©tommy ingberg

 

 

 
 

 

 

 

 

PRODUTOS DO CORPO

 

 

Se não for algum trauma de infância, meu pejo em certas situações decorre possível da criação que me deu papai. Queria-me um gentleman, e mesmo se empenhou em tornar-me um, digo que não com absoluto insucesso. Tenho lá meus bons modos, por vezes pintalgados de qualquer má sorte, mas tenho.

 

O fato de papai ter rido, numa partida de bridge na casa do Comendador, de uma inusitada flatulência de mamãe creio tenha sido a principal razão. Mamãe empombou-se, descomposturou papai. Ainda o fez com mais empenho numa segunda situação, manhã de domingo no Golf Club, quando papai teve a vez, preparando uma tacada magistral, de produzir sua flatulência, com escândalo, para gáudio do Comendador, um homem divertidíssimo. Associo desde estes priscos tempos os produtos do corpo a qualquer vergonha, e vivo me furtando de produzi-los se não em isolamento absoluto.

 

Não acho que seja muito civilizado, mesmo é uma trava incompatível com um homem resolvido, como me pretendo. Invejo as pessoas resolvidas.

 

Houve um tempo de fausto, quando eu era rico. Morava então num flat belíssimo, cuja sala, ampla, abrigava até piano de cauda. Recebia, e com glamour. O namorado da filha, no primeiro dia em que me veio visitar, casa cheia, pediu pra usar o banheiro. Indiquei o lavabo da vasta sala onde todos privávamos. Havia um silêncio permeado por um Mozart que tocava baixinho. Ele entrou no toilette sem constrangimento algum, trancou-se e jactou uma urina produtiva, generosa, direto na água, ou seja, com mais estrépito. Deu descarga, lavou a mão, tudo de fora se percebia. Saiu indiferente e garboso. Mordi-me.

 

Findos os tempos de fausto, após a falência e o divórcio, recolhi-me num sala-living simpático, mas sem condição de abrigar piano de cauda. Em compensação, recebia bastante. Vários amores.

 

Minha dificuldade era chegar a intimidade com as amadas que permitisse usar a suíte contígua, coisa que só no casamento se tolera. Horrorizava-me ter uma explosão intestinal ouvida no quarto ao lado, ou mesmo um singelo assoar de nariz. Urinava sentado, e com a torneira aberta, por escamotear o barulho de minha jactância.

 

Em contrapartida, se avaro não me doava no amor a ponto de permitir minha intimidade escatológica devassada, adorava ouvir os ruídos das amadas. Tinha ereções. M. flatulava sem freios, parecia pouco ligar, impossível não saber que eu ouvia. A. urinava gostoso, excitava-me ouvir o jorro afrontando a louça, o papel sendo rasgado pra enxugar, a descarga. P. era finíssima, abria a torneira também. Era-me necessário por o copo na parede e colá-lo à orelha pra ouvir direito. Cada filigrana ouvida era um passeio no céu dos prazeres mais gozosos. C. tinha feito um curso de boas maneiras pelo qual aprendera a não fazer ruído urinário. Não fazia de fato, nunca soube sua tática, recusava-se a contar.

 

Expostas premissas, faço um corte temporal e projeto-me a dias de hoje mirando o ponto de fuga de um horizonte belíssimo na capital das Minas Gerais, pra onde vim a buscar alguma esperança de revisitar a fortuna. Cidade querida, acolhe tão bem, a profusão de amigos se torna em disputa pra ver quem me hospeda.

 

Por força do complexo declinado no introito, de ter pudores com as secreções corporais, sempre que viajo gosto de reservar uma suitezinha básica num Sheraton da vida, onde me esbaldo solitário e inaudito entre as louças, bronzes e mármores. Em BH, se vou pra hotel tomam por desfeita. A acolhida generosa foi oportuna, não que eu tivesse qualquer limitação de me hospedar no Sheraton, em absoluto. Fico prazeroso nas casas dos amigos, com uma única ressalva: meu limite de contenção dos produtos do corpo raramente supera as 24 horas, e qualquer estadia por mais de dia se torna em constrangimento.

