os que restam.

 

Empreendido mais um turno das pedradas;

emparedadas, embora sem termo, as alternativas

de trajeto distinto, ao final só se veem

estilhaços e espatifados, em manutenção de sua

corredeira de negações.

 

 

 

 

 

 

ÂNIMO VÂNDALO

 

 

O vândalo é a voz que se insurge ainda em estágio

de descalamento, de grito desrecalcado,

de uivo que penetra

os vãos do vento ordenheiro e pede passagem,

polo humano-urbano alcançado após se principiar

uma tentativa nova de dessupressão,

por parte do ser desvivo.

 

Vândalo se faz rio da vaga que tudo pode tomar,

argamassa que prepara a terra para edifício vindouro.

Vândalo se desloca e desaloca as coisas de seu lugar

de vício e vileza. Vândalo institui o desafogo

ao desabrigo, um hangar para a angústia

que planava sem gosto pelos ares,

zero que se assume um, um que se percebe mil e mais.

 

O vândalo é o poeta encardido diante de seu precipício

postergado, é a hora de se jogar, o sopro reacendido

quando se vislumbra no horizonte o monte

que se achava perdido no mapa.

É o rosto da malta-plebe, dos pingentes e pobres-diabos,

reacionados de vigor, reincorporados de si.

 

Monstro! O vândalo assobia uma canção e ela

é bela e faz chorar e faz doer também. Vidros

não se quebram por merreca. Bancos não pegam

fogo à toa. Amém aos policiais confinados chupando

balas de borracha! Uma salva ao estilhaçamento

da desalma dos supressores de plantão!

 

 

 

 

 

 

A EDUCAÇÃO DOS SUPRESSORES

 

 

I

De método cirúrgico carece aquele a quem é

conformado instituir-se como um supressor.

Seu bisturi é de corte virtual, o apito sopra por imagens,

seus apagadores do moral alheio pontuam

em projetores de arranque pausado, protegidos

pelo barulho tanto em derredor.

 

Supressores são educados para lanhar:

não deixam sujeira, só ferida. A faca brilhosa

que aprendem a manejar só cabo possui e oferta.

Seu gume só lâmina salta é do olhar de sociopata-boi.

 

Déspotas, veem novelas e se entopem de

batatas fritas, pré-fabricadas. De sobremesa,

uma gelatina.

 

II

Um bom supressor jamais descuida

da criação de robôs de geladeira e homens de plasma,

assim como de se manter informado sobre

programas de trânsito e previsões meteorológicas.

O relógio funciona para o supressor profissional

não como um dispositor das horas que passam sem fim,

mas como um contador do tempo útil a dispor

para a organização das coisas.

Um supressor acredita no que está fazendo,

mas isso também pouco importa.

 

O supressor é antes de tudo um prático.

Cavalo da objetividade, deve, além do nada,

nem se preocupar com o ser nem o haver-se.

Um supressor doma seus impulsos, adestra

a força implosidora, os amores brutos,

a intensidade tola com que muitos

tenderiam a perder seus dias em tarefas

dignas de espíritos ingênuos.

 

Por fim, um supressor médio-sábio — gênios

de qualquer arte são nocivos ao produto comum! —

multiplica e divide com os demais seu pesadelo são:

tratar com a seriedade de um ceifeiro o ofício

encetado de racionar a vida.

 

 

 

 

 

 

O RAMAL DAS HESITAÇÕES SEM FIM

 

 

A vida não merece nossos sonhos.

(Antônio Fraga)

 

 

A vida despendida gira em voltas

cujo eixo se desloca louco, pêndulo

no vento que trabalha o destino.

O rumo, tantas vezes, tem feitio

amarguroso ou, no mínimo, um jeito

ambíguo no acarinhamar, quando se faz.

 

O osso do rosto ruge e entope o tempo

que resta, com seus abandonos. O ranço

do que ficou sem tino tem na espera manca

seu consolo. A dúvida indevida é uma rota

que vira limbo, em vértice de ponto achado

mas partido. Distenso, o conto vai perdendo

o seu enredo, devagar para o nunca.

