Perguntas

 

 

"Como estão as senhoras suas meninas?": é assim que as pessoas da pequenina cidade de Goiás se referiam às minhas primas quando falavam sobre elas com o meu tio.

Era o início dos anos 80 e meu tio, que trabalhava no Banco do Brasil, no interior de Minas, foi convidado a subir de cargo, trabalhando em algum local remoto. Acabou indo para essa cidade, cujo nome não me recordo, mas que, segundo ele, era extremamente pequena e pobre, no meio do sertão; longe de tudo e carente de tudo.

Este foi apenas um dos locais em que ele morou; lembro que meu tio mudou-se muito e morou em várias cidades diferentes de Minas, Goiás, Bahia e São Paulo. Foi o jeito que ele, vindo de família humilde, encontrou, para subir na vida. Quando entrou no banco, ganhava pouco, pois começou mesmo de baixo. Com o tempo, fez faculdade (formou-se em Matemática) e foi crescendo, à medida que aceitava essas promoções que consistiam numa verdadeira atitude de colonização das terras bravias, que, naquele tempo, ainda existiam. Ele foi duas ou três vezes para cidades que até então nunca tinham tido um banco. Imagine o que é ser primeiro gerente da primeira agência bancária da cidade e trabalhar com pessoas que, em sua maioria, eram analfabetas, nunca tinham ido a um banco e ainda guardavam dinheiro debaixo ou mesmo dentro do colchão.

Por se tratar de um banco estatal, muitas vezes as agências eram abertas por questões políticas e não comerciais. Elas significavam a chegada do progresso e, consequentemente, um trunfo político para o prefeito ou o deputado local. Acontece que, independentemente disso, o gerente tinha que, uma vez aberta a agência, fazer das tripas coração para que ela passasse a dar lucro. A superintendência do banco não queria nem saber se ali ninguém tinha dinheiro para depositar, por se tratar de uma região pobre, ou se ainda viviam quase que num regime de escambo, em comunidades em que mais de noventa por cento das pessoas viviam do campo e trocavam galinhas por sacos de arroz ou coisa do gênero.

Meu tio enfrentou várias dificuldades e morou em vários locais inóspitos. Não que as pessoas fossem más ou violentas: nada disso. Ao contrário, respeitavam-no muito. Eram perigosos pelos bichos, porém: escorpiões, cobras e insetos transmissores de doenças eram vizinhos nada amistosos e que demandavam cuidado, sobretudo, para alguém como ele, com três filhas pequenas. Quanto aos moradores desses locais pequenos e simples, como já disse, eles tinham naquele homem letrado, gerente do banco, uma verdadeira autoridade. Não se pode dizer que meu tio mandasse tanto quanto o padre e o delegado, pois alguns desses lugares não contavam com esses representantes da lei divina e da lei humana. Assim, ele era o único elemento externo lá; o único que conhecia o que havia além e podia dizer como era o mundo para fora daquele pedaço de chão. O padre e o delegado, nessas comunidades mais isoladas, apareciam apenas por um momento, seguindo apressadamente sua visita a outros locais semelhantes. Meu tio, não. Ele morava lá. Não chegava a ser "um deles", mas também não era um "estranho", e muitas pessoas vinham pedir-lhe conselhos e tratavam-no com o medo religioso e o respeito submisso de quem se sente inferior.

Ele mesmo se assustava com tanta deferência e tentava mostrar-se como alguém simples, igual a eles. Era uma luta para fazer com que eles o deixassem descer do pedestal em que o haviam colocado e passassem a tratá-lo como uma pessoa qualquer. Ele tentava sempre manter o sorriso no rosto e dar tapinhas nos ombros de seus interlocutores, mas eles percebiam a diferença abissal que havia entre eles quando, com suas mãos calejadas, apertavam a mão macia de meu tio.