 

Uma vez ficamos na casa de praia da ilha de Angra dos Reis que o Comendador mantinha pra lazer eventual. Tolhido, pelos já expostos motivos, de usar os banheiros da vasta mansão, construída em área de preservação ambiental, eu me aliviava de fogos e lavas vulcânicas em alto-mar. Aprofundava-me nas verdes águas e lá ficava, olhando piedoso pra ilha como se a contemplasse. O prazer era o do alívio. Ocorreu de a esposa do Comendador, que lia na praia, colher na areia um cilindro de cor ocre, pelo que fez sérias admoestações. Acolhi sua indignação e perorei contra a sorte de farofeiros que empesteiam as praias do continente, essa gente que estraga a Natureza. Com um sorriso incompreensível, que só às grandes damas pertence, ela me disse, Aham.

 

Já por dois dias na casa de amigos, contido, apartado da sala de banhos, aproveitei o dia livre pra vagabundear solitário pelas ruas de BH. Tomei cerveja, bebida que tem o condão de me libertar um ventre prisioneiro. Almocei lautamente, tomei suco de mamão com laranja para acompanhar e, de sobremesa, uma barrinha de cereal deveras fibrosa. À primeira pontada desesperei-me, Onde agora. Rodoviária não sento, o restaurante cheio demais, na Praça da Liberdade, nome irônico, não tinha banheiro público e, tivesse, o próprio adjetivo "público" já me tolhia. "Há que ser privativo, e não público, o espaço da nossa individualidade". Acho essa frase tão bonita.

 

Papai vem paulatinamente perdendo os atributos de gentleman. Outro dia, durante uma partida de gamão no salão de jogos, soltou-se desbragada e impunemente. Pra minha triste surpresa, mamãe, que passava, louvou aquela miséria, Nossa, meu velho, esse foi lindo. As coisas vieram piorando, os tempos de fausto se foram. Depois que o Comendador morreu, parece, tudo perdeu o glamour. Menos pra elegante viúva, que conservou-se em fausto graças a polpuda pensão que o Estado garantiu. Homem relevante, o Comendador.

 

A salvação se me apresentou na forma de arquitetura clássica. Edifícios belíssimos, outrora sedes de autarquias improdutivas, agora restaurados e ocupados pela nossa laboriosa iniciativa privada. Viraram institutos, ongs, espaços, etc., coisas utilíssimas, um uso bem mais digno que a inoperância do aparelho estatal. Tomei-me de simpatia por um prédio rosa, as colunas de capitólio compósito. Museu dos Metais, creio que era isso, mantido por uma mineradora ecológica que comia montanhas e era amiga do social e das crianças, outrora uma estatal falida e corrupta, hoje glória de um Brasil desenvolvimentista. Oxalá um dia libertem a petrolífera, qual fizeram com a mineradora, dela façam uma privada.

 

Depois de mirar brevemente drusas, turmalinas e citrinos, fora as animações de minas de ouro e ferro, assuntei com um distinto cidadão de terno e óculos escuros onde havia um water-closet. Levou-me a elegante recinto, marmóreo, greco-latino, discreto e, glória suprema, vazio. Inspecionei o reservado, um vaso elegante, totalmente higiênico. Sentei-me a ler um livro de poemas.

 

Certas epifanias fazem o tempo relativizar. Quando dei por mim tinha ido o claro do dia. Assustei-me com duas vozes, Inspecione o banheiro se tem alguém. O outro, maganão, respondia em delicioso sotaque das gentes da alterosas, gritando pra dentro do recinto, Ê, uai, tem alguém cagano.

 

Pressentindo a inexorável passagem de cronos, e o iminente fechamento do museu comigo dentro, achei de bom tom acusar minha presença, Ô, meu, tô aqui.

 

Os dois funcionários calaram, faltou-lhes o sangue às faces, olharam-se atônitos, ficaram temerosos, senti isso, que eu fosse me queixar à administração da mineradora. Não tinham estabilidade de funcionário público. Possivelmente de empresa terceirizada, ou seja, não eram da conta de ninguém, elimináveis sem custo feito moscas. Emprego não anda fácil.

