Paisagem transitória

 

 

1

 

 

Dunas

pirâmides de areia

decantadas do vento.

 

Move-se a paisagem

da fixidez

que o olhar insinua

nada perdura.

 

Como o rio

jamais o mesmo

 

a quem à margem

nem as margens

sempre as mesmas.

 

 

 

 

2

 

 

Onde tudo vento e areia,

onde semovente tudo,

 

as pedras

sob o musgo,

nesgas de luz,

mariscos,

 

assoladas de sal,

testemunham a paisagem transitória.

 

 

 

 

3

 

 

Dunas

de pequenas dunas,

como o vento as arruma:

 

linhas alinhadas

em desalinho,

arestas de espuma,

 

onde tudo

ondula em

dunas.

 

 

 

 

4

 

 

Cada grão de areia

um gérmen

de luz e sal.

 

Árido sêmen

semente de duna

cristal.

 

 

Praia da Guarda do Embaú, 1995.

 

 

 

 

 

 

Relâmpagos

 

Los huesos son relámpagos

en la noche del cuerpo.

Octavio Paz

 

 

1

 

 

Pelo jardim

onde cintila

poeira de pólen

 

é leve o gato cinza

silêncio

descaminho.

 

 

 

 

2

 

 

A árvore memória

 

despetala-se

à flor da água

a sombra das folhas

 

o rio esquecimento.

 

 

 

 

3

 

 

Enquanto a ferrugem

corrói o ferro rijo

 

cupins, na campina

de capim, pinçam.

 

 

 

 

4

 

 

 

Na maleável

sincronia

do cardume

 

peixes faca

feixes prata

animal lâmina.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Nos olhos do lince

o alcance do alce.

 

Num relance,

o alvo se alvoroça,

 

a fuga, a dança,

a performance começa:

 

sem lança nem flecha,

o lince abre uma brecha.

 

Espreita, inspira,

expira, grave:

 

cansado, alcançado,

o alce amansa.

 

 

[Poemas do livro Paisagem transitória. Ed. Ciência do Acidente, 2001]

 

 

*

 

 

A gaivota

no curvo céu cinza,

no arco

das asas longas,

mapeia a praia.

 

A gaivota

busca emboscar

o peixe na água viva,

traçando no ar um oito

sobre outro.

 

A gaivota

cercando o cardume

na rota das rotações,

circunda as ondas

a céu e mar abertos.

 

Gaia devota do vento,

a gaivota

vem e vai,

vai e volta.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

A lesma sobe o tanque

tão lenta

que parece parada:

 

sub-reptícia

a se esgueirar esguia,

insinuante e sinuosa.

 

Capilar, se desloca

como a onda rumo à forma,

cola seu corpo e descola.

 

A mesma

que pouco

há pouco se movia agônica,

 

some (pálpebras

num piscar de sono)

no corte diagonal da sombra.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Em frente à água da fonte,

a mendiga maltrapilha se maquia.

 

O sol incendiando a fonte

projeta uma coreografia de água,

ondas de luz na sua cara.

 

Na manhã azul,

a luz dança em sua pele suja

de uma vida inteira.

 

Ela se olha em seu caco

de espelho e retoca

o batom rosa.

 

O sol bate na fonte

e rebate na roupa

retalhada de remendos,

ela retoca

o rímel e sorri.

 

Enquanto se maquia

e a luz brinca

nas secas maçãzinhas do rosto,

diz sorrindo com voz rouca:

 

"Morrer é a coisa mais feia do mundo."

 

O sol bate na água,

na fonte,

na praça.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Amigo,

 

proponho — como brinde à vida —

um pacto de vísceras:

como a antiga sibila,

como um jogo de infância:

 

quando eu morrer,

garanta meu túmulo

(garanto o seu)

ser no estômago de meus inimigos,

para pasto de suas ruminâncias.

 

Se possível providencie

que minha carne ainda morna

seja servida em postas,

afogada em molhos,

picada em sopas,

e que meu sangue seja

diluído em caldos

(cairão como pedras

no estômago inimigo).

 

Que de lá possa,

para além de outros tumultos

e embrulhos,

pôr o olho e ver

o mundo através de seus umbigos

e cuspir nos seus intestinos.

 

Quanto à sua carne morta,

eu mesmo a esquartejarei.

 

Que neste pacto lhe confio,

amigo,

além de um abraço,

um abrigo.

 

 

 

 

 

 

Noturnos

 

 

*

 

 

Brisa

sobre

brasa

 

abre

e vibra

a carne do fogo.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Sinto o cheiro:

esta noite

vai chover.

 

O vento

açoita as estrelas

com teus cabelos.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

A aurora arborescente

 

expande seus galhos

pela abóbada rosa

sua copa de éter

 

espalha das ramas

tramas de luz

tecido finíssimo

 

e se espraia pelas linhas

 

que tocam a noite

dos teus cabelos

com a seiva do sol

 

até a raiz.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

O vinho tinto

a noite aberta

tilinta.

 

Taças, beijos

estrelas

brindam

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Brisa

sobre

brasa

 

abre

e vibra

a carne do fogo.

 

 

[Poemas do livro Musga. Ed. Mirabilia, 2010]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Mario Henrique Domingues é poeta, autor de Paisagem Transitória (Ed. Ciência do Acidente, 2001) e Musga (Ed. Mirabilia, 2010). Mestre em Letras Clássicas pela USP, é tradutor de O tigre de veludo — Alguns poemas de E. E. Cummings (Ed. UNB, 2006), em parceria com Maurício Mendonça Cardozo e Adalberto Muller Jr.

 

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