 

O modo de desvirar esse oco sem âmago

toma contornos indefiníveis, o olho

não está mais nu. A sombra jaz no ambiente

pegado em pouco afeto, que se permanece.

A linha invisível, para a dissolução do estado

vigente, encontra-se ainda rabiscada, em voga

porém silenciada, sob escombros, em febre

dissidente. Falta o passo, um primeiro e sonoro

Basta! — mas quem é que vai?

 

O sonho adormece, então. Sem explicações,

mas ainda sonho, ainda vida, ainda espera. E só,

entre as sobras de um saldo liquidado.

 

 

 

 

 

 

A SOCIEDADE DO ESCAPE (II)

 

 

a Raoul Vaneigem

 

 

Toda a morte atual se concentra em um anuário

de desencontros. O desencontro é a unidade da fuga,

o jugo autoimposto a que se submete o corpo

vagante do escravo que ainda respira, por (tão) pouco.

 

A desistência demove o participante quando

diante de seu próprio jogo, e consequentemente

da sua possibilidade de achar o que perdera,

sem saber, para a rotina que centrifuga

sua experiência. O fracasso sentimenta

a passagem nula, pelo mundo,

da zumbizada operante por imagens.

 

O espelho-tevê dos vivos-mortos se estrutura qual

um abismo colorido, cumprido com negações.

Nesta peça em desenredo, as trocas se dão por via

digital, com toques de luva consentidos entre

peles de plástico, tapas sem ardor nem graça,

trepadas sem odor, redes de humor

sem húmus nem torpor.

 

A reta da corrida se enxerga de olhos tapados;

para cuidar as carências, os prazeres convergidos

ao virtual pelas feras bestas acanhadas,

o canto seco e opaco entoado

em um vale de lágrimas contidas e risos amordaçados.

 

Quando a noite termina, os ratos voltam

para suas cabanas-apês, para se esquecerem de novo

de si, e zerarem também por fora.

Na jugular, só a marca, apenas a flor-ferida de outra

chance perdida de contorno da morte em vida,

um sertão de desertos e seu rosário de desterros.

 

 

 

 

 

 

MUNDO Ê

 

 

À espera de dias vermelhos

sopram adiante nossas velhas cinzas.

 

 

 

 

 

 

O QUINZE-TUDO

 

 

Ah, meus quinze anos!

 

Com quinze anos levei um tiro na bunda,

comi a professora de português, passei

um cadiço de fome e desabrigo,

trabalhei na lanchonete americana escrota

com sua ética protestante de minhoca,

conheci quem eram meus pais, tracei umas

putas lúdicas de graça em Copacabana

e descobri que meu futuro seria escrever,

me embriagar, criar coisas inúteis e

com elas homenagear

a luta dos indiferentes à queda

e a algaravia dos quebradiços de gente,

sob o céu de deuses cínicos. Pelo menos

até que na avenida só permaneçam

o trem vazio o ônibus enguiçado a bicicleta sem trava a moto estraçalhada

e alma alguma na carne frágil, cena incerta.

 

Eu olhava longe.

 

 

 

[Poemas do livro Pedagogia do Suprimido. Autografia, 2015]

 

 

 

A SOCIEDADE DO ESCAPE

 

 

a Guy Debord

 

 

Toda a vida atual consiste

em um seminário de distâncias;

a distância é uma semana invisível

num calendário perdurante,

uma estância perdida onde não se há

o que se é, e o que seria também sucumbe;

um instante posta-se noutro

e o próximo desafago é apenas uma porta aberta

para um longe de afetos frustrados;

o dia encosta na noite, de relógio-alarme

em punho, cerrado de rotinas;

a voz imposta-se no grito de uma árvore

presa em tela seca na garganta;

e por fim uma chama fica cega,

quando a cor de tudo em torno é fuga, sem exílio.

