misturar-se

 

 

Misturar-se

à cidade que nasce

no amanhecer de cada dia

como quem volta da padaria

quando em verdade

está-se a tornar

da sexta-feira

 

é uma arte

(e um deleite

ao sol nascente).

 

 

 

 

 

Linguagens

 

 

Cada pássaro é uma palavra.

Mas não a palavra pássaro.

Uma palavra em si.

O pintassilgo é uma palavra sem nome,

que não se escreve nem define,

mas pulsa e voa.

E outro pintassilgo é palavra diversa,

de plumas e asas, desconhecida,

e ainda mais estranha

que a palavra pin-tas-sil-go,

que não quer dizer nada.

Os seres são a linguagem do mundo,

palavras vivas.

E as línguas que os homens falam

não são.

Assim: não sendo.

Simplesmente não.

 

 

 

 

 

 

noites

 

 

toda e qualquer

noite,

tenda de quereres

e açoites,

é túnel

de tanino e cardamomos,

é foice

rasgando a si mesma, própria noite.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Este resquício

melancólico

de já ter sido

alguém com quem

se encontra

 

dói feito acha,

feito chaga.

 

Este pressentir,

este dar-se conta,

este reconhecer

um quem

(que nos assombra)

termos sido

 

é chaga aberta,

acha em brasa.

 

 

 

 

 

 

Samaria

 

 

Eu soprei pedras sobre os abismos

com o bater de asas do meu medo,

como quem bate dentes.

Pressenti quando os oceanos se abriram

por um infinitesimal segundo

apenas para engolir a luz do mundo

para sempre.

E vi, no escuro puríssimo,

de cada rocha soprada

brotarem flores de lava,

a se despetalar em lanças de fogo,

cauterizando o silêncio imenso

em cicatrizes de rostos

dos filhos meus.

Cada sonho de cada homem

veio beijar-me a face,

e os pesadelos dos inocentes,

estapear-me,

feito horda de beija-flores,

alguns com o ferrão de marimbondos.

O ar em redor me tirava o fôlego

com seu invisível açoite,

e mesmo bebendo sôfrego

o sangue espesso das minhas esperanças,

não aplacava a sede em meu peito

que perdurou até a última pedra soprada

tocar o chão, quando tudo cessou,

e da vida acordei.

 

 

 

 

 

 

Arequipa

 

 

Sobre o terraço

de pedras brancas

— vulcânicas —

dos claustros

da companía,

finda-se o dia.

Sobre as abóbodas

da jesuítica

igreja mística

(aos pés d'el Misti

toda Arequipa

parece mística),

o quarto

crescente.

 

Uma mesquita,

o oriente.

Silêncio

de céu

azul de areias.

 

 

 

 

 

 

Cairu

 

 

Chuva caiu,

hoje,

em Cairu,

e por momentos pequenos

quedamo-nos ilhados

em pleno porto,

escondidos sob o cais,

como se fossem

suas ripas podres

o entrelaçado

dos manguezais.

 

E assim, como se tivesse

num repente decidido

desistir de molhar o rio

(mais, mais, mais)

cessou a chuva seu silvo;

zarpamos ao mar à frente

dando adeus ao cheiro do chão

que deixávamos para trás.

 

 

 

 

 

 

perfil insular

 

 

eu vi teu perfil a contramar.

na diagonal da costa leste

da ilha daquele instante,

o contorno longo do teu corpo

esculpido a ondas e sol

valeu o dia

e um amor pra vida inteira.

 

 

 

 

 

 

Skate & Surf

 

 

skateando orla afora,

(torcendo a coluna

para além de qualquer órbita

à visão de tantos corpos

transbordando das sungas)

olhando pranchas

e tripulantes,

primeiro penso,

arrogante:

 

surfar no macio

das ondas do mar

é fácil;

difícil

é sem água surfar

a dureza do asfalto.

 

Mas lembro-me

do sal,

do impacto,

da falta de ar,

do tempo

sem chão

e sem teto.

 

Reconheço:

o mar

(também)

é concreto.

 

 

 

 

 

 

à moda de manoel de barros

 

 

a borboleta é uma fragilidade

que avoa.

 

 

 

 

 

 

Apropriações

 

 

Assim como Pierre Menard

reescreveu Quixote

— na versão de Borges —

sem lhe alterar

vírgula ou sílaba sequer,

eu me aproprio

e vos digo:

eu sou, mais que poeta,

(mais que Pessoa)

o próprio poema

em linha reta.

 

 

 

 

 

 

para Tatiana Salem Levy

 

 

Essa coisa de

"guarda o sal

(que eu gosto quero anseio

lamber o mar do teu corpo)"

pode funcionar em literatura,

mas não na vida real.

Vai pro banho.

 

 

 

 

 

 

Tripas expostas

 

 

Lanceto o poema

e exponho, em carne viva e pus,

o próprio instrumento, em si,

(em seu dentro) de minha expressão.

 

A pena é bisturi, ao qual o verso

se abre em incisão

corrida pelo papel branco,

paciente sempre a qualquer experiência,

qualquer cura, qualquer erro,

qualquer transformação.

Senhores, o fazer poético não é mais belo

que qualquer outro fazer.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Thássio Ferreira: "Nasci em São Gonçalo, cresci em Niterói e moro há dez anos no Rio de Janeiro. Sou, portanto&poeticamente, um cidadão da Baía da Guanabara. Formado em Direito pela UERJ, hoje trabalho no apoio a projetos de preservação ambiental e desenvolvimento socioeconômico da Amazônia. Participei de uma antologia dedicada a Fernando Pessoa (De Pessoa para Pessoa, ed. Litteris, 2010), e publiquei em 2016, um livro de poesia: (DES)NU(DO), em pequena tiragem da editora Ibis Libris".