Onde a dor não tem razão

 

 

Rosana perdeu um braço

recentemente

(enquanto mergulhava)

e falta o rosto a Marcelo

depois do acidente. Marina

não tem útero, Cícero

vendeu o baço, Débora

rasgou os joelhos n’algum bar

de estrada.

Verônica enterrou a língua

junto com a avó

Eduardo decidiu tirar fora

os incômodos dedos do pé

que acumulavam sujeira.

Esses meus amigos vivem pedindo

favores, do tipo

"me leve ao banheiro, me ponha à janela,

alugue um filme",

que eu recuso para mostrar-lhes

a utilidade de cada parte

do corpo em que vivemos.

 

 

 

 

 

 

Vila Suicídio

 

 

De madeira podre

as vigas não partem.

Nenhuma casa caiu

no terremoto, ou depois.

Há quinze estátuas gregas

no pátio da igreja

que não descascam

e quinze cruzes cravadas no pasto

que não cedem à umidade.

Uma comissão de notáveis

reúne-se

à porta do mercado

(onde os peixes se batem)

para redigir o manifesto.

A minuta diz:

"Um fantasma ronda

as cruzes do pasto..."

Enquanto gestam o fantasma

é sempre de um dia claro

que mortos falam.

 

 

 

 

 

 

Alpinismo

 

 

O cinegrafista colhe amostras das bordas

do vulcão congelado —

ao lado

da sala de tevê

uma fileira de sal

desenha o rosto de que quero lembrar

deserto de quedas bruscas.

 

Há panteras e panteras nessas noites

em que o ódio masca pano e tez

com suas navalhas ocas.

 

É como se infiltrar no vestido

dela e sentir secar seu

suor quando se levanta

no ônibus

vendo ansiosamente

alguém acenar de uma fachada.

Este homem por quem ela se mancha

e se suja e se perfuma de seus

próprios cheiros e os

espalha pela pele

até encardir de alegria

a dobra das pernas onde ele gosta

de esfregar a barba

este homem sente no rosto o borrão

de luz que o dia

urina.

 

Um alpinista saberia esquecer esta tarde em

que eles se encontram num pequeno

apartamento

com seus relógios.

 

A quatro mil e sessenta metros de altitude

saberia rir de um pássaro incomum

ou esperaria um instante até

que o sol baixasse

e retomaria os movimentos

através dos quais mantém

suas mãos presas

ao planeta.

 

 

[Do livro País em Branco]

 

 

Teoria da noite fria

 

 

Do registro de moradores de rua

não constava o nome

de Henrique Alexandre Floriano

que num dia de janeiro

com muita sede

entrou por galerias pluviais

na rede de túneis de esgoto

perdendo-se logo, ao recuar

(notando que chovia)

para o fundo da galeria.

 

 

*

 

 

Sob o peso do escuro, sob

o peso de si mesmo, de bruços

e sob o próprio esqueleto,

sob dobras de pele acima

do outro corpo e sob o leito

de um rio de ar corrente,

indigente inominado no claro

sol que expectorava luz,

no subsolo dos acontecimentos,

sob o peso da palavra, dos guindastes

que reconstruíam campos

e sob a faixa de pedestres

acima dos atores de teatro,

sob o fígado e sob a servidão

de passagem em terreno baldio

apenas afinal sob a luz láctea dos

próprios olhos e dos grilos

rastejou, cotovelos dobrados

entre vespas e sapos,

no seu túnel de três dias,

no seu desespero, como uma larva

em seu próprio crescimento.

 

 

*

 

 

Nós comemos maçã, figo

nós estamos aqui, ali

nós fomos ao teatro, à fábrica

desativada, ao circo, ao estúdio

nós consagramos um dia

inteiro à contemplação calma

da floresta, do jardim, do túmulo

nós esquecemos que sempre

há um túnel sob o entendimento

sob a faca como que a prever

o sulco que gravará sob a pressão

dos ossos da mão que a empurram

para dentro da carne do pão assim como

uma coluna de esperma empurra

a massa de ar à sua frente na uretra

para fora com impulsos e com

contrações assim como a expectativa

ligada a esses fatos familiares

(facas, esperma, uretra e tubos)

devolve a família a seu centro de gravidade

em torno do qual dormem

o alimento, a passagem de ônibus

as pedras lisas que vieram da praia

lisas e livres de escamas.