 

 

 

 

 

 

10 SOLUÇÕES SUBJETIVANDO

O DESCAMINHO DOS SERES

 

 

1. Buscar uma melhor visualização do chão.

2. Dependendo do público-alvo, obter namoros de uma mulher do tipo nuvem ou de um homem do tipo pássaro.

3. Criar nichos no ralo do banheiro social.

4. Empregar aranhas oriundas do mercado informal de insetos.

5. Gestar pessoas dentro do olho esquerdo, se destro, ou do olho direito, se canhoto.

6. Cheirar os sentimentos para eles adquirirem uma cor mais agradável.

7. Desvirgular as razões no meio de sua sintaxe.

8. Seguir sem preestabelecimentos direcionais.

9. Traçar paralelas de modo a aproveitá-las de referência para encontros amorosos.

10. Dançar deitado na ponta dos pés.

 

 

 

 

 

 

SUCESSO

 

O gerente me pediu: seja pró-ativo

 

Eu obedeci: plantei uma árvore

 

Que fez notícia na empresa

 

 

 

 

 

 

MANIFESTIM

 

 

Eu faço poesia-quase.

Monto na beirinha do caos de meu porto,

sacolejo minhas saliências,

esfrego-as no poste e vou andar.

 

Eu faço poesia-quase

como se estivesse (prestes) a comer um xibiu,

conforme desdiria meu cumpadre Chico Doido de Caicó.

 

Só boto laço em poema

depois de macerar o meu dia maçante,

cuja carcaça eu carrego no cangote.

 

Só broto traça de palavra

pois o troço me atrai

— e porque eu sou meio trololó.

Mastigo uma dona que chamo saudade

e me meto em entres,

raramente encapuçado.

 

Eu faço poesia-quase:

solto frase abilolada para ajudar a prejudicar lirismos

que se pretendam retos.

Só breco um poema para fins de embromá-lo

em suas curvas de briga.

 

Faço então poesia-quase;

e pode ser que eu inté cause espelhança

a partir deste meu calango de movimento.

 

 

 

[Poemas do livro A Perspectiva do Quase. Arte Paubrasil, 2008]

 

 

 

ANULADO

 

 

Ando dizendo

palavras em branco

 

Meu caminho não permite

pontuação

 

Minha sintaxe desmanchou-se

nela mesma

 

Estou desvalido de

ideias formas causas

 

Só me restam algumas

frases                                       falas

 

Fragmentos me faturam

(cada pedaço é cada pedaço)

 

Me encontro meio sem

e sem meios para

 

Me desalimento

com zeros                                                de dores

 

Desprovimentos me exageram

me impertinam

 

A invalidez me doutrina

Conclusões me observam

 

E eu me escasseio

pelo ralo

da rotina

 

 

 

[Poema do livro Idade do Zero. Escrituras, 2005]

 

 

 

 

[imagens ©paulo medeiros]

 

 

 


 

 

 

 

Zeh Gustavo é músico, escritor e revisor de textos. Canta nos grupos de samba Terreiro de Breque e Samba da Saúde e nos blocos de carnaval Cordão do Prata Preta e Banda da Conceição. Em 2016, participou da banda musical da peça As festas da Tia Ciata, com a companhia Fanfarra Carioca. Na literatura, publicou, entre outros, os livros de poesia Pedagogia do suprimido (Verve, 2013; Autografia, 2015), A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008) e Idade do zero (Escrituras, 2005). Em 2016, seu texto "Ninguém pode explicar nem a Lapa nem a lida, num conto curto" venceu o Concurso Lefê Almeida e foi selecionado para a coletânea Para ler o samba (Ímã, 2016), do Festival Lapalê. Em 2015, integrou o livro Rio de Janeiro: alguns de seus gênios e muitos delírios (Autografia), com o perfil "Sérgio Ricardo: a toada firme de quem sabe o mar"; a coletânea de crônicas O meu lugar (Mórula), com "Serpentina avoa, que hoje tem barricada!"; a antologia Pele de todos os sangues, do coletivo Sarau dos Sambistas, com uma série de poemas; e a Revista da Academia Carioca de Letras (Batel), com o conto "Por sobre o ruído rude da rotina besta". Em 2014, seu livro de contos Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes (inédito) venceu o Prêmio Lima Barreto da Academia Carioca de Letras. Em 2012, participou da coletânea Porto do Rio do início ao fim (Rovelle, 2012), com o conto "Comuna da Harmonia". É um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro no Porto), em suas edições de 2012, 2014 e 2015.