 

Cumpri minha tarefa com garbo, um tanto pejado, e saí. À porta dois distintos cavalheiros esperavam-me, emparelhados. Brinquei pra espantar o triste da cena, Erguei vossas espadas e fazei uma abóbada de aço pra que eu passe.

 

Desci escadas acarpetadas de vermelho seguido por dois batedores, feito um papa. O museu brilhoso se apagava, seus cristais e metais. À suntuosa porta de entrada, uma senhora distintíssima, de cabelo violeta-prateado, conversava com outro guarda. Devia ser a presidente do museu, ou de alguma fundação. Olhou-me prendendo os lábios num sorriso cínico mais dúbio que o da Gioconda, e fez um leve meneio de cabeça, qual dissesse, Aê, ein. Tão parecida com a esposa do saudoso Comendador.

 

 

 

 

UMA CARTA PARA MONSIEUR STENDHAL

 

 

Santos/SP, Brasil, 25 de outubro de 2009.

 

 

Caro Monsieur Stendhal:

 

Escrevo-lhe ostentando o título de ser um daqueles cem leitores parisienses que julga considerarem sua obra, e aos quais o senhor disse amar profundamente, malgrado não os conheça. Creio que passe, nestes dois séculos, de cem a cota dos seus cativos, e que extrapolem os estreitos limites da capital francesa.

Com que habilidade, no tratado intitulado Do Amor e das Diversas Fases Desta Doença (De L'Amour), o senhor estuda a evolução do amor comparando a um ramo de árvore que, lançado às profundezas de uma mina de sal, e de lá retirado após alguns dias, volta ornado de brilhantes, cristalizações que tornaram aquele galho seco em joia inestimável.

Não só a mim, não só a outros sete, mas a toda uma legião de padecentes disto que o senhor chamou doença, tal metáfora toca fundo. De mim, digo ter um galho imenso, triste troféu, ornado de diamantes amargos, do sal que charqueou as carnes de meu miocárdio. São joias venenosas estes adamantes, ainda que belas. Ornam o galho insípido da vida minha.

Pois foi da leitura desta obra que concluí, Monsieur Stendhal, e corrija-me se incorro em equívoco, terem as fêmeas dois atributos que lhes atrapalham a possibilidade de amar e tolhem aos machos, em absoluto, a de se fazerem amados: o orgulho e o pudor.

É que são os homens, via de regra, privados destes dois atributos. Submetidos ao amor abdicam do orgulho, entregando-se à infâmia mais degradante, se necessário, para se fazerem notar pela mulher amada. Do pudor, os machos abdicam no nascimento.

Da cota de falta de pudor que a mim foi atribuída pela Providência, e privado do orgulho que o amor por determinada senhora furtou-me, é que a tenho importunado com súplicas nem sempre discretas. Por indiscretas, têm-lhe recorrentemente afetado o pudor, pelo que se vem mostrando assaz indignada para comigo.

Não sou espírita e tampouco estou neste momento a valer-me de subterfúgios de mediunidade. Falo ao senhor, morto há dois séculos, e tenho mais esperanças que responda esta missiva do que minha amada dê um sinal de reconhecimento de meu estardalhaço.

Não, não é verdade. Na verdade, verdade mesmo, nutro e acalento esperança que ela, tomada de amor-doença que nem eu, sucumba de febres e tremores, supere orgulhos e pudores, e fale comigo. Vide sua teoria da esperança: o amor só vive enquanto há esperança, ainda que subjetiva ou impossível.

Sei que ele há de lentamente morrer sufocado à medida que a esperança se esvaia pela indiferença do ente amado. Ando nesta trilha, e bem avançado. Mas penso que ainda há muito a percorrer.

