Os frutos da alma (Magnificat)
Para C. Cabral, T. M. Horta, Erick e Nathália.
Às irmãs W. Roig.
"Esta é a minha intenção agora. Tentar colher do vivido um fruto que alimente a compreensão da existência no mundo. Se este fruto existe ou é apenas uma fantasia já não importa mais, agora que já pus as mãos na massa. Na massa propriamente não, mas pelo menos, na ferramenta. O que seria então essa massa?".
Rogério Duarte (1939-2016)
I
Sob a árvore como combustão do exaurires-te, ressonas.
É meio-dia. Teu amaranto se enrama
ao módulo-fósforo do corpo desta adoração
metaviva, sumo
de despojos ao primor
do humo do éter, casca
do fruto extático que te receberá
à víscera de tua semente. Embevecido oráculo: o seres
em que te somes
ao Mim em teu amálgama.
Nem ao menos sonho algum: a memória, alma
sem desassombro ou tempo. E não que os frutos
ficassem sempre armazenados
no corpo, prontos para uma acessibilidade
de resgate. Era mais bem uma concepção
uma anterrenúncia, as letras em gomos novilíricos
de todas as polpas gnósticas. E tua luz
pontual
ao pareceres
deslizar
sob as danças de teu escopo, e sob um molde
de rosto
ao preparares-te
da alma os músculos
para as frutificações.
II
Ah fossem os despojos deste ímã
eles mesmos, alvo dos olhos
do fruto e dos dentes que eles em si mesmos, irrestritos
almejavam ter! sobre a carne de tua aventura.
O dispensário de espelhos, afeito ao rastro
deste longo
corredor
entre os teus olhos (quandos
em núpcias e formas líquidas são contraforjados)
para exibir donde antes diferentes as inflexões
do teu rosto-durante, resíduo como que peninsular
de teus recessos de adaptação aos frutos.
Assim, logo as tuas mãos, geralmente
os primeiros órgãos a receberem
os comandos
da vontade, logo as tuas mãos
podiam melhor moldar o tamanho
de uma própria pálpebra
no antro da casca, e os dedos
puxando os cílios podiam aumentá-los
ou curvá-los, conforme a ondulaçao
de olhar que te pretendesses.
Do teu ritmo-magma de formatos
irrigava
a noite em jactos
de paz sôfrega e úmido
adormecimento
no dia dos vagidos intra-
-uterinos (lodo
entre as flores teus sentidos)
ao passo em que quandos, e à mesma
noite, e não menos
florestais
em dias te devolviam, imane corpo
gestativo
às cláusulas das moradas eletivas. Teu amaranto:
ramo enluarado de flores
totais.
Encanto vegetal dos numes de cores
sobre teus cabelos caídos, rútilos
ao tornassol do ocidente. Ouro negro cainã.
III
À luz os movimentos de salto e voo
frente ao dispensário de escolhos. À luz
os frêmitos
dos narcisos, dos lírios e nardos
e sobretudo a rosa, tímpano
de veludo, a primadona
entre as pálpebras semicerradas. A rosa rubi
a rosa-estrela botonuda de teus dedos
içados
às raízes do vórtice de clorofila, árvore
de teus frutos almados-cristais
de espinho que sob o ocidente jalne ressaltam
aqueles teus cílios
desadormecidos
ao repercutirem a visão dos frutos:
âmago ou o teu espaço? Olhos
ao repercutirem a visão dos frutos:
sob o título de "Sobremaneira"
a máquina das tuas flores funcionava.
"Agora a reviravolta": assim teu recital de aspas.
Desde o átimo, no entanto, dos frutos
teu corpo, mero rosto
reincidente
se continuava: anuência
e desfiladeiros. Onde ficavas
quando outro encontro
dentro de um fruto se realizava? Onde
abrigavas
tuas mãos feridas?
IV
As cores ao crepúsculo dormitam:
anoitece ou amanhecia. Tua cor a dissonância
dos frutos nas sementes jogadas, no cultivo tóxico
de seus espíritos suculentos. Há um pronunciamento:
tua voz cantando
dos silêncios
aos silêncios.
As cores emanam
desse lugar aceso
e agora o silêncio expectativo? Expectativa?
Adentrando-te: ausência
de som. Os ouvidos
cegos e mudos
em imagem vibram: teu acalanto, o céu
cor de vinho
a grama laranja e a abóboda
transluminosa
do dispensário das cores
fora dos lugares. Teu ímpeto a voz
fustiga. Há um
pronunciamento:
mordedouros de dragões.
Cítaras e punhais. Liras amarelas.
A vina.
V
Ninguém soube ao Mim
(nem ao porquê)
dum novo fruto surgir, do dia.
O anúncio imparcial
e os luares
dando ao contato da pele o não fazeres-te
semelhança: tua maré (ao menos
de algum sonho) em células
maleáveis de mar
pulsa sobre o tronco de teus veios:
seiva. Os cílios adquirem a curvatura máxima
da naturalidade
para uma extensão de crina ao vento. Teu rosto-
-protagonista fala como ao relance
duma primeira pessoa (a transição ao Mim
como realidade
dramática entre outras). Os frutos:
a paixão dos frutos. A lua um quarto
ou já bem minguante, e de repente
uma outra lua ao lado. Estás crescendo.