 

 

*

 

 

Ele tinha sede tinha

ouvido rádio ontem comido

máscara, mastigado

o próprio alho

de seus dentes, deixado

a barba crescer, tinha sacos

de lixo sob os calos

tinha reunido sapos

e vespas no interior

dos olhos e o suor

que saía de seus olhos

era verde como ásperos

peixes subterrâneos

ele tinha frios

subcutâneos instintos de

noites sob pântanos

sob seus intestinos

as ruas das entranhas

viviam povoadas de brilhos

sinais de que ali fora

acima das imundícies:

com lanternas, o procuravam

(mas apenas os carros

iam e vinham, distraídos).

 

 

*

 

 

Dos registros de moradores de rua

seu nome não constava

nenhum henrique junto a nenhum

pequeno herói republicano

nenhum mesopotâmio

a invadir vilarejos

apenas o lodo de seu nome

longo, formado por pedaços

de vime, porque tinha família

fugiu dos registros

espalhou-se pelos túneis

sob o sol invertido das imundícies.

 

 

*

 

 

Era tanta a sede, e tão alto o canto

tão alto, tão alta a fuga

que pretendia, no fundo tão surdo

o que o chamava, e o que pedia,

tão miúdo era o que pedia

mergulhado no mercúrio

que varriam sob o entulho

tão frio o que varriam

migalhas de furos e tão escuros

os dias e tão mais puros

ainda os mistérios de que se valia

miúdo seu pulso, e a sede

ainda de mais percurso

a piorar a sede sem uso, tão alta

a fuga de seus pulsos

recolhidos em escusas

tão contritos, esmagados

e tão moídas as migalhas, tão brutas

as pedras reviradas que o chamavam

para abaixo das escadas

para dentro de parafusos

que não puderam seus inchaços

evitar tais chamados.

 

 

*

 

 

Nós temos direito a férias

a pensão a macacos domésticos e

tirolesas suspensas

entre árvores frutíferas nós gostamos

de pôr a mesa de sentar à mesa

nós achamos que o simples fato

de convivermos com as despesas

não importa tanto quando se trata

de prender cordas e esticá-las

se possível a grandes distâncias

amarrá-las às coisas e içá-las

para depois jogá-las com violência

no fundo dos lagos até que apodreçam.

 

 

*

 

 

De registro nenhum consta o rei

deposto o conquistador de fossos

o marechal esfaqueado

como um cuspe seu nome

parecia ter evaporado do vidro

ou escorrido e depois caído

sobre o assoalho, onde virara lodo

e de onde teria sido riscado

pela própria família

que o levara dali, para longe

para que pensasse sobre seus atos.

 

 

*

 

 

Tão frio o escuro em que vivia

e tantas noites frias em três dias

no fundo do mundo, sob os sapatos

dos que vigiam as coisas frias

que estalam de frio nas calçadas.

Fazia tanto frio sob as escadas

que suas costas arqueadas doíam

como se fossem abertas a enxadas

cavidades que mantinham

vazias as palavras

que seus pulmões pronunciavam

e ali fora tão fria a cidade que sofria

da mesma hipotermia, tão fria

a sua água que se deitava

sob as galerias, como mais

frias águas porque à medida que afundavam

indo mais fundo no lodo e no escuro

do fundo do mundo

mais frias ainda ficavam.

 

 

*

 

 

Não era bem seu coração que doía

não era o dia, especialmente aquele dia.

Os ferros e tubos

tudo mais que funcionava

fazia seu próprio barulho, navegava.

Por dentro as coisas são frias

destituídas de pele, de fios. Cegas

dentro de si mesmas, carregam consigo

vespas internas. Nos túneis

daqueles dias seu coração batia

como em todos os outros dias.