Por superação do sofrimento do amor não correspondido de sua Matilde, o senhor escreveu o tratado. Vendo graça na própria desgraça ri, amargo, quando o senhor mencionou que o amor tolhe ao homem a absoluta capacidade de raciocínio, e este passa a proferir à mulher amada tudo o quanto não desejaria, tudo o quanto não deveria e, pior, tudo o quanto ela odiaria. Privado da razão, o pobre amante, tomado de desespero, verbera estultices, verte imbecilidades, troca sentidos das coisas e desagrada, por fim só desagrada. É o quanto me ocorre.

Sigo os mestres: tentei, feito o senhor, fazer brotar de meu infortúnio alguma filosofia. Foi assim que desenvolvi, a partir das suas pertinentes conclusões sobre o quanto as considerações das amigas afetam o orgulho de uma mulher, a minha Teoria da Abelha-Rainha. Sabe aquelas barbas de abelha que os apicultores fazem? Colam uma abelha-rainha ao queixo e todas as outras vêm se agregar.

Hoje, Monsieur Stendhal, não mais vigem os tempos da nobreza europeia do século XVIII. Os nobres de antanho chamam-se hoje classe média. Não é tão comum o adultério quanto naquelas priscas eras, mas não ouso dizer seja ele de todo incomum. Assim, cumpre-me confessar que sou casado, e minha amada também o é. Complemento esta explicação dizendo ainda que não sou casado com minha amada e, portanto, fomos adúlteros, o que não é mais considerado nobre.

Minha esposa logrou descobrir a aventura que se veio a tornar em minha desventura. Importa esclarecer, Monsieur Stendhal, que os cônjuges de hoje em dia nada têm da complacência dos nobres do seu tempo, que toleravam amantes, eis que também os tinham. Assim sendo, a partir da descoberta de ínfima parte de meu affaire, tomado de um pânico absurdo, que nada tem a ver com pudor, mas denota extremada carência deste atributo, lancei-me à completa confissão do quanto vinha acontecendo, pois não suporto tortura, e a ela fui submetido. Contei tudo o que não podia, e mesmo além, com riqueza de detalhes, quem era, onde morava, o marido.

Minha senhora, que é fêmea, viu-se ferida de orgulhos e saiu na defesa de seus pudores: procurou o marido de minha amada e contou-lhe o quanto ocorria. Este, sendo macho, não tem pudor por natureza e, tanto quanto eu, ama. Viu-se privado de orgulho e passou a publicar o fato, sem ligar à própria honra, tornando, assim, vilipendiada a de minha amada, que passou a ser considerada uma fêmea leviana.

Por ironia o escândalo afetou minha amada naquilo que as fêmeas mais prezam: seu orgulho e pudor. Veja o senhor quanto o destino roça os limites do sadismo, extrapolando os da ironia: a mim, macho, o mesmo escândalo elevou fama a píncaros, destacando dois atributos que desconheço e que, portanto, não considero: os mesmos orgulho e pudor. É que vige em meus tempos, e creio que já ao seu vigesse, o imperativo de considerar os machos um orgulho quando declarados pela sociedade insuperáveis despudorados. Alazões. Garanhões. O quanto me eleva, rebaixa minha amada. Trocaria de condição se pudesse.

Pois de tudo o quanto há de triste neste episódio, restou que minha amada me culpa por ter sucumbido à tortura imposta por minha esposa, palitos sob as unhas, e ter entregue à repressão nosso doce aparelho. Assim sendo, sistematicamente se vem recusando a receber-me, e mesmo ouvir-me. Ler-me, não responde minhas cartas, hoje chamadas emails. Olhar-me. Lembrar-me. Pensar em mim.

Debaldes são minhas tentativas de suscitar sua atenção. Acalento com rematado carinho a hipótese de postar-me à frente de sua residência, que fica em movimentada rua de minha urbe, com uma zabumba atada à cintura, ribombando baquetas e berrando que volte para mim. A razão assassina a ideia. A razão não, Monsieur Stendhal, mas o pavor que me infunde minha senhora. A razão é subterfúgio para furtar-me ao medo e à falta de pudor.

