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APARÊNCIAS
 
 
Seria doce entregar-se
ao mar num dia sereno
a uma faca uma corda um veneno
 
Seria doce entregar-se
a qualquer ato
que sendo matar-se
funcionasse assim como um disfarce
e por um nome melhor
um misericordioso eufemismo
pudesse chamar-se.
 
 
 
 
 
 
MICHÊ
 
 
São Paulo é uma puta
de repertório completo
dá a frente
arreganha o verso
 
A frente dá aleatoriamente
mas por amor à rima
o verso preferencialmente
no Vale do Anhangabaú.
 
 
 
 
 
 
MENÇÃO HONROSA
 
 
Ali no mar onde ele
por amor se afogou
arma-se em certas tardes
um arco-íris raquítico
contra o qual os cachorros latem
e os meninos atiram pedras.
 
 
 
 
 
 
O CAPITÃO
 
 
Algumas noites ainda
o amor recruta
seus marinheiros mortos
resgata o barco
perdido no tempo
e buscando repetir
inteiramente igual
a catástrofe original
se lança outra vez
contra as ondas tormentosas
e os rochedos.
 
 
 
 
 
 
DUAS TANKAS
 
 
-I-
 
 
Na noite cerrada
Tombou a borrasca, e estou
Só, na encruzilhada.
A vida me deu um coice
E foi-se, rompendo a brida.
 
 
 
-II-
 
 
Pois mais não me ocorre
Com que te nomeie, sê
A flor que decorre
De a seres, quase, ou de assim
A mim, só, me pareceres.
 
 
 
 
 
 
DOIS HAICAIS
 
 
-I-
 
Silenciosamente
Flutua o cisne: outra lua
No lago dormente.
 
 
 
-II-
 
 
Na areia teu nome:
Momento que o tempo, vento
Contínuo, consome.
 
 
 
 
 
 
RECEITA
 
 
Com dois quartetos
dois tercetos e algumas rimas
tu podes fazer
um soneto parnasiano
uma obra-prima
 
E com três quartetos
e um dístico final
tu podes fazer
um soneto shakespeariano
uma obra sem igual
 
Coragem rapaz coragem
mostra que tu és capaz
de contar doze sílabas
sem nenhuma transgressão
ao tratado de metrificação
 
E visto que Musas já não há
talvez te seja útil
deixar crescer um cavanhaque
comprar um monóculo um fraque
e bancares o Olavo Bilac.
 
 
 
 
 
 
SONETO DA BUSCA DO OURO E DO QUE DELA RESULTA
 
 
Aos olhos dos indigentes
O amor é uma arca sagrada
De prata e ouro abarrotada
E moedas resplandecentes.
 
Buscando essa arca dourada
Esses tolos inocentes
Se lançam, inconsequentes,
À aspereza da jornada.
 
Quando à arca chegarem, se
Chegarem, nela verão
Uma caveira que, fria,
 
Lhes perguntará por que
Tanto esforço e obstinação
Por tanta bijuteria.
 
 
 
 
 
 
SONETO DO RAPAZINHO DE ALUGUEL
 
 
Como te faz mal lembrá-la.
Ah, como ela estava bela,
Sentada junto à janela,
No grande sofá da sala.
 
Chegaste e foste beijá-la,
E a cada beijo dado ela
Exibia a língua dela
E te mandava chupá-la.
 
Depois, deitada na cama,
Ela exigiu: "Me ama, me ama".
Mas, quando o sexo acabou,
 
Ela te mandou embora:
"Nós nos vemos qualquer hora".
Mas nunca mais te chamou.
 
 
 
 
 
 
SONETO DO MENINO QUE SAIU PARA SE DIVERTIR
 
 
Culpa nenhuma ele sente
Enquanto, dissimulado,
Tendo a rua atravessado,
Vai para a calçada em frente.
 
E remorso ele não tem
Quando, sem nem vacilar,
Se detém para falar
Com a puta que lhe diz "vem!".
 
E também não sente dó
Por haver furtado a avó
E esse dinheiro ir gastar 

Não num rinque de patim,
Mas gozosamente assim,
Num quarto de lupanar.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Raul Drewnick: nasci em São Paulo, em 1938. Na juventude me atraiu a poesia. Fui para o jornalismo e trabalhei na revista Visão (20 anos) e no Estadão (32). No jornal, fui cronista por alguns anos. Fui cronista também da Veja, com o Marcos Rey e o Walcyr Carrasco. Tenho 24 livros publicados, todos, curiosamente, em prosa (contos, crônicas e novelas juvenis). Nenhum de poesia, embora seja o que mais produzo (só de sonetos há uns 150).