A Amante

 

 

Assim que a noite caiu na aldeia que beirava o rio, Manuelina não esperou a terra esfriar do calor do dia: ela se agachou, estendendo seu corpo rente ao chão, encostou a cabeça no solo para ouvir suas entranhas, sem se importar com o olhar do marido que se embalava na rede da varanda da casa, um pequeno cubículo feito de madeira. Ele nunca a perdia de vista.

Manuelina sentia a terra respirar, exalar do chão bafos quentes e úmidos que traziam os sons das feras da noite. Não era loucura dela, apenas medo. Medo de que a quietude da mata, que nunca era calada, trouxesse para perto de si um mundo de horrores. O marido se irritou:

"Deu para dormir no ventre da terra agora, Manuelina?".

"Compadre disse que tem uma onça rondando a aldeia!".

"Onça sempre teve!".

"Matam, comem e vão dormir com a barriga cheia, sem pena e sem culpa! Vamos embora daqui, Romualdo, vamos para a cidade!".

Aquiete, mulher, vá tratar de dormir!".

"Pois é a floresta que iguala todos aos animais. Eu te peço: vamos embora!".

"Vai você, se quiser!".

Ela queria, mas para escapar de um lugar era preciso escapar de si, ser outra sendo a mesma e disso Manuelina não era capaz. Ela regressava ao leito, mas não dormia, vagava entre o sono e a vigília com medo de ser morta, com medo de se perder num lugar que havia tempos não chegava estradas, notícias ou estranhos. Se rezava, era para achar uma terra que pudesse florescer, embalar sonhos, plantar sementes. Sementes, ela não teve nenhuma. Seu único filho nasceu morto, tímido para enfrentar o mundo que ia se abrir. A mulher rasgou uma boca na terra para que engolisse seu rebento sem força de germinar e, agora, o solo secava sem gestar outra semente. A natureza tinha um mando silencioso, que dispensava palavra.

Ela se guardava assim, imobilizada pelo temor, uma morta-viva esperando a terra ou algum bicho a engolir. Acordava antes do nascer do sol, colhia a lenha para acender o fogão, buscava a água na beirada do rio, acendia o fogo, coava o café, cortava ripas de madeira para curar as feridas abertas na parede da casa, protegendo-se melhor dos bichos que rastejavam e das feras que andavam pelo solo com a liberdade displicente dos seres que pertenciam à floresta. Seu marido cuidava da criação logo no início da manhã: um cachorro, um cavalo, uma serpente de estimação e um porco. Alimentava-os bem e, depois, passava o dia pescando com os amigos no meio do rio.  A ausência de Romualdo enchia Manuelina de suspiros e sombras. A mulher perdia o apetite, perdia o sono, perdia peso, perdia até o pensamento que flanava no ar querendo fugir, longe de tudo, como uma louca transbordando de insensatez.

Um dia, o marido de Manuelina entrou em casa, balançando seu mundo. Calcou o pé na varanda com tanta força que as paredes tremelicaram e um baque surdo ribombou em cada canto do ambiente com indignação. Ele gritou, enquanto adentrava a morada:

"Me contaram que você esteve conversando com o compadre!".

"Fui ver se ele me emprestava a arma!".

"E o que você vai fazer com uma arma? Matar algum bicho ou se matar?".

"Há muito já sou bicho!".

"Bicho, não. Louca, talvez!".

"Não sou louca, mas posso acabar ficando!".

"Pois de agora em diante, você fica em casa porque lugar de bicho é na jaula!"

Manuelina sentiu seu rosto arder, as pernas formigarem, os braços adormecerem. Brigava com seu inferno interior, regido por leis que nem Deus podia explicar. Não rompia as amarras porque tinha medo de não conseguir atravessar o rio, tão infinito feito o vazio que a habitava.

Nesta noite, depois de ouvir as entranhas da terra, recostou-se no leito sem pregar o olho. O marido, ao seu lado, ressoava como um motor de popa, alheio a qualquer movimento. Então, Manuelina se sentiu fluir, viajando contra o destino, vagando pela floresta, sob o manto da noite que descia sobre a aldeia e a cobria de estrelas. Sentiu o vento balançar os galhos retorcidos das árvores, sentiu as nuvens se rasgarem no céu, sentiu a chuva umedecer a terra e sentiu o cheiro ácido do bicho que se aproximava.