Foi assim que deliberei seguir seus passos: elaborar um tratado sobre o amor para que ela, considerando meu gênio filosófico e literário, voltasse. Criei, do desespero, minha Teoria da Abelha-Rainha e fui mostrar a minha amada, a quem julgava culta e literata. Efetivamente o é, dama de escol, mas olvidei sua condição de fêmea e a natural falta de humor, pautada no pudor e no orgulho com que rechaçou minha verve. Quanto à Teoria da Abelha-Rainha, permita-me um introito: no círculo social que frequento foi que conheci minha amada. Privo, neste círculo restrito, da companhia de doces fêmeas, muitas das quais acompanhadas de seus maridos, todos pretensamente intelectuais. Reservamos noitadas alegres no desenvolvimento do que hoje chamamos papo-cabeça, o que significa conversa entre tipos pretensamente cultivados. As damas capazes de empreender tal tipo de conversação via de regra são profissionais resolvidas financeira e emocionalmente, à busca da felicidade, como qualquer vivente. Ainda nos tempos de hoje, como creio fosse ao seu tempo, meu nobre escritor, as fêmeas se agrupam entre si, os machos outro tanto. Falam estes de caçadas, duelos, grande somas de dinheiro, futebol, mulheres. As fêmeas, outrossim, juntam-se para falar de danças na corte, cosméticos, criadas, damas de honra, aventuras amorosas. Tudo, tudo igual.

Todavia, se no grupo dos homens jamais se sobressai um líder — todos o tentam ser, dada sua natureza competitiva — não menos certo é que, no das mulheres, é sempre eleita uma, geralmente a mais privada de atributos. Como são estranhas estas graciosas criaturas.

Pois assim lhe conto, caro Monsieur Stendhal, que cheguei a minha amada, como a diversas outras amigas antes dela, através de sua líder, a dita Abelha-Rainha. No grupo de nobres de classe média que tive a honra de frequentar, as damas reuniam-se, como sói acontecer, à parte dos homens. Na arte das conquistas, que a homens casados se deve cultivar extremamente discreta, me aproximei daquela que não era exatamente a mais bela, mas que pareceu-me mais receptiva. Mal sabia eu que, naquela colmeia, as divas a haviam elegido sua principal. Talvez por esconder a insegurança que a comparação às amigas lhe devia impor, ela era a mais descolada. Esta palavra significa, Monsieur Stendhal, hoje em dia, uma dama resoluta. Aproximei-me desta dama resoluta e descolada, vivemos um tórrido romance, sob protestos e invejas de todas as outras, que não criam ser, mais uma vez, superadas pela abelha-rainha. O reinado absoluto desta abelha se dava tão somente pela condição de guerreiras que o orgulho trazia a algumas, e de operárias, que o pudor conferia a outras. Furtando-se aos dois naturais predicados das fêmeas, aquela abelha atingiu o posto máximo por conta do valor que os machos atribuímos às fêmeas sem muito orgulho e com pouco pudor.

Uma vez nas graças da abelha-rainha, que divulgou e mesmo superlativizou minhas qualidades de amante ao grupo, com que doce vaidade lhe conto eu, meu preclaro filósofo, que catei uma a uma todas aquelas fêmeas da colmeia. Catar hoje em dia, Monsieur Stendhal, significa privar de intimidades eróticas. Catando de uma em uma fui de fêmea em fêmea do grupo até minha amada, quanto catado fui. E aqui retomo a história que lhe vinha contando.

Meu caro Monsieur Stendhal, esqueci-me de pesquisar nos alfarrábios que a genialidade de sua obra não fez trazer de volta sua amada, pois as mulheres, absolutamente, não consideram o gênio de um homem. Mais, por vezes trocam o que era antes uma gritante paixão entre nobres por um tipo qualquer, sem qualquer atributo notável. Assim, por ter esquecido de fazer tão importante pesquisa, pois o amor a nós machos não nos tolhe só o orgulho, mas também a razão, foi que lancei-me a apresentar a estúpida teoria a minha amada, na esperança de que me considerasse gênio e de mim gostasse de novo. Colhi, meu senhor, resultado diametralmente inverso.