Além disso, imagine o local: uma cidade que nada mais é que uma rua de terra com umas trinta casinhas caiadas e sujas de pó; nenhuma delas tem muro, mas apenas cercas ou nem mesmo isso. A melhor casa fica fechada quase que o ano todo, pertencendo ao grande fazendeiro local, que a mantém apenas para ter onde dormir quando vêm à cidade na época da festa anual ou nas eleições. Agora, imagine que chega dinheiro de fora e fazem uma agência bancária totalmente nova: tudo bonito e novo; bem diferente do estilo antigo daquelas casinhas, que mais pareciam pequenas senzalas do século XVII, tamanha sua simplicidade.

O homem a comandar toda essa modernidade, vindo de fora, letrado, com sotaque diferente e dono de um automóvel, é claro que será visto com medo e admiração; não importa quantos tapinhas no ombro ele dê e quantas horas por dia passe sorrindo. Se algum morador entrava na agência, então, e via meu tio compenetrado a fazer algum cálculo ou ler algo, não tinha coragem de interromper. Eles entravam sorrateiros como gatos, com medo de atrapalhar, e ficavam num canto, o mais distante possível dele, com o chapéu na mão, esperando que ele levantasse o olhar e os visse. Chegavam a ficar meia hora assim, sem fazer nenhum barulho, esperando ele reparar neles e não importava o quanto ele sorria e falasse que deviam tê-lo saudado para que ele os percebesse e atendesse. Eles nunca mudavam este hábito. Até porque, além do delegado e do padre, o meu tio era a única pessoa da cidade a quem o fazendeiro, patrão de praticamente todos, tratava de "senhor". Isso não era pouca coisa.

Aliás, é interessante notar os motivos que meu tio atribuía a abertura das contas. Segundo ele, muitas contas foram abertas como um sinal de status, dentro da pequena comunidade e ninguém queria ficar para trás; outras foram abertas como um gesto de cordialidade e submissão para com ele, tão bondoso, que viera ali ajudar a desenvolver a cidade e trazer o progresso, e, por fim, teve gente até que confessou que abrira uma conta apenas por curiosidade, para ver como funcionava aquilo.

A cada domingo de manhã, meu tio e sua família ia à missa e lá encontrava não apenas os moradores da pequena cidade, como muitos da zona rural. Minha tia é filha de italianos, sendo loira de olhos azuis e assim também minhas primas. Eram as únicas pessoas claras da região e consideradas um verdadeiro primor de beleza e civilização. Tudo isso contribuía ainda mais para aumentar o status que meu tio tentava não ter. Ele, já mais trigueiro, poderia se assemelhar àqueles moradores, mas sua esposa e filhas destacavam-se de longe no meio da multidão e isso o deixava ainda mais distante e mais superior.

Meu tio conta a sensação que minha tia causou: alta, loira, com vestidos modernos, com ombreiras (anos 80) ou mesmo calça (que nenhuma mulher local usava), maquiagem (que também nenhuma mulher usava) e bijuterias... Ela e as filhas só saíam de casa para ir à missa, aos domingos. Afinal, não havia nada para fazer naquela cidadezinha e o sol escaldante desanimava qualquer um. Assim, quando saía, ela se produzia. Vaidosa, não gostaria de parecer feia ou desleixada diante dos outros. Mal percebia que isso, para os locais, era uma humilhação. Meu tio dizia para ela se arrumar menos; até a ridicularizava por se enfeitar tanto num local tão simples. Uma vez, que minha tia colocou um vestido branco para ir à missa, ele disse: "Com este sol, você vai refletir até a luz e cegar as pessoas". Nada adiantava reprimi-la, porém. Ela dizia: "Não saio de casa nunca. Você me trouxe para esse fim de mundo, longe de minha família e de minhas amigas e ainda quer que eu ande de qualquer jeito?!". Para ela, era um jeito de sentir-se bem, de afirmar-se frente à solidão e o isolamento, valorizando-se. Para ele, causava vergonha: era como alguém colocar um terno para ir a um estádio assistir a uma partida de futebol.