Seu pelo estava molhado e ele começou a lhe lamber. Primeiro, molhou com sutileza suas mãos pensas para o lado de fora da rede, depois ele subiu em seu corpo e passou a língua por suas curvas com avidez, como se fosse um viajante a explorar um território desconhecido. Isso a encheu de prazer. Ela se despiu para que o animal a devorasse com a gentileza de um estranho. Depois do ato amoroso, ela adormeceu na mais completa paz.

Acordou na manhã seguinte com o cachorro ao seu lado na rede, também dormindo. Lembrou do sonho, da noite, do ato que lhe trouxe a tranquilidade do espírito. Surpreendeu-se. Estava envolta em suor, um tanto gosmenta e malcheirosa. Resolveu tomar banho no rio, antes que o marido acordasse. Perturbou-se. Se antes permanecia imobilizada pelo temor, agora se imobilizava pelo prazer, completamente à mercê do apetite animal. Passou o dia a pensar no que tinha lhe sucedido à noite. Ela, que sempre se mantivera contida, agora se guardava em segredo.

O dia se esvaiu e logo a noite caiu novamente. Manuelina, longe de temer o sono, passou a desejá-lo. 'Estou louca', pensou. Fechou os olhos, respirou fundo, sorvendo o ar que a envolvia e se preparou na rede. Não conseguiu dormir. Foi até a varanda e se deitou no chão, encostando o ouvido à terra. Então, o cheiro ácido de bicho a envolveu num segundo. Ela se despiu, fechou os olhos e se entregou às carícias. O animal a cavalgou como um garanhão, descendo os vales, subindo as montanhas de seu corpo que se contorcia de prazer. Ela não era mais dona de sua vontade. Na manhã seguinte, ela acordou nua na varanda com o cavalo ao seu lado. Quis gritar a plenos pulmões, num pretenso asco, mas pensou no prazer que havia sentido, então, apenas se dirigiu para o rio, sem esperar que o marido acordasse.

O dia custou a passar. O marido, depois de cuidar dos animais, saiu como de costume para a pesca com os amigos. Ele não lhe reparava a estranheza, nem o ar ensandecido do rosto. Ela, que sempre foi de pouca fala, falava agora um outro idioma. Ela, que há muito não vivia, suava e gemia pelos cantos esperando a noite cair para galopar territórios desconhecidos.

 Seu marido chegou no final da tarde com os peixes presos a uma vara. Ela moqueou todos eles, transbordando de excitação pela noite que chegava. Mal ela caiu, o marido desmaiou na cama. Manuelina despiu-se. Aconchegou-se à rede e esperou pelo cheiro selvagem. Quando ele lhe chegou às narinas, ela contentou-se numa alegria de puro instinto animal.

Sentiu a serpente aconchegá-la, deslizando pelo seu pescoço, descendo pelo colo até postar-se próxima de seu sexo úmido, pronto para ser penetrado. Ela sucumbiu, desfalecendo de prazer. Na manhã seguinte, a cobra jazia a seu lado. Ela se dirigiu novamente ao rio, passou a mão pelo seu seio desnudo, pela barriga macia, pelo pescoço que engrandecia. Estranhamente, sentiu a pele espessa, os pelos grossos e com um cheiro tão ácido e intenso como o dos bichos, mas não deitou maiores preocupações.

Só o que tinha a fazer era esperar a noite dominar. Não gostava de o sol ostentar sua grandeza, expulsando as estrelas, assumindo-se soberano. Era a noite que trazia o encanto. Com ela, todos podiam reinar. Mais uma vez, esperou a noite definhar o brilho do sol, aprumou-se na rede, enquanto o marido se retorcia no quarto. Desta vez, ele custou a dormir, ameaçando apropriar-se do que era dela por natureza. No escuro, Manuelina pensou no marido enquanto o cheiro ácido lhe atingiu as narinas. Ele reparou que a mulher se despia, então, levantou-se da cama e a abraçou por trás. Queria a mulher rendida, entregue às suas carícias, mas, de repente, Manuelina começou a se sacudir e caiu ao chão apoiada apenas em suas mãos e pés. Soltou um gemido, que mais parecia um esturro de onça, tão forte e assustador que acabou calando todos os demais barulhos vindos da mata. O marido surpreendeu-se e quis chutar-lhe a barriga pela desfeita. Nada além disso se soube do casal.

