Uma misteriosa amizade

 

 

"A menina era criatura de grande capacidade de amar".

Clarice Lispector, "Uma história de tanto amor"

 

 

A cidade onde Marcela morava com sua mãe era pequena como um ovo. Em uma hora, dava para conhecer o lugar de ponta a ponta, e ainda sobrava tempo para tomar um sorvete. O lugarejo chamava-se Além do Brejo, e ficava no coração das Minas Gerais.

Havia ali apenas uma praça, algumas ruas estreitas, um rio também estreito, mas cheio de peixes gordos, um colégio de grandes portões brancos, onde Marcela estudava, e mais um hospital, uma farmácia, cinco lojas, uma mercearia, um mercadinho, um açougue, uma padaria e nenhum shopping center.

Como não tinha praia nem cachoeira, a brincadeira da criançada acontecia sempre na mesma praça, onde havia: um pipoqueiro, um baleiro, um teatro de fantoches, uma banda de música e um palhaço. O Antônio era o vendedor de bolas de gás coloridas, que faziam a estamparia da praça. O José era o encantador de flauta, que tocava para as crianças enquanto contava histórias.

A casa de Marcela era amarela e ficava na esquina da Rua Direita, bem frente à praça onde aconteciam os eventos da pequena cidade. Esperar a praça encher de crianças e de festejos era o máximo de felicidade que a menina conhecia.

Mas quem disse que a alegria não pode aumentar depois que já se está feliz?

Um dia, uma novidade veio colorir ainda mais o teatro da praça. Um caminhão carregado de pintinhos começou a rodar por ali. O motorista surgiu falando:

— Olha o pinto, olha o pinto, quem vai querer?

A criançada correu para ver. Todas queriam levar um mascote para a casa!

— Ah, mamãe, me dá um pintinho, por favor, mamãe, eu tomo conta dele, ponho na cama, faço dormir, dou comida... — pediu Marcela, assim que viu o caminhão aparecer diante de seus olhos.

—  Não, Marcela, bichos dentro de casa fazem muita sujeira.

E ponto final. Nada de pinto na casa de Marcela.

Foi uma conversa muito ou quase definitiva. Dona Celina era caprichosa por demais com a sua casinha amarela e não podia aceitar que um bicho intruso pudesse entrar e desmanchar o apuro com que ela tratava seus móveis e pertences.

Marcela ficou triste. Embora Dona Celina tivesse seus motivos, a menina também tinha as razões dela e não conseguia entender por que um pinto faria tanta sujeira na casa — se ele era pequeno, faria uma sujeira pequena, do tamanho dele.

Até que um dia, Marcela, que era muito boa em matemática, surgiu com a seguinte conta pronta e preparada:

— Mamãe, a gente podia fazer uma troca. Eu fiz essa conta:  5 presentes de natal + 3 presentes de aniversário + 5 presentes de dia das crianças = 1 pintinho. 

Era uma conta estranha. Como 13 seria igual a 1? Na cabeça de Marcela funcionava perfeitamente. Afinal, 1 pintinho valia tanto que tinha o peso de 13 presentes ao todo, sendo que, como cada um deles só se ganha uma vez por ano, quer dizer que Marcela ficaria, por exemplo, 5 anos sem ganhar presente de Natal! Era uma prova do quanto ela queria ter um pintinho...

O ano já estava terminando. Marcela era realmente uma aluna fabulosa. E não tinha o hábito de pedir presentes fora de hora. Aquela conta amalucada mostrava à mãe que a menina queria MUITO o pintinho, mais do que qualquer outro presente na vida...

— Ok, Marcela, você venceu. Mas me promete que vai limpar toda a sujeira!

— Sim! Prometo que vou escolher o pintinho mais educado do caminhão. Ele vai saber se comportar!

Chegou o dia, enfim, em que o caminhão abriu as portas para que Marcela escolhesse o pintinho mais "comportado" de todos. A escolha demorou quase uma tarde inteira, mais um pedacinho da noite. Eram todos iguais, como Marcela saberia escolher um diferente no meio daquela multidão amarela?

Depois de todo este tempo, a menina apontou seus dedinhos para um pinto que olhou para ela com o desejo de virar amigo. E parecia ser muito comportado pelo modo como estava aninhado no caixote.  Imediatamente deu a ele um nome:

— Meu amigo, o João Pinto!

