*

 

 

Ele apertou meu fêmur enquanto meu buraco se abria, enquanto se expandia a cratera, enquanto me jorrava do sangue todas as pequenas erosões de Nazca, ele apertava como um tigre aperta a mandíbula em um antílope, essa casca quente, essa febre quartã, espremia com seus dedos e me doíam todas as guerras mundiais, meu fêmur dórico jônico coríntio napolêonico de civilizações caídas, todas as suturas cutâneas, todos os venenos neurotóxicos de todas as víboras e não sei que borbulhante pecado existe, as presas em meu fêmur e me ardiam todas as vezes que dei para ele a Savana sórdida dos meus dias, e o meu rio, as minhas pernas horrivelmente abertas — suas mãos nas minhas omoplatas de mármore gasto da basílica de Aparecida — esse rio tão incontornável. A cãimbra em meu fêmur, sim, ainda, e ele mandou que eu o chamasse pelo nome, chamei "me come, Mauro". Duas horas depois, deitada em seu peito duro disse-me áspero "meu nome é Marcos".

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Lá em cima

a esfera azul

imunda de vida

urrante

no farfalhar

da humana glória

termostatos quebrados

ossos músculos horas

e eu nem sei

(nunca soube, acho)

onde começam os meus

1,60m

de pura perda

nem onde termina

a insônia.

E tudo mais

em mim

a máscara

o gesto

o quebranto

não passa

de soturna vontade

e escandaloso corpo.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Fita isolante

nos buracos gritantes

não posso olhar o sol de frente

e meu corpo tem anarquismos

que eu nem sei calcular

Ele ordena me chupe

o olhar ácido nas minhas entranhas

sem nenhum rescaldo

respiramos no mesmo beat e ele ordena me chupe

contemplo a pele lânguida

ele manda eu lamber mas eu digo

abre aspas

não posso olhar o sol de frente

fecha aspas

estou embalsamada dele até as células

ele manda eu lamber

a voz acariciando as letras do meu nome

acesso a senha do seu cofre forte

sou feita de milhares de pedaços

de estrelas úmidas e ele está gemendo

feito um Adão caído

estou querendo uma barbaridade

uma hipérbole

bem pontiaguda

com o sal entalado na garganta

o esperma me enche a boca

o esperma que não sai da roupa

nem com água benta

ele fica ordenando me chupe

eu tenho 21 anos e quando ele me entope

dessa vontade espelhada

sei que quero entregar o tutano dos ossos

e ser domada

exterminada

lamber com os olhos

respirar

entreter

fissurar com os olhos

toda a minha sangria absoluta

cheira a vivo

a coisa latejante e viva

9.5 graus na escala Richter

quando ele exige enfático me chupe

sinto a coreografia exaustiva

de todos os anseios

e cuspiria até no santo graal

pra beber todos os seus líquidos medos.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Fala na tua voz acústica

que me acha

corrupta

transviada

víbora

mitológica

diga que eu tenho

tentáculos onde a mão no chega

lamba as minhas

gangrenas cálidas, amor

suave carne oceânica

e toda a estrutura

que você não toca

(em mim)

parece um crime

eu me esfrego

até me machucar

 

Os meus 3 navios

à mercê do teu naufrágio

a minha hipnose

tantas partículas

de hipnose atroz

não sei o que fazer

com a tua lembrança

e eu te amo agora

como um doente

em fase terminal

 

Entenda a minha fome

entenda o meu grito

de mil línguas

todos os meus líquidos

corporais

escorrendo da fonte

entenda as minhas pupilas

dilatadas

e essa minha noite de

demônios

que eu vesti de tormentos

nunca exorcizados

não me exorcizo nunca

quero triunfar nos pecados

todos

bebo na fonte do éter

desonro alguns deuses

o verbo caber é pequeno

e eu tenho espaço demais

não gosto de convites

tão prosaicos

 

invada que eu gosto mais

 