A luz de um sonho
incide
sobre os olhos do teu fruto ao vento: a memória
existe, afinal, o inexplicável apego
do tempo. Ao Mim espias
lá para dentro. O interior
tem tentativas em luzes
e ao fundo, o aviso de lâmpadas
amortizadas
pelo calibre de um sol mântico
junto ao Mim, entre os teus olhos, ao coração
da árvore multicor. Tua voz reajusta
esta revisão. Vês luzes, mas dizes:
luz.
VI
Metais reiterados os frutos
de densidade comparada (em sônico
estacato) com o vento, moradores
quando esparzem teu corpo
(átomo entre os elementos)
entre as escarpas
de falácias reiteradas sobre o teu vestígio. É ao
Mim que o tempo de compartilhamento do corpo
foi ao longo do rastro
do encanto fazendo perpassares
entre os frutos coisas
como jugo e irmãos, embora
a árvore faça a questão de se eles serão
como as estrelas (no dispensário
de espelhos tentar não afastá-los
de uma ambiguidade de fruto — ou pelo menos não
propor características
que não partam de tuas ações concretas). Existem
desavenças graves entre alguns relógios. Em diversos
pontos
do centro
dorme entre os ponteiros, no dispensário de vozes
teu corpo de planeta, a magna terra, a mãe dos frutos
reagindo à sombra
desta máscara de árvore. Tuas mãos ao sol
praticas: ramalhos. Examinas
tua aparência. Antes de começar
a se vestir, entreter e trabalhar
na remodelagem de um fruto, espera-te ao Mim
o corpo frente à árvore. Teu amaranto:
o encontro. E ainda ao Mim a árvore
ajuda-te a desenhar em ti o desejo
de que o Rosto voltasse logo, ao rastro
de um dos cantos da hora.
VII
Quando aportaste ao sonho, novo morador (teu
rosto incandescido, boreal) causou-te
um grande espanto: o paradeiro dos frutos.
"Ainda estão verdes"
disseste. E ao espontâneo
recém-chegado com que te preenchias
nos quandos do ramalhedo em entrechoque, diligentemente
os frutos maduravam. O eco
que revidarias: teu fruto
pela primeira vez. Outrem:
ruído de teus passos à fagulha
das folhas pisadas.
Amor e solidão.
Clarão
de fogo úmido: a espera. Era o fruto não
admitindo modalidade de futuro
sem ti, e por esta via
qualquer busca, qualquer
tipo de escape adquiria
em ti, mais do que nos doutos
protorrostos (quandos inscritos
pelo teu corpo de raízes)
atenção acentuada de teus limites, alma
ainda projeto de desenvolvimento-sonho
de um quem-eu-sou que adensa
o desempenhares-te: talvez antes
de todos, gradualmente perecível
a contingências mais e mais reconhecidas, eras
o lume
e a melancolia. A voz
e a boa aventura.
VIII
É nos veios mais proteicos da árvore
onde acontecem as transmutações
de uns frutos em outrem: teu coração. O amar
da árvore: seus habitantes maturando
(vertendo-te)
em seiva incontinente. Diminutos, teus
râmulos que para além da música
do vento, te espraiam
ao gosto das adaptações de teu sabor
à carne dos frutos: à árvore toca
o processar-te ao corpo
que te detém
esporadicamente. Esse é um trunfo
que a árvore tem: o de não ser
abandonada. Os frutos
te entornam para bebê-la. E a amam
à tua maneira.
IX
O sol é da luz a nata árvore:
a árvore é da luz o grande ovo.
As mutações de seus moradores
estão na natureza:
estão aqui. E os frutos?
Desfrutáveis
e com sementes-quandos? Tua voz ao Mim
parece
distender-te
o alcance deste primeiro salto
(os campos prolongados para a colheita). És pouco
mais que o meio-dia. Teu acalanto:
pessoas. A árvore nasce
em teu torno ao Mim.
Moves tuas pálpebras: clarão
irradiando
à paisagem do azul celeste lá para dentro.
Repassando rente (o céu)
traspassado por nomes comuns:
pensamento, fotografia
os rumores de outrem
dando nos frutos (à luz opaca
da casca-pessoa)
o primeiro
drapejo
de propriedade
naqueles fachos de nomes de coisas.
Chamam-te
pelos teus nomes. Tu estavas (sendo)
o Rosto, com tuas mãos
inquietas aos comandos da vontade. Tu estavas
(sendo) o fruto. Há um pronunciamento:
tua voz
ouvindo
em silêncio. Dentro
de tudo.
X
Prata verteu
ao silente nódulo de ruído
em que te aninhavas. Dentes perfuram
(ao ecoar desta palavra)
o fruto: o ouro. A festa das fomes. Ode
ou tauromaquia.
As cores em signos
sumidas: adensados
amarelos mergulham no crepúsculo de cobre
e carne. Teu amaranto odora: abdução
ao Mim de teu consumo em cântico. Já não és
mais. O corpo inerte acorda
e reconfigura em átimo a tua imagem, os olhos abertos
sob a árvore repercutida. Com as mãos ainda
te remodelas um novo assomo: e a vida dos frutos
sobre a tua margem
esplende outrem.
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