No dia seguinte, o compadre de Manuelina apareceu no casebre e se apavorou com o que viu. Na varanda, caído em frente à porta de entrada, jazia um porco imenso com a garganta rasgada. Provavelmente, um trabalho de onça, já que na noite anterior escutara seu esturro, além do mais, suas pegadas envoltas em sangue ainda estavam frescas na varanda e em volta da casa. Nenhum outro corpo foi achado, mas o que chamou a atenção do homem foi a quietude do lugar, um silêncio anormal, como se tudo estivesse em paz.

 

 

 

 

 

 

Estorvo

 

 

Firmino Maldonado não levava desaforo para casa. Nunca. Nem quando criança. Nem mesmo quando a meninada chamava sua mãe, dona Geni, de sequestradora de crianças em frente a seu casebre de barro seco, perdido no meio do sertão. O pequeno Firmino se injuriava, sumia por uns instantes porta adentro e reaparecia em seguida, bramindo um facão de cozinha na mão atrás da gurizada, percorrendo todas as vielas do vilarejo de Santa Luzia no encalço dos desgraçados. Quem tivesse olhos pra ver, que visse. Nem a santa duvidava. O menino era mesmo estouvado:

"Quero ver o primeiro que vai perder as bolas!".

Não sabia se a estória era verdadeira, mas não queria ouvir a gurizada dizendo que a mãe havia lhe roubado de um coronel, em represália por ter sido abandonada e amante, nessa ordem de importância. O menino sempre desconfiou de que onde tinha fumaça tinha fogo, nem que fosse uma faísca, mas nunca fez perguntas.  Reclamação mesmo o coronel nunca fez. Nem queixa pro delegado. Vai ver o homem não se incomodou com a falta de um filho porque tinha muitos. Oito, tinha ouvido falar. Talvez fosse mesmo paga de serviço. Firmino cresceu assim, com o diabo no corpo, em meio a calúnias, raivas e provocações.

Para a mãe era tudo, sendo nada. O rapaz trazia no rosto um meio-riso porque a velha lhe dava sempre um pingado de dinheiro que ele gastava nos bares, na vadiagem com as mulheres, no jogo de cartas. Andava em festas, sempre encachaçado e alteando o peito feito um falcão-peregrino em voo de exibição, muito chegado à moda de viola para escumar as tristezas do coração. Não era dado a trabalho. Mourejar mesmo só o da mãe, na cama com lençóis gastos e malcheirosos, escarafunchada no quarto abafado e bolorento.

Assim vivia Firmino, de um tanto de cachaça, de um tanto de amores, de um tanto de vadiagem, de um tanto do cigarro de palha para fumar a vida e esperar ela passar, trazendo o dia e mais a noite, que era sempre a parte mais animada, ocasião de tudo acontecer. No jogo de cartas, já tinha ganhado gado, mas também já tinha perdido fazenda inteira. Enrolava os credores porque, além da brabeza de dizer e acontecer, tirava uma ladainha mal-entoada de dentro da goela que comovia até defunto mal passado.

Mas, de uma hora pra outra, sua mãe caiu doente de cama, pestilenta, sem levantar perna, braço ou xibiu. Firmino teve de arranjar sustento para fazer comer mãe e filho. Tangeu gado pelos ranchos e pelas beiras de rio, catou cacau nas fazendas, coivarou e preparou a terra pro plantio, bateu mato, consertou cancela e monjolo, ordenhou vaca no curral, tirou égua do atoleiro, de tudo aprendeu a fazer um pouco. Cansou o corpo no pesado, mas nada lhe agradava. Era mais a precisão da santinha sua mãe, que da sua virtude nem a santa duvidava.

Logo ele, que não tinha homência, que já tinha posto fama em freira, mulher casada e menina virgem, logo ele era quem cuidava da reputação e da saúde da mãe como quem cuidava de um tesouro. Largou a bebida e o fumo para dar melhores ares à velha que, mofina, se desfiava na cama, alumiada apenas pela luz do candeeiro encharcado de azeite. Nada lhe apetecia, nada lhe alegrava. O único movimento do quarto era o da dança das mariposas e dos cupins-de-asa ao redor da lamparina. Desamparo assim Firmino nunca tinha visto:

"É preciso arresistir, mãinha!".