Procurava a luz como sempre fazia

consumia sua comida, via o que via.

Na superfície, acudiram.

Os olhos vazios

para sempre pedirão.

 

 

*

 

 

Dos registros não constam seus olhos

nem seus dedos. Talvez por não terem nomes

os olhos perderam-se na multidão

talvez por terem sido

comidos por sapos ou mesmo por terem

derretido, confundidos

com tudo mais que pelas galerias descia

(o tempo, o cheiro, sua urina),

sem nome, nenhuma dessas coisas

se retinha. Quando desapareceram,

emitiram um som.

Continham em si outras coisas iguais

ou ainda mais cegas e mais vazias.

 

 

*

 

 

O rei deitou-se, dormiu. O grande

conquistador bebeu, respirou.

O presidente republicano

repreendeu um subalterno.

Não há registro de coisas jogadas

em lagos, nem tirolesas desativadas.

Os olhos estão derretidos sobre a mesa.

Os dedos estão cozidos.

 

 

*

 

 

Quando o retiraram do esgoto

o homem pedia água e comida.

Tão simples o que pedia

com pequenas palavras

não sabia de onde vinha

atrás do que vagara.

Tivera sede, escondera-se.

Gostava de andar pelas ruas.

Tinha ainda mais sede

fora de seu corpo.

Fora de sua água e de sua comida

tubulações transportavam

outras águas, contidas, que queimavam

por dentro da cidade

em contato com vespas e larvas

vivas, irremovíveis.

 

 

 

 

 

 

Estudo para uma represália

 

 

Numa noite de inverno

fizemos uma filha

de pano e trapos mal ajuntados

com um rosto de Picasso, em quina,

e braços quebradiços

amarrados em espátulas

para nos ajudar a ler os livros

nas prateleiras, a filmar os filmes

que em horas de descanso

concebíamos;

e para essas e outras tarefas acoplamos

membros de madeira

a seu corpo de pano

e lentes de aumento

para que pudéssemos vê-la

dançar entre os livros,

dirigir os personagens

vivos de seus filmes;

uma boca de radiofone

para falar com espíritos maus

e conchas do mar para ouvir

os espíritos livres.

Na casa tudo transcorria

como uma encenação da verdade

da vida dos adultos de uma cidade

e os membrinhos de madeira

giravam em sua alocução infinita

de orientações e reparos.

A severa filha de pano dirigia

outros bonecos atrapalhados

e lia nos livros amontoados

com seus olhos de azeite

roteiros hipernaturalistas

que repetiam nas palavras

de personagens sem interesse

entonações iguais à maioria.

Em seu café de óleo lubrificante

decidimos um dia pôr um pouco

de calmante. Um extrato

de camomila, para que ao menos

por um instante cessasse

de falar com sua arritmia

de metais e fios

sobre os planos e tomadas

e leituras de biografias.

Não acordou por semanas

enquanto os figurantes — bonecos e demais

objetos — discretamente fugiam.

Os livros quietos no entanto

se afligiam sem garantia

de que seriam lidos. Os olhos

de azeite secavam, a palha

do corpo pareceu envelhecer.

Contrário ao esperado, a boca

de radiofone emitia palavras

nos intervalos da programação

regular, que ainda captava

como pedidos de socorro

numa cidade-fantasma.

O esquecimento daquele corpo

inventado numa noite de inverno

durou o tempo de seu sono.

Nos acordou depois de alguns anos

em nossa cama, com os restos

de seu pano e de sua voz

com falhas no lugar dos olhos

com a desarticulação ruidosa do conjunto.

Na casa cresceram as prateleiras,

suas raízes atingindo a televisão,

o parapeito, a conversa cotidiana.

Tornaram-se vigas de madeira

atravessando o espaço que antes

ocupávamos sem precauções.

Também os objetos de vidro

envelheceram e se liquefizeram,

tornando escorregadio o chão

de carvão incendiado.