Quando ele se encontrava com alguém na única rua ou ia ao único mercadinho do local as pessoas faziam questão de cumprimentá-lo, sempre com muito respeito; sempre muito humildes e sorridentes. Todo o peso da beleza e das roupas da mulher aparecia; todo o peso de sua condição de bacharel surgia; o peso, sobretudo, do banco, do cargo de gerente, até o sufocava. Para todos, ele era alguém distante; inacessível. Reparou mesmo na expressão que nunca mais esqueceria "as senhoras suas meninas". Ora, minhas primas tinham entre um e três anos e mesmo assim aquelas pessoas dirigiam-se a elas ou perguntavam ao meu tio sobre o bem-estar delas com o pronome de tratamento dado apenas aos idosos, as pessoas de mais respeito dentro das comunidades tradicionais.

A barreira era instransponível. Aquelas pessoas estavam acostumadas a tamanha exploração e sujeição que nunca conceberiam um homem de fora — letrado e, para os padrões locais, rico — como um igual. Assim, toda a carga de submissão humilde que eles já estavam acostumados a carregar diante do fazendeiro, do delegado e do padre era agora sustentada diante do meu tio. Ele não gostava disso. Ao contrário, isso lhe doía. Ao mesmo tempo não sabia o que fazer: tentava de todo jeito se aproximar dessa gente por meio de sinais sutis e cordialidade; sem efeito! Ele tinha vontade de gritar: "Parem de falar assim! Parem de me tratar como um ser superior. Sou igual a vocês. Venho de família pobre. Trabalho desde os meus seis ou sete anos e já tive a mão calejada de tanto pegar na enxada e, se hoje ela é fina por causa do serviço do banco, minha alma não mudou. Não sou um crápula explorador que quer sugar o sangue de vocês. Não quero esta submissão". Não podia, entretanto, fazer isso: essas palavras iriam humilhá-los e feri-los ainda mais. Exibir o quão profunda é a submissão de quem não tem meios para vencê-la não passa de um fútil gesto de retórica e de crueldade e meu tio não era cruel. Não podia fazê-lo.

O que poderia ele fazer, sabendo que ficaria ali pouco tempo e logo mudaria de novo? O que poderia fazer para erguer uma gente que continuaria a ter de ser subserviente diante do fazendeiro, praticamente dono da cidade? O que poderia fazer para combater um modo de ver a vida e o mundo já arraigado há anos? Ele não sabia e acabou não fazendo nada. Nada além de continuar distribuindo sorrisos e tapinhas nos ombros, que cada vez eram mais duros e difíceis e o laceravam por dentro. Saiu de lá muito triste e nunca mais se esqueceu do quanto é preciso ser bom — muito bom mesmo — para com todos, pois o mundo precisa muito de generosidade e humildade.

Pela primeira vez, o menino pobre que tanto ralou para crescer e sair de suas dificuldades quis ser mais pobre e despreparado do que era. Pela primeira vez, questionou-se se estava no caminho certo e se todos os seus esforços o levariam para um caminho sem volta e para o distanciamento de quem ele realmente era. Ele era, agora, um dos opressores a quem se deve submissão e que espalham tantas lágrimas pelo mundo ou ainda era um deles; um dos sofredores?! Quem ele queria ser? Por quanto havia se vendido? Estas perguntas jamais se calariam. Elas eram de alguém que percebia que nunca poderia ser amado estando do outro lado; longe de sua origem. Alguém que sentiu a solidão do poder e o vazio do dinheiro, após ter lutado muito para conquistar essas coisas; tendo mesmo saído de uma condição de miséria e mesmo de fome. Agora, ele já não sabia se queria ser o mesmo.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rodrigo do Prado Bittencourt. Graduado em Ciências Sociais pela USP, é Mestre em Teoria e História Literária pela UNICAMP (Guimarães Rosa). Faz doutorado na Universidade de Coimbra/Portugal (Eça de Queirós). Participou da oficina literária de João Gilberto Noll, na UNICAMP e foi publicado na Revista Crioula, da USP.