Mas, a cada dia que o sol descia no céu escarlate da caatinga, a mãe do rapaz entregava por antecipação a alma desimpedida e cansada. A mulher já não escutava estouro de boiada, arma de fogo debulhando em mão de cangaceiro, capiau acendendo fogueira no meio do terreiro, maritacas fanhosas e barulhentas que não se acertavam em coro, a mulher não escutava nada. Uma noite, ela reuniu suas últimas forças e quis ter a derradeira conversa com o filho, que a conteve:

"Não carece de esperdiçar fôlego, mãinha!".

"Não quero alma de filho meu na boca do demônio!".

"Se assossegue, mãinha!".

"Tome tento, Firmino, não quero raiva fora-de-hora!".

"Eu agaranto que vou sossegar o chifre e a ponta da faca!".

Nessa mesma noite, ela entregou sua alma. Depois disso, seu filho desconheceu o mundo: já não olhava as mulheres, nem as feias e nem as arranjadas, nem as comilanças, nem os capiaus que lhe faziam companhia na mesa de jogo ou de bar. Deu rezas para sua alma e enterrou a mãe no terreiro de casa porque as carolas de Santa Luzia não permitiram que tivesse no cemitério o mesmo lugar que as mulheres dignas e respeitáveis. Disso, a santa não duvidava. Firmino só não atinava do porquê de tanto injuriamento, porque dignas ou não, todas davam a paga em troca de alguma coisa, mesmo as carolas que viviam na igreja, rezando terços, rosários e dias dos santos com um olho no altar e outro na rua, vigiando a vida pior que urubu no alto do céu. Vida e morte. Idas e vindas. Deslizes e tropeços.

Desencantado do mundo, Firmino não mais mourejava até dentro da noite. Não tomava mais descanso quando o dia findava. Desencantou-se das horas, dos amigos capiaus, pondo no canto da boca um desprezo pela existência seca e mal curtida. Tornou-se um morto-vivo tanto na luz quanto na escuridão. Até que Deodoro, seu adversário de carteado, resolveu cobrar-lhe a dívida de jogo. Se Firmino não atinasse, já ia seguir no rasto da mãe.

"Os cabras não respeitam mais nem luto! É uma falta de respeito!".

Foi só o que teve tempo de dizer. Deodoro, que tinha pressa, que não era homem de esquecer maldades e malfeitos, reuniu seus jagunços, pôs todos de pé nos estribos, tinindo ferraduras, desembestando no lombo, comendo poeira pelo chapadão, até cercar o casebre de Firmino com mão de ferro e de fúria. Seus capangas apearam dos cavalos com mãos nas carabinas, porretes e facões, esperando as ordens do chefe. Deodoro, que não era homem de esquecer o passado e muito menos dívida, bufou e ordenou:

"Quero o cabra estripado e morto. E bem morto pra servir de exemplo. Não vai ser um borra-botas desses que vai me fazer de bobo!".

Firmino pulou a janela dos fundos da casa ao ouvir o tropel dos cavalos se aproximando, caiu ajoelhado em terra, firmou a mão no chão seco e saiu se arrastando pela picada de capim alto, escorregando pelo brejo até alcançar uma pirambeira no frio da noite. Fechou os olhos e se jogou pra baixo, certo de nem sua alma de salvar. Ao abrir os olhos novamente, surpreendeu-se de ainda estar vivo e não perto da mãe como ele desejava por dentro. Fugiu sem ouvir os urros de Deodoro ao descobrir a casa vazia, sem ver o fogo tomar conta do casebre e consumir as mariposas, os cupins-de-asa e todas as marcas de sua existência.

"Procurem em cada canto, em cada estrada, em cada clareira. Achem o cabra e o matem!".

Firmino não esperou nenhuma ordem. Afundou o chapéu de couro na cabeça, ajeitou a roupa estraçalhada, lamentou o cantil esquecido em algum lugar da casa. Tivesse ele agora consigo, arranjaria água em alguma nascente próxima. Agora, teria de seguir pela beira de algum rio. Não havia nenhum por perto. Prosseguiu de todo jeito, que era o que de melhor podia fazer.

Ao longe, depois de andar um bocado pela noite adentro, pôde ouvir o chiado, o chamusco e a fumaça que consumia sua casa e seus ouvidos, até o clarão se apequenar e desaparecer no céu. Ao menos foi a impressão que teve. Firmino, que era homem de fazer e acontecer, fugiu feito bicho covarde, não tanto porque escutou as últimas palavras da mãe, mas porque sabia que estava em desvantagem. Era safado, mas não bobo.