Os velhos espíritos tremiam de frio

em seus casacos

enquanto nossa filha os admirava,

formas de poeira

resistentes à dissolução

do leque e seu vestido.

De sua pequena vagina,

fenda que havíamos inscrito

no pano

para dar ao corpo coerência

e equilíbrio,

escorriam pequenas formas

negras, fios do que dentro havia.

Desciam de alguma víscera

inicialmente não prevista

mas que se desenvolvera,

autônoma, estrutura seca

no interior dos trapos, sem

pulsação detectável, e aparentemente

sem função real alguma,

mas que se desgastara e morrera

antes do resto, e desfazia-se,

fígado supérfluo,

num expurgo que pouco

a pouco enchia a casa

de uma linha negra

que tinha a consistência de uma língua.

 

 

 

 

 

 

Estudo para um herói vazio

 

 

                   após a flauta mágica de Peter Brooke

 

 

Não sabe bem a que veio.

Ao nascer para a cena

colou-se a ela

sem saber se

1- como sentinela do ser

ou

2- em posição de sítio.

Soube depois que uma serpente

ao mordê-lo

nasceu ela mesma, às avessas,

para a cena inversa

dando origem ao veneno

com que cometera suicídio.

Viu que era um tipo

de herói adotivo

instituído ali

pelo ser que o feria sem vê-lo,

e se partia ao meio

como um búzio

no frio.

Pensou consigo:

o herói apenas nasce

de um ser dividido.

E de tanto ser

perseguido

e estar aflito

longe de seu espírito

aceita haver nascido.

Lança para o alto

a flauta que lhe dera

um ferido de guerra.

Atrelada às nuvens,

não cai de volta.

O que cai

em suas mãos

ao contrário do que esperava

é o que havia

antes de nascer:

o vazio que se vê agora

entre as árvores, corrigido, nítido.

 

 

[Do livro Estado de Despejo]

 

 

Telegrama para Fernando Brant

 

 

Um carro atravessa o corpo

estacionando no fígado.

 

Os anos descem as escadas

sem encontrar visita.

 

Um lago em que percutem

pequenos testes

 

contém a água do século

e também os peixes.

 

O caminho que leva ao povo

foi adjudicado à represa.

 

Existe uma sala auxiliar

e o funcionário o espera.

 

O fim do milagre significou

apenas o começo.

 

Há um tênis abandonado

no hectar.

 

Praças, usinas, sapatarias

arruinam os insetos.

 

No início, a ideia de espera

era o que ardia.

 

A licença permite o corte

da madeira pelos ímpios.

 

O mesmo carro abandona

o fígado, migrante.

 

O corpo atravessado pela obra

é o mesmo, onde mora.

 

O que mais atravessa a noite

é a produção, um ritmo.

 

O índio que o persegue

no mundo físico

 

e o documento que o descreve

como índio

 

esperam pelo funcionário

que os escreverá.

 

A estrada caiu

sobre o maquinista.

 

O índio em Minas bebe

como em Manaus.

 

Há inclusive outro minério

mais fino que retiram.

 

Os peixes que você nomeou

foram modificados 

 

e seus fonemas

submergidos.

 

Uma sala com abelhas

incendiou-se.

 

São poucas as anotações

e o funcionário tem sono. 

 

O carro estacionado impacienta-se,

faz reféns.

 

Você migrou muito nele

com seus amigos.

 

No calor do azul o domingo

era um trem de escolta.

 

Todos os meios de transporte

acordam para a vida.

 

O carro atravessa os muros

entre estados federados.

 

O céu avança sobre os celulares

como um pneu no inverno.

 

O avião parece haver parado

sobre o supermercado

 

e os olhos querem beijá-lo.

As ladeiras atingem o fim

 

das escadarias protegidas

e o almoço, servido, claudica.

 

Os que voltam da Itália

acreditam em ginastas.

 

Uma vida gasta no indivíduo

apenas o mínimo.

 

As dinastias desejam

menos do que a indústria.

 

Há sempre quem organize

partidas e organismos.

