Urdimento
 
 
O tempo
Desfia dor
Feito lâmina
Corta mais
Fino que
Navalha
 
Esconde
Por dentro
Animal
Sangrento
 
Arranca
Pétalas das
Orquídeas
Para comê-las
Não por fome
Por prazer
 
 
 
 
 
 
                    Terra à vista
 
 
A nau que da praia
Se aproxima
Carrega no tombadilho
Um punhado
De caboclos loiros
Uns quase negros
Meio moiros
 
Lá na proa vem
Nassau
Dando boas-vindas
Pra fazer nas nossas
Índias
 
Uns tantos rebentos
De olhos claros
Purulentos
 
Nossa herança
Aqui presente
Coisas do ocidente
E sífilis também
 
 
 
 
 
 
                    Regresso
 
 
No impermanente
Tempo do voltei
Da matéria
Que não se perde
 
Do fogo
Crepitante
Em que dançam
As labaredas
 
Das noites
Geladas
Dos campos
 
Voltei para
Ser assombro
Dos inocentes
Dos incautos
Dos viventes
 
Isso é
Permanente
Isso é
Para sempre
 
 
 
 
 
 
                    Procissão
 
 
O homem
Semeia sulcos
Nos terrais do
Sertão
 
Inscreve no
Horizonte seco
O lamento do
aboio
 
À espera do
Milagre
Sonoro das
Cheias
 
 
 
 
 
 
                    Porção
 
 
Que se prepare
O dia
Sobre a terra
Batida do chão
 
Cozinhem chuvas
Punhados de desnuvens
Pitadas de ventos
Salgados
 
Recolhidas ainda
Frescas
Derramem
Estrelas coradas
Num prato de sol
 
À sombra das
Macelas
Descansem o cozido
Ao entardecer da
Quinta-feira
 
Sirvam somente
Sete copos
Para um só gole
 
Ordenem
Que se tome deitado
Com olhos abertos
Mirando no céu
Profundo
Todas as mazelas do
Mundo
 
 
 
 
 
 
                    Palavra de aluguel
 
 
A palavra
Essa puta
Servida
À mesa  
Sem cerimônia
 
Farta-se
Come
No chão
 
Arrasta-se
Pelos cantos
Escuros
 
Esconde-se
Em bolsos
Sujos
 
Deixa-se
Rabiscar
Em mesas
De bar
 
Vagueia
Por bocas santas
E desejos
Impuros
 
 
 
 
 
 
                    Marinha
 
 
Velas
Ao vento
Remos
N'água
 
Um trago
No alvorecer
Da madrugada
 
O horizonte
Bem
De fronte
 
 
 
 
 
                    Lavra
 
 
Beber cada verso
Das papilas da
Língua-dura
 
Verter da vida
Rude
A ideia pura
 
Apalavrar
Poesia
Na cena crua
 
 
 
 
 
 
                    Dia de feira
 
 
Do portão
A luz vaza
À porta
 
Cachos d'uva
Espelho e cristaleira
A cesta carregada
Do frescor da feira
 
Corre de afazeres
Lençóis
Cheiro de alfazema
 
O cantar baixo dos
Quintais vizinhos
Algazarra dos meninos
O sangue quente
A pulsar nas veias
 
 
 
 
 
 
                    Curva
 
 
Canto de rio
É lugar de acumular
Histórias
 
Uma parada
Antes de perder-se
No mar
 
 
 
 
 
 
                    Correspondência
 
 
Encontrei
em desalinho
Poemas perdidos
No escaninho
 
À espera
De mais um verso
Amanhecido
Onde ias
Esconder as tônicas
Sem sentido
 
Guardei neles
Meus enredos
Esquecidos
 
Ficaram ali
Desejos grávidos
De poesia
 
Acomodados
Em maços de papel
Amarelados
A cobrir os delírios
Da tua lira
 
 
 
 
 
 
                    Adormecido
 
 
A dor amena
Acena
Ao longe
 
A cena
Some
Como a cerca
Alonga
 
O olhar
Anseia
FIM

 

 

 

 

[imagens ©jon rendell]
 
 
 
Paulobp é arquiteto e poeta paulista.