Ao nascer o novo dia, o corpo todo lhe doía. Devia ter uma ou outra costela partida, cortes e machucaduras pelo corpo. Suas pernas começavam a pesar. Estava com fome, estava com sede, estava cansado, estava com frio, estava com medo, estava aflito para chegar a algum lugar antes que os homens de Deodoro o achassem. Resolveu não pensar nisso. Deodoro que se explodisse com sua ganância. Que podia fazer se para ele o jogo era só diversão e deslize do tempo? Começou a respirar aos arrancos. As costas lhe doíam, a dor se irradiava no peito. Tentava tomar tento, pôr ordem no pensamento, mas era como se nem o corpo, nem as ideias lhe pertencessem. Sentiu-se completamente abandonado. Quis chorar, mas as lágrimas não lhe desciam pelo rosto.

"Mãe! Mãe! Por que me abandonaste?".

"Quem vem lá?".

Só então Firmino reparou que dera com um roçado, um pequeno curral e uma casa simples de madeira. A mulher de meia-idade pendurava a roupa da família recém-lavada na corda estendida entre duas árvores no terreno ao fundo enquanto as galinhas e pintinhos cacarejavam pelo chão de terra batida. De um susto, ela estancou e ficou encarando o rapaz que, de repente, lhe pareceu desolado. Duas crianças pequenas saíram do interior do casebre e vieram se abancar ao lado da mulher, segurando a barra de seu vestido. A mãe levou o menorzinho ao colo.

"Não carece de ter medo não, dona, queria apenas o que de comer e beber!".

Firmino teve ganas de desabafar, contar suas desgraças, mas mordeu a língua e calou-se. Não sabia quem era amigo ou inimigo, quem se vendia e entregava, quem era de matar e sangrar, quem era de tirar vingança. Baiano burro nasceu morto.

"O moço tem cara de quem tem o couro ainda por curtir".

"Como é?".

"Muita coisa pra aprender. A região aqui é de desmando, seu moço!".

"Bem se vê!".

"A gente era empregado de uma fazenda de cacau, mas mais parecia escravo, sem ter o que de comer e de beber direito, só fazia trabalhar. Por isso sei bem o que o moço tá passano!".

"Sabe mermo?".

"Zacarias, vá buscar seu pai no roçado. Seu moço, se abanque aqui na mesa que já lhe preparo alguma coisa".

A mulher lhe serviu um rancho farto, de regalar os olhos e o bucho: um prato de leitão que tinha sido abatido no dia anterior, feijão e arroz, ovos, algumas frutas do quintal. Ainda deu a ele cachaça porque achou que as misérias no rapaz eram muitas. Firmino, esfaimado, era só esganação e lambança. Agradeceu a bondade e as atenções. Quando o marido da mulher chegou com o filho mais velho, ele atinou que era de melhor entendimento continuar a conversa da mulher que contar a sua própria. Para o devido efeito, fugia de uma fazenda por maus-tratos. Apiedado, o casal deu conselho de o rapaz sumir, se abandar pros lados de Arataca, muito longe dali. Emprestaram-lhe um jegue, um cantil, uma rapadura, um pouco de pinga, duas galinhas pra saciar a fome, então, Firmino levantou-se com gana de partir. Deodoro não ia sossegar enquanto não lhe caçasse. Ah, isso não ia. Agradeceu a acolhida ao casal e aos meninos que tinham os olhos arregalados nele, como se vissem um fantasma. Emprestou da família um facão longo e afiado, capaz de estripar porco de um golpe só:

"Pra lhe servir! O moço pode precisar!".

"Eu aceito a bondade!".

Firmino afundou novamente o chapéu de couro na cabeça, montou no jegue já com a musculatura embatumada, o riso descansado no rosto e se foi. Seguiu pelas picadas penhascosas, pelas sendas de pedregulho, pelas baixadas, pelos outeiros, pelos morros, pelos rios, pelas varjarias, pelos roçados, pelas fazendas, pelos currais, pelo vento frio da noite e pelo calor do dia. Era uma caminhada dificultosa porque às vezes o jegue estacava, empescoçando pra direita, empescoçando pra esquerda, cheio de irresolução. Nessas horas Firmino apeava nas brenhas ou nas sombras das árvores da caatinga pra modo de não ser visto e descansava, ou comia, ou pensava na vida. Foi assim até dar em Arataca. Ou quase.