 

A iluminação pública reflete

no limo das ruas antigas

 

aquela sombra compacta 

que os corpos já são:

 

extensão externa da casa

de que são feitos

 

pátio da casa da carne

onde cães se alimentam

 

e entre os cães a mãe deles

a cadela-memória 

 

vazada de perguntas

sem pontuação. A avó

 

inundada pelo planejamento

estudou piano

 

com Mário de Andrade

aprendeu que madrigal

 

é uma forma concisa,

meticulosa, uma pausa

 

na prosa sequencial 

das obras, e por isso

 

um sinal delas, espalhadas

em ossos, pedras, escoras.

 

Uma concavidade no relevo

um intervalo na dobra.

 

O carro invadiu o interesse

transportando  o jornalista.

 

Parado na estação o corpo

mediação que pede socorro

 

pediu que o levassem

de volta ao outubro

 

do caderno em que lido

o passado poderia

 

passar sem ser cortado

pelo vidro da corrosão.

 

Uma edição do vivido

a partir do que não.

 

Um carro deita na esquina,

a fumaça o recebe.

 

O corpo perde a febre 

e a importância. Cede.

 

Na multidão uma península

insiste que a percebam.

 

O estranho objeto lunar,

depositado, implora.

 

Por estar imóvel

os peixes o digerem.

 

O milagre dessa digestão

mantém as águas salinas

 

como uma mina de carvão

mantém inundada

 

a saída de dejetos

e o significado extraído.

 

Alguns caçadores aproximam-se

do urso polar limítrofe.

 

O milagre que doeu

aciona o bulldozer

 

para uma última apresentação

ante o vestígio.

 

O seu gesto de mastigação

convence os mamíferos.

 

A voz é um deserto que se ouve.

Pedem avisar que termina

 

mal a narrativa.

O carro, o lago e os peixes

 

não encontram saída.

Afogam-se mineiros

 

índios e fonemas,

funcionários e usinas.

 

A sorte, os rios, o cidadão

caíram sobre a península.

 

Varrem um pátio aborrecido

com o silêncio dos digeridos.

 

Mas os amigos passam bem,

venceram todos os imprevistos.

 

Um milagre, dizem. Um espelho

na contracapa de todos os discos.

 

 

 

 

 

 

Travesti negra responde

 

 

ao inquérito, à maçã

à flor e à náusea

à pergunta sobre o implante

ao vidente, ao búzio

à camaradagem sutil

ao chamado para viagem

à intimação para testemunhar

ao caos da gaveta de meias

a questões de múltipla escolha

à peroração do dentista

a quem interessar, sobre seu filho

ao guia turístico

a uma entrevista no final da página

a algo que a incomoda (pode ser o vento)

se pedir com carinho

à guerrilha urbana

ao assovio de dentro do carro

aos xingamentos dos garotos sem maldade

ao afã de entregar-se ao dolce far niente

à carta que lhe enviara a tia

ao terreiro, à benzeção

ao telefonema da assistente social

a alguém que a reconhece na fila

ao despertador chinês

ao insulto do cobrador

ao pássaro sobre a lagoa

ao papel timbrado

ao frio da cidade de praia em julho

ao pedreiro

à oferta de um cigarro de maconha

ao apelo do rapaz para gozar em sua boca

ao pedido de ajuda do sobrinho que estuda

à gravação distorcida

à câmera de segurança

ao questionário da universidade

à encenação de Tio Vania

ao email da moça da Fundação Getúlio Vargas

ao convite para almoço no shopping

à pergunta do segurança tímido 

à cera quente

ao tipo penal

à pesquisa online sobre a qualidade do atendimento

ao ser e ao tempo

mentalmente ao bilhete na caixinha com fezes

ao vagão feminino

ao silêncio que vasculha os cantos (a sua procura)