E lá foi o João Pinto para a casa amarela, onde seria tratado com honras de pessoa: comida na boca e um travesseiro para descansar à noite.

Quanta alegria! Marcela iria levar João Pinto à pracinha para brincarem juntos — sempre com cuidado para ele não se machucar, claro.

Acontece que não durou muito aquela felicidade. Logo apareceram os primeiros problemas...

Marcela não sabia que não podia tratar João Pinto como se fosse um irmão menor e insistia em colocar o pintinho "sentado" no sofá da sala para assistir à televisão ao lado dela.

E não é que João Pinto, apesar de toda a educação e bons modos, fazia cocô no sofá novo? Dona Celina tinha avisado à menina que o pintinho precisava ter um canto só dele, na área, e não dentro de casa!  Marcela não sabia limpar direito o cocô, e logo o sofá foi ficando uma sujeirada só...

Até que um dia Dona Celina falou:

— Marcela, eu avisei que não queria sujeira. Você me prometeu! Sinto muito, mas vou devolver o pinto ao caminhão.

Seria o fim da amizade de Marcela e João Pinto!

E assim foi. Dona Celina foi ao caminhão devolver o pintinho para nunca mais aceitar bichos em casa.

Marcela ficou muito triste. Não conseguia desativar o choro. Chorou a noite inteira de saudade do João Pinto.

No dia seguinte, uma coisa misteriosa aconteceu. Quando Dona Celina abriu a porta da casa para pegar o jornal, quem estava de pé, no tapete da rua? João Pinto em pessoa e plumagem!

Ele tinha fugido do caminhão e conseguido encontrar o caminho da casa de Marcela! Como isso foi possível? A mãe tinha devolvido o pinto para o dono do caminhão e não havia dúvidas disso, não estava ficando maluca!

Ninguém entendeu nada. Mesmo sem entender, Marcela ficou radiante. Não quis tentar entender o mistério. Ninguém saberia explicar como aquele pintinho conseguiu guardar o caminho de volta à casa da menina... Como explicar o impossível?

Por conta do mistério, e porque achou que ali havia uma amizade de ouro, a mãe acabou deixando o pintinho ficar, só fez questão de providenciar um canto muito confortável para João Pinto fazer seu cocô em paz sem sujar o lindo sofá novo de Dona Celina.

Em Além do Brejo, ninguém até hoje conseguiu descobrir como João Pinto foi capaz de realizar aquela proeza. A amizade é assim: um mistério amarelinho.

E nenhum lugar no mundo é tão pequeno que não possa guardar grandes segredos.

 

FIM

 

 

 


 

 

 

 

Claudia Nina. Jornalista e doutora em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda, com tese sobre Clarice Lispector, publicada pela Editora da PUC-RS (A palavra usurpada, de 2003). Trabalhou como professora-visitante na UERJ, em Teoria Literária. Dessa experiência, nasceu a base da pesquisa para seu segundo livro: A literatura nos jornais: crítica literária dos rodapés às resenhas (Summus, 2007). O livro A barca dos feiosos, com ilustrações de Zeca Cintra, foi sua primeira obra de literatura infantil, lançada em 2011. O texto, que fala de diversidade, foi apresentado como trabalho final de curso do Publishing Management — O negócio do Livro, pela Fundação Getúlio Vargas. Pela Editora DSOP, publicou seu segundo livro infantil, Nina e a Lamparina, com ilustrações de Cecília Murgel. Também publicou o perfil biográfico ABC de José Cândido de Carvalho (Editora José Olympio), e os romances Esquecer-te de mim (Editora Babel, 2011) e Paisagem de porcelana (Rocco, 2014). Os lançamentos mais recentes são os infantis A misteriosa mansão do misterioso Senhor Lam (Vieira & Lent, 2015) e A Repolheira (Aletria, 2015). Participou, em 2014, da antologia Vou te contar (Rocco), com o conto "Na solidão da noite". É colunista da Revista Seleções (Reader's Digest). Em 2016, participou da 3ª edição do Printemps Littéraire Brésilien e foi finalista do Prêmio Rio de literatura.

 

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