Um pouco antes de chegar na cidade, ainda no meio da estrada de terra, reparou num ponto preto à sua frente. De primeiro, achou que era um urubu atrás de carniça, mas não tinha ciência de que estava assim tão mal. Depois, com o manquitolar do jegue que seguia lento, o ponto assumiu um contorno indefinido. Teve medo. Medo de encontrar algum jagunço de Deodoro, medo de botar raiva por causa de provocação, mas, à medida que foi se chegando, viu que era apenas um padre numa carroça:

"Quem vem lá?".

"Sou o padre Cipriano! E o moço?".

"Firmino, um pobre pecador, um brigador de ofício! O padre segue que rumo?".

"O de Arataca, sou o novo padre daquela comunidade!".

"Lhe faço companhia, que sigo o mesmo destino!".

Firmino achou o velho muito enfraquecido, mastigando os dentes. Acreditou que tinha fome, como também ele:

"O padre me acompanha num rancho?".

"O moço parece que adivinha pensamento! Deixe só me aliviar naquela brenha adiante".

O padre apeou da carroça com dificuldade. Firmino o ajudou dando-lhe a mão, achando que o homem passava mal por causa do calor: devia arder em cima do cocuruto sem cabelo e dentro daquela roupa preta de chamar defunto. O velho queixou-se de enjoo e de dor no braço. O moço achou que o padre se cansava da lida com o chicote e o arreio, de ir tocando os cavalos pela paisagem esbranquiçada. Observou o cabra se afastar com certa pena.

Então, tirou o facão da cintura e degolou a última galinha que tinha, fazendo o sangue espirrar pra todos os lados. O líquido quente encharcando os molambos e a lâmina. O padre, que voltava já aliviado, tomou susto com a visagem do moço ensanguentado, bramindo a faca na mão. Teve medo de que fosse um matador. 'Brigador de ofício', conforme ele mesmo lembrou que o moço tinha dito. Achou que tinha chegado sua hora. Fez o nome do Pai. Procurou o ar, mas o coração lhe faltou e ele só fez cair retesado de puro medo.

Não demorou muito e as moscas já esvoaçavam em torno de Firmino atraídas pelo cheiro do sangue. O rapaz só fez trocar de roupa com o defunto. Não queria mosca nem urubu perto de si, mas tinha fome. Levou um tempo preparando e assando a galinha, depois comeu olhando o finado padre estirado no chão. Tinha lhe chegado a hora, que essa sempre chegava. Fez-lhe uma cova digna, afinal, o sacerdote merecia o descanso eterno depois de tanto batismo, casamento e enterro. Assim era a vida. Depois de enterrar o morto, puxou a respiração soprosa, guardou a lâmina, amarrou o jegue na carroça e tomou o rumo de Arataca.

Já tinha até esquecido que vestia a roupa do pároco quando se aproximou da cidade. Circundou a praça com o coreto e foi dar na Matriz, onde os capiaus já o aguardavam.

"Pensei que o padre nunca chegava. Pensei também que era mais velho!".

"Mas eu não sou...".

"O padre vai se arranchar com a gente, comida boa: pirão com pimenta e peixe, jacuba quente feita com a melhor farinha de fubá e rapadura que o padre já provou!".

"Sendo assim...".

"Venha padre, deixa a gente lhe mostrar onde vai se abancar, a casa paroquial fica do lado da igreja, pra modo de não perder tempo, que o povo aqui tem muita percisão!".

"Muita?".

"Tem um bocado de gente aqui que é dono do choro dos outros, padre Cirino!".

Assim, Firmino, agora padre Cirino, foi se abancando na nova terra, mais por preguiça, menos por incômodo. De primeiro, fingiu falar latim, depois apercebeu que ninguém entendia mesmo a língua estranha, então, por ser moderno (dizia), iria ministrar a missa em português para 'falar a todos'. Aperreio nas ideias não tinha nenhum. Amanhecia na paz, em riba de seu colchão macio, não entornava cabeça, nem pensamento. Se prendeu ao que fazia: rezar pra alma de todos, a sua em primeiro lugar. Que Deus ou a mãe o livrasse dos males. Deodoro, o pior de todos.