Hoje, apaziguado, concluo que minha teoria, além de insipiente, era ridícula. Mas não foi por isso que não mais logrei sorte no amor. O senhor criou um tratado genial e continuou rechaçado tanto quanto. De que serve tanta filosofia, Monsieur Stendhal, porque lemos tanta poesia, retórica, gramática, matemática, semântica, propedêutica, hermenêutica, se agora, às exatas duas horas e trinta e três minutos da manhã deste sábado o senhor está aí, morto há quase duzentos anos, e minha amada está lá, nos braços do zangão mais insignificante que poderia haver numa colmeia?

 

 

 

 

DIFÍCIL, O DIÁLOGO

 

 

Enquanto moro sentada aqui, na sala, o Buda me olha risonho. Na loja de quinquilharias da Índia o apresentava:

 

"Este Buda é na verdade São Francisco de Assis".

 

A expressão de felicidade teria sido adquirida depois que colocou nas costas a mochila, um vaso de água pendurado numa das mãos, mais nada. Largou fortuna, largou palácios, largou seu pai, foi andar pelo mundo. Só mesmo privado de tudo encontraria um homem a alegria que meu Buda irradiava. Sorriso largo.

 

Comprei na esperança de que aquele ser apático que dorme enquanto fico digerindo esta insônia, aqui na sala, se possa mirar num exemplo digno. No fundo uma esperança que abdique de suas pequenas conquistas materiais, o carro, a TV gigante onde vê o maldito futebol, da poltrona nicotinada onde se diverte a flatular nos dias de ócio, largue tudo e vá viver uma vida de renúncia. Queria imergir no aquário obtuso da mente dele, saber que culpa tenho neste estado de coisas, que só eu pareço enxergar.

 

Pretendia naquele dia adquirir um livro de Sylvia Plath, edição rara, num sebo, mas o dinheiro tinha ido na balança Filizola em péssimo estado que comprei no ferro-velho. A peça demandou reforma mais cara que ela. Azeitada a maquinaria, voltou a pesar com exatidão, apesar de gasto o mostrador que indicava quilos e gramas. Parou aí a reforma da balança. Pintar e colocar um mostrador digno foi empresa postergada, tornando o gasto inútil e a peça esquecida num canto, imprestável até para efeito decorativo. Devia ter comprado o livro. Ou não, teria lido no mesmo tempo que dediquei à balança, acabava abandonado na estante, mais um objeto, outra materialização de um momento perdido, pra injuriar o vazio de sensações. Não quis pedir mais dinheiro a ele. Impossibilitada de viver dali por diante sem o Buda, comprei em seis vezes no cartão de crédito. Depois dava um jeito.

 

Foi deste mau uso de recursos que juntei a coleção de inutilidades que me dá sentido à vida. Vivo em sebos, ferros-velhos, sucatarias, lixões do espólio do quanto se ache inútil e largado à sorte, se é que de sorte se pode chamar o abandono. Uma comiseração pelos objetos abandonados, por crianças e velhos, quero pegar, cuidar, dar sentido, utilidade, razão. Meu acervo é um grande asilo.

 

Lembro de um negro velho, talvez não tão velho, um indigente, um carrinheiro que ficava na pracinha. Naquela manhã levei as crianças pra brincar e puxei conversa com ele. Estava amassando latinhas de alumínio. Tirava os lacres. Falou que vendia pra um travesti, pra fantasias de carnaval, por um preço proporcional bem superior ao quilo do mesmo alumínio da latinha amassada. Tinha quando muito cinquenta, um negro de compleição forte, aniquilado pelo álcool. Mantinha um ar de superioridade, umas narinas arfantes de búfalo cafre, cabeça quadrada de um deus de aldeia, um xangô. Vendia latinhas para comprar aguardente. Um litro por noite, senão não podia com a dor. Contou que tinha perdido mulher e filha num acidente, desgostou de vida. Vender latinhas.

 

Meu marido, aquela criança abandonada a quem quis dedicar meus cuidados, entretanto, recusava meu abrigo, meu cobertor quentinho. Quando conheci precisava. Meu pai sempre falava, dando um jeito de minha mãe ouvir a preleção, que uma mulher jamais larga um homem no lugar que encontrou — ou leva milhas adiante, ou faz regredir encarnações.

