foi assim ó


o sol dormia de borco
roncava igual o vovô

a lua clareava o quintal
o galo desceu do poleiro
bateu asas e cantou
cocorococóóóóóó
acorda sol preguiçoso
o sol piscou só um olho
babava no travesseiro

o galo cantou de novo
cococorococóóóóóóó
despertou os galos todos
chamou também os cachorros
cococorococoóóóóóóó
au au au au au
acorda sol vagaroso

os passarinhos o pato
firifiu firifiu quá quá quá
a galinha também veio
ajeitou no ninho o ovo
o sol remexeu-se um pouco
desprendeu um raio e outro
só depois o facho inteiro

cococorococóóóóóóóóó
firififiu au au au
quá quá quá
cocoricó
 
 
 
 
 
 
tocaia


o gato pula
o passarinho escapa

azar de gato é passarinho
ter asas
 
 
 
 
 
 
monstros


a lagartixa me fita
a lagartixa me olha
eu na cama fico rija
lá no teto ela se move
e faz isso lentamente
como a medir o perigo

temo que ela despenque
mas não sei o que ela pensa
eu sou tão inofensiva

(nós assim passamos horas
a temer a morte a vida)
 
 
 
 
 
 
nas franjas do horizonte


a minha história de hoje
enlaçada de bonina
pingada de água de cheiro
é a história duma rosa
dum beija-flor todo prosa
e das tramas do destino

no corredor que é a vida
lá pelas bandas de lá
não sei se sorte ou azar
ou se já estava escrito
uma rosa perfumosa
entreabriu mui dengosa
lindas pétalas de seda

voava nos arredores
um beija-flor aprumado
de colarinho azul claro
querendo comprar bolinhos
e ao ver tão rubra rosa
assanhou-se chegou perto
gostou da cor e do jeito

bons dias bela menina
posso ficar por aqui?
:
tu que sabes beija-flor
não te posso fazer sala
tu já és comprometido
além do mais és metido
e estou muito ocupada

ele insistiu implorou
beija-flor é bom de bico
a rosa não resistiu
é doce rosa amorosa
os dois logo se entenderam
e teceram num instante
aquele romance ilícito

ao despencar o astro-rei
na hora de ir-se embora
o beija-flor apressado
limpa o bico alisa as asas
pisca os olhos miudinhos
observa um lado e outro
depois bate em retirada

toda semana é assim
o beija-flor tem desejos
e finge comprar bolinhos
a rosa gosta dos beijos
desabrocha sem recato
e se repetem os fatos

(esta história não tem fim)
 
 
 
 
 
 
cruel


tens estilingue no olho
e eu sou passarinho
 
 
 
 
 
 
ensinamento
 
 
sapo pai chama o menino
vem aqui meu girininho
vou te ensinar umas coisas
logo logo terás pernas
mas perderás o teu rabo
co'as pernas virão os pulos
não podemos é ter tudo
e rabo algum fará falta
 
(a lagoa é boa)
 
 
 
 
 
 
tempo quente
 
 
o céu se zanga
fala grosso
estala o chicote
e a nuvem chora
como criança
 
 
 
 
 
 
psssssssssiu
 
 
fecha o bico passarinho
nenhum pio
 
abelhas não zunam
gatinhos não miem
cãezinhos silêncio
o vento se cale
a chuva não chie
:
francisquinho dorme
 
 
 
 
 
 
magia


tão pequenino o ipê
tão carregado de sonhos
de responsabilidades
que levar flores ao colo
cuidar do tom da beleza
com tempo seco
é milagre

 

 




criancice 


a lagarta subiu numa flor
roubou duas pétalas
e voou
 
 
 
 
 
 
na antártida

 
a foca e o leão-marinho
resolveram se casar
:
a noiva toda de branco
(enfeitada com conchinhas)
o noivo — terno e gravata
(bigodes bem aparados)
os pinguins a caráter
as tartarugas os ursos
os parentes dela e dele
:
o sol por testemunha
 
 
 
 
 
 
patota
 
 
dona pata sai do ninho
a ninhada corre atrás
no caminho tem um lago
a família foi nadar

dona pata pula n'água
os patinhos um a um
como fossem dez barquinhos
deslizam na superfície

dona pata alisa as penas
volta à casa — que beleza
põe os filhos sob a asa
e depois fazem a sesta
 
 
 
 
 
 
bruxinha
 
 
deixo-te o caldeirão
o corvo o gato a vassoura
as receitas de poção
(usufruto meu)
e a palavra
abracadabra
 
nada mais há de valor
que a vovó te possa dar
:
é pobre como
joia
 
 
 
 
 
 
noturno
 
 
pôr dormir o sol arredar a nuvem
e com pau de fósforo acender a lua
e as estrelinhas
 
 
 
 
 
 
irmãos
 
 
este mundão de teu deus
esta coisinha de nada
 
em cada esquina
uma estrela
 
e o mundo dentro de casa
 
 
 
 
 
 
xixi
 
 
nesta noite tem morcego
tem aranha tem enxofre
 
neste medo tem capeta
tem veneno tem chocalho 
 
nesta manhã tem menino
deitado dentro do lago
 
 
 
 
 
 
bashô em mim


todas as manhãs
as rãs beliscam o lago
cantam para os sapos
 
 
 
 
 
 
galanteio
 
 
passarinho me visita
vem alegre tão limpinho
o biquinho afiado
acho até que o passarinho
quer casar comigo

 

 

 

 

[imagens ©laura berger]





líria porto. mineira de araguari, professora, poeta, dois livros editados em portugal (borboleta desfolhada e de lua) e dois no brasil (asa de passarinho e garimpo - finalista do prêmio jabuti 2015), autora do blogue tanto mar, participa de vários sites, jornais e revistas na internet, entre eles escritoras suicidas, zunái, blocos online, considerações do poema, poesia perfeita, mallarmargens e de algumas antologias, entre elas, dedo de moça e memórias embaralhadas. reside em araxá, interior de minas gerais.

 

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