No dia seguinte, com o bucho cheio e apaziguado, vestiu a batina preta e entrou na igreja pra mostrar serviço. O primeiro fiel a que deu confissão foi um capiau que criava umas cabeças de bode. Entrou com ele no confessionário, fez o nome do Pai e esperou o homem estrebuchar:

"Seu padre, eu não tenho mais paz. Tô passando por grande necessidade e minha mulher e filhos só fazem me apoquentar a cabeça. Não tenho mais um minuto de sossego!".

"Meu filho, mantenha um bode na sua sala por uma semana e depois de duas retorne comigo!".

"Um bode?".

"Ocê é surdo?".

"Não, seu padre, mas...".

"Nem mas e nem meio mas, essa é sua penitência!".

Depois de uma semana o homem retornou. Firmino quis saber:

"E aí, as coisas melhoraram?"

"Muito, padre Cirino, não tem mais aquele mal cheiro que empesteava tudo. Os meninos, com saudades do bode, agora brincam lá fora com ele e minha mulher não reclama mais, feliz que o bode não bole mais com suas coisas. Nunca vou esquecer dessa sua bizarria que deu certo!".

"Muito bem! Recite o ato de contrição, dez pais-nossos e mais dez ave-marias!".

O cabra merecia reza dura, tinha família, mulher e filhos, um terreno para chamar de seu, uma criação para chamar de sua e ainda dava de reclamar? Agora, tomava tento, indo se importar com o que realmente devia. A segunda confissão a que atendeu foi a de um capiau que mal conseguia trançar as pernas.

"Eu vim me confessar, padre!".

"Assim desse jeito? Cadê o respeito?".

"Não tô achando, não, seu padre!".

"Então, a hora que achar, ocê volta".

"Voltar por que?".

"Porque uma pessoa bêbada não pode participar do sacramento da confissão".

"Não me diga que o padre tá bêbado? Então, o senhor vá pra casa, tome um banho frio, descanse, cure sua ressaca e amanhã o senhor volta pra me confessar".

"Eu não estou bêbado!".

"O senhor disse, agora mesmo!".

"Volta o senhor amanhã, e por ora deixe aqui a garrafa de cachaça!".

A pinga era forte, pura, branca, quase imaculada. Firmino tirou a rosca e sentiu o cheiro. Fazia muito tempo que não bebia uma dessas. A mãe já lhe tinha morrido, mal mesmo não ia lhe fazer. Entornou um gole. Depois outro, e ainda outro. A pinga desceu queimando a garganta. Era mesmo das boas. Ele resolveu pôr todo o conteúdo da garrafa numa moringa que passou a trazer junto de si. Tivesse sede, entornava um gole goela abaixo. Só encachaçado para tolerar tanto sofrimento do povo. Assim, com medo da cela, da morte e emborcando cana, Firmino foi ficando, pegando jeito com os fiéis, descobrindo segredos, desvendando mistérios. Em pouco tempo sabia dos sujos de todos. Tão confiante, começou a criar asas.

Um dia, uma moça bem-feita veio lhe pedir salvação. Firmino não lhe tirou os olhos de cima. Era um bom-parecer de mulher que ele tinha quase esquecido. Só não adivinhou que já era moça desonrada, que uma cara bem bonita fazia esquecer um mal passado. Esperou ela adentrar o escuro do confessionário e se abrir como uma flor:

"Padre, vim me confessar!".

"Diga, filha".

"Me deitei com o padre de outra igreja, quando viajei para Itabuna".

"Logo um padre, filha?".

"É um fraco da alma, padre!".

"Da alma ou da carne?".

"Sei não senhor, seu padre!".

"Pois fez muito mal, tu bem sabes que tua paróquia é esta!".

"Como padre?".

"Vinte Pais-nossos e vinte Ave-marias!".

Quase se delatava. Bebeu da moringa. A cana é de ninguém botar defeito. Defeito tinha sua língua grande. Havia de ter cuidado. Enganação era coisa séria. Só um bulir com a boca e ele mesmo se incriminava. Ainda mais agora, que todos já lhe vinham ao encalço. Às vezes, Firmino nada fazia, apenas escutava, que as almas de Arataca tinham muita sofrência e pecados e remorsos. Ninguém desconfiava que Firmino cumpria seu melhor papel, talvez melhor que o próprio padre Cirino se este ainda estivesse vivo.

A desgarração do povo era tanta que nem o diabo dava conta. Mas ele não queria tirar nenhuma alma da boca do demo, não queria bulir com ninguém. Cada um que vivesse como pudesse. Arrecadou um dinheiro da paróquia pra segurar seu destino e não teceu mais nenhuma preocupação. Não tinha mais lembrança de sua desdita e seu viver nunca mais foi dificultoso.