 

Olhando a barriga que ressonava, sobe e desce, um coração em peito aberto à cirurgia, quantas eternidades regrediu meu marido, voltou pra antes do sopro divino, barro imodelado. Quero largar este barro. Porque pensei isso? Claro, teoria das associações, ontem no sebo comprei um vinil raro de João Bosco:

 

... um choro soluçante que não para

Piada suja, bofetão na cara,

E esta vontade de soltar um barro...

 

Quero soltar este barro, livrar-me desta prisão de ventre. Pra dar vida a esta merda de barro, só Deus mesmo. Não sou Deus.

 

Ele ronca. Volto pra cama, durmo também. Quando acordei, às nove, um domingo, tinha sumido. Não é disso. Queria que fosse. Preocupei. Celular:

 

"Onde você está?".

 

"No parque".

 

"Fazendo?".

 

"Sei lá, pensando na vida, precisava ficar um pouco sozinho, refletir".

 

Aquilo me tomou de tamanha alegria, aquele despertar, reação máscula à modorra da vida, passei a revisitar todo o encantamento do dia em que nos conhecemos. Aquela obesidade próspera era um troféu. Talvez eu cobrasse demais: eu mesma tinha ajudado a ficar daquela forma, a segurança de um lar e uma esposa dedicada. Consegui.

 

Aquele esboço de crise existencial me encheu de tanta esperança. Vai ver que entendeu o recado, talvez se mirasse no Buda, as papadas já tinha, largasse suas conquistas, seu carro, seus uísques, o título de clube, essas merdas. Talvez buscasse entre minhas saias uma túnica, cobrisse suas gorduras, tão meigas, búdicas, vestisse aquele sorriso do Buda e fosse andar pelo mundo. Eu, do meu canto, largaria as minhas também, coisas velhas, quinquilharias. Balança Filizola de volta ao ferro-velho, discos e livros de volta ao sebo, panos de volta à feira hippie. Seguir este Buda até o nirvana.

 

Tão somente para cumprir o protocolo feminino demonstrei revolta com a atitude inusitada, suscitar uma explicação que mais me apaixonasse:

 

"Que palhaçada é essa? Pensar na vida, tá infeliz com o quê?".

 

Desligou na minha cara o celular. Exultei, um homem em crise, um sartreano, eu Simone, um louco refletindo sobre a vida, ainda que para chegar à conclusão de que nada faz sentido. Alguém que me entendia, minha solidão, meus objetos velhos, minha necessidade de cuidar, consertar, prover, dar vida.

 

Entendi aquele desligar como um choro incontido, um brotar de sufocados, a crueldade da vida batendo num bruto, num forte, meu homem, que ali chorava. Chorava pra mim. Eu pegaria ao colo, cuidaria, daria força. Levantaria mais forte e cuidaria de mim. Melhor aquele desligar que qualquer explicação ou pedido de desculpas.

 

Gozava ainda a redenção, não levou mais que dez minutos da ligação quando a campainha tocou. Era ele.

 

"Te peguei. Já tava nervosinha, achando que eu fosse ter um acesso de bichice, crise, depressão, né? Só desci pra ir no açougue. Tava com uma puta vontade de comer costelinha de porco. Achei umas maravilhosas, vou temperar e pôr na churrasqueira pro almoço. Tá afins?".

 

Ele trazia ainda, sob o sovaco, um plástico transparente que abraçava doze latinhas de cerveja quente.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Manoel Herzog (Santos/SP, 1964). Iniciou na literatura em 1987 com Brincadeira Surrealista, poemas. Em 2012, publicou Os Bichos, romance, pela Editora Realejo. Em 2013, Companhia Brasileira de Alquimia, romance, pela Editora Patuá. Em 2014, também pela Editora Patuá, o pornoépico A Comédia de Alissia Bloom, terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2015. Em 2015, lançou O Evangelista, romance. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Colabora em Mallarmagens e escreve quinzenalmente a coluna Zona de Leitura, na revista digital Pausa.