às latas viradas pelo skinhead

à sensação de enjôo

ao sorriso do anestesista

ao aceno que a dispensa de atravessar a rua

ao piscar de farol alto

à agulha que atravessa a coluna vertebral

à enquete do inferninho

ao medo de perder

ao spray de pimenta

à certeza de que o pau dele está duro

à canção que prefere em outro disco

à citação por edital

ao teste, à pesagem, ao desfile

ao mesmo delegado do mês passado

às boas intenções

ao estagiário

à vontade de mijar

ao rugir das tempestades

ao interfone apesar de cansada

à manhã que parece impedir seus olhos de se abrirem

à ressaca na Avenida Atlântica

ao codinome no sábado

à pesquisa de boca de urna

ao eco do Egito

ao mal-entendido

ao rapaz do Instituto Médico-Legal

à divisão do trabalho

à recepcionista do Miguel Couto

ao fichário do despachante

aos gritos e aos sussurros

à professora de inglês

ao cartão de Natal de Sueli (que está na Itália)

ao som do objeto passando perto

ao Eduardo Coutinho

ao choro ao lado, no outro quarto

ao menino do gás

que pede um beijo

(a camisa puída, sem jeito)

para experimentar

ao pedido de dinheiro emprestado

à inspeção sanitária

ao recado na secretária eletrônica

à rasteira, joelhada, tapa e quetais

à pergunta se está ouvindo bem

à pergunta se está bem

à desorientação ao redor 

à instrução de se acalmar

à repetição tediosa da pergunta

a alguém que quer que morra

ao estuário que invade a memória

à interpelação do porteiro

à umidade entre os seios

ao mangue, ao cristal, à buzina

ao matagal, ao galpão, ao ensaio

ao superior, ao diretor, à assistente

à maquiadora, ao figurinista

à psicóloga, à moça da limpeza

à vendedora sobre o tamanho

à súplica do superego

ao caixa do supermercado

ao organizador do evento

ao anti-coagulante

ao erro de pronúncia

ao irmão que viajou

à mãe sobre o projeto

que não sabe quem foi

ao pedinte achando graça

que não lembra direito

ao GPS do táxi (em pensamento)

que prefere dormir de bruços

ao apelo do prefeito

ao seu nome de guerra

ao cheiro, ao desespero

ao espelho do banheiro

ao relógio de pulso

ao dinheiro, ao uso dele,

à noite aguda do interesse

educadamente

à deixa no roteiro

ao endereço, ao preço

ao anúncio de emprego

como um morcego antigo

ao ruído que reflete

a parede das coisas

a superfície, o canivete,

o abrigo.

 

 

 

 

 

 

Estudo sobre uma abertura

 

 

A noite está deitada sobre a mesa

como um paciente anestesiado.

 

Seu rosto é neutro. Os impulsos,

cancelados. Ao operá-lo

 

os instrumentos movimentam-se

como é esperado. A incisão

 

corresponde ao programado, expõe

apenas o necessário.

 

A noite está inconsciente, como

o paciente esperado. Seus olhos,

 

bares abertos na densidade,

expelem clientes indesejados.

 

A incisão feita com restos

muito afiados de seu sexo

 

revela o lado escuro do cérebro

onde vermes, como passageiros de um barco

 

superlotado

agitam panos amarelados

 

para a luz súbita que os cega

sem saber que por trás da lâmina

 

as mãos que os esperam

são formas também humanas, e erram.

 

 

[Poemas inéditos]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ricardo Rizzo (Juiz de Fora/MG, 1981) é autor de Cavalo marinho e outros poemas (Juiz de Fora: Funalfa Edições; São Paulo: Nankin Editorial, 2002), Conforme a música(poemas, plaquete, Espectro Editorial, 2005), País em branco(poemas, São Paulo: Ateliê Editorial, 2007), Estado de Despejo (poemas, e-galáxia, 2014; São Paulo: Patuá, 2016) e Sobre rochedos movediços: deliberação e hierarquia no pensamento político de José de Alencar(São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2012). Recebeu o prêmio "Cidade Belo Horizonte" de literatura, na categoria poesia, em 2004. Foi editor da revista de literatura "Jandira" (Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2004-2005, números 1 e 2). Diplomata, é mestre em ciência política e doutor em história pela Universidade de São Paulo.