Até o dia em que ele teve de celebrar o casamento de Jurema e Zebedeu. Casório de gente fina e de respeito, igreja cheia e decorada porque Jurema era filha do coronel Esteves, figura importante de Arataca. Quis fazer tudo nos conformes, ainda que ele não soubesse se casamento celebrado por falso padre tinha validade. Não importava. Só sabia que, se sua padroeira Santa Luzia o encontrasse, teria orgulho dele. Quem tivesse olhos pra ver, que visse. Pensou na mãe, no casamento que ela não teve, no pai que ele não teve, na família que ele não teve. Olhou pros noivos na sua frente, cheios de bem-querer, essa papagaiada vagabunda que alimentava a alma. Então, ele escutou um tropel de cavalos ao longe, mas não deu importância. A única coisa realmente importante era o casório que tinha a realizar:

"Se tiver alguma pessoa que é contra esse casamento, que fale agora ou cale-se para sempre!".

"Eu tenho!".

O jagunço veio entrando pelo corredor central da nave simplória e, então, Firmino reconheceu o rosto do cabra que lhe havia jurado de morte. Estava mais velho, com gretas profundas sulcando as faces, mas o brilho raivoso no olhar era o mesmo.

"Se esqueceu da banda que tu veio, Firmino?".

"Mas o que é isso?".

O coronel Esteves estava indignado com a interrupção do casório da filha. Olhava de um para o outro sem saber o que fazer.

"Tô com a jagunçada aí fora! Agora, covarde, ocê não me escapa!".

"Covarde? Pois venha!".

"Ocê me adiverte! Logo ocê, Firmino, que nunca foi santo, no lugar do padre?".

"Como assim, no lugar do padre? Esse é o padre Cirino!".

"Esse aí nunca foi padre, coronel!".

Deodoro veio pra cima de Firmino, que só teve tempo de desembainhar a faca de dentro do bolso da túnica preta, aquela que chamava defunto. Deodoro, na sua raiva desmaneirada nem reparou o sucedido. Não teve tempo de se desviar de Firmino que lhe cravou o facão no lado do bucho, depois nas costas e, pôr fim, no peito. Então, o cangaceiro rolou sem mover um dedo aos pés do rapaz. A multidão de convidados em tempo se espertou, sem acreditar que o homem vestido de padre à sua frente, com a faca suja de sangue, sabia dos segredos de todos da cidade. Não tiveram dúvidas, o homem era do mal. Caíram em cima dele e puseram todos a dar chutes, pontapés, porradas e socos.

"Valei-me, estão todos a pecar!".

Firmino ainda apelou ao juízo, a Deus, ao diabo, mas o povo tinha se apostemado, inconformados da desfeita do homem que nunca foi padre e nem santo.

"O prazo é pouco, cabra safado, já, já se encontra com o Criador!".

Falaram os convivas, seguros de que não iam ter comes e nem bebes. Assim, à traição, acabaram todos. Cancelou-se o casamento, seguiu-se o enterro, sem padre, mas com a cidade em peso pra conferir que o defunto fosse bem enterrado, pra modo dos segredos ficarem bem guardados. Apenas a moça de bom-parecer suspirou, sem saber direito do acontecido:

"Vou rezar pela alma do padre! Afinal, cantoria de igreja em gente de cabeça fraca é uma perdição!".

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Sandra Werneck é o pseudônimo de Sandra M. G. Gonçalves, nascida a 27 de julho de 1960 em São Paulo, chegando a cursar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, mas não completando o curso. Posteriormente, graduou-se em Letras Língua Inglesa pela Universidade Federal do Amazonas, com trabalhos na área de Linguística Aplicada sobre o estudo de Crenças para o ensino de línguas e na área de Sociolinguística, estudando a variação da identidade lexical dos migrantes do interior do estado do Amazonas que se deslocam para a capital, tornando-se Mestre na área. Em paralelo, ingressou no projeto de extensão intitulado Clube do Autor, que já publicou várias coletâneas de contos: Folhas Verdes, Folhas Livres, Folhas Mortas, Folhas Fantásticas, Folhas Eróticas, Amores e Infâncias, apaixonando-se pelas palavras e pela literatura. O Poder da Fé é seu romance de estreia.