No fundo

eu não passo de uma

pesarosa

masturbatória

metafísica do desejo

e um único desejo me delata:

essa solidão ruidosa.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

De repente eu quero dar

sete pulos

sete mergulhos no Jordão

matar minha sede

da gélida água santa

De repente tenho vontade

de ser víbora, traiçoeira

o cavalo de Tróia

que a sua Odisséia particular

glorificou

De repente quero imolar

um cordeiro em teu nome

usar o sangue pra conceber

o assédio que sempre amei

De repente quero ser

a conflituosa fêmea

a inimiga parasita

o bicho sangrador mensal

que te sacraliza os dias

De repente quero desempenhar

os 12 trabalhos hérculeos

apenas porque a inércia

me parece uma lei

demasiado radical

De repente quero ser fantoche

buginganga sua

seu troféu

vestir meias 3/4

ensaiar o palavreado baixo

geniosa

petulante

e dizer que quero ser movida

como a rainha do xadrez

que você joga todo sábado

De repente quero que morda

o meu fruto proibido

e que a minha nódoa

não te saia da camisa

nem com alvejante caro

De repente quero ser paga

para espalhar a decência

pregar o sermão da montanha

num monte ermo do Líbano

sem macular

seu lençol de linho fino

De repente quero implantar

uma cláusula

na constituição federal

e advogar todos os seus danos

(foram muitos)

De repente quero ser agredida

como um judeu

na alemanha nazista

e quero que o meu crime seja

totalmente inafiançável

De repente sinto um complexo

de Vladimir Putin

me dá ganas

de governar o seu país

ser ditadora déspota tirânica

De repente quero ser stripper

virar título de romance

do idiota que me comeu

De repente eu adoraria ser

fuzilada

em praça pública

com requintes de crueldade

só pro seu zoom óptico

focalizar o meu prazer

De repente o diabo

fala comigo

numa língua ébria e barroca

o dialeto molhado dos anjos

a linguagem dos poetas

e eu tenho vontade de

vender a minha alma

em troca de

três, quatro ou cinco

horas

de fluídos com você.

 

 

 

 

 

 

Eu não sou Jesus Cristo

 

 

Eu não sou Jesus Cristo

não tenho a resposta

para as suas madrugadas

de choro sentido

Não aceitei

aquela maçã maldita

a polpa suculenta

do pecado original

(e deveria)

Não mandei o dilúvio

assolar a terra

nem mostrei a minha ira

preta rendada libido

cinta-liga

Eu não sou Jesus Cristo

eu não vim com a missão divina

de salvar porra nenhuma

eu vim pra desonrar

pra ser torpe

vexatória

pra ser a Maria Madalena

que o mundo denegriu

Dopamina

reverberando num sistema

Ácido

no vinho sacrossanto

Eu não sou Jesus Cristo, amor

Não me olhe com olhos utópicos

nem com a fé cega

dos que acreditam no céu

Não me venha

com bondade

estandartes

santas ceias

e milagres

Não pense que sou Jesus

e disserte

sobre a sua Perestroika

na minha antiga

ofendida

devastada União Soviética

(fariseu é só um adjetivo)

Não tente me catequizar

Eu não sou Jesus Cristo

não expulso ninguém do paraíso

de preferências ortodoxas

só tenho uma

nem beata nem puta

desdobrável

talvez vulgar

em dias ímpares obsessiva

Não vou me privar de ser

tendenciosa

pretensiosa

espalhafatosa

Eu não sou Jesus Cristo

mas confesso que hoje adoraria ser

o Messias aguardado

só para ser a responsável

pelos royalties do planeta

chegar de túnica branca

(transparente)

sentenciar o apocalipse

com a minha voz às seis oitavas

raios e trovões

alta voltagem

cataclismas mundiais

Hoje eu queria ser o Messias

Jah

Allah

Oxalá

só pra aumentar

a sua pressão arterial

Te dizer que adoro

ser violada

feito uma caixa de Pandora

cheia de ossos

nervos ocos

superego

Freud entende

a minha pulsão sexual

e que o deserto

o deserto está à porta

e eu te peço, amor:

deixe ele entrar.

Ser humana hoje

só para me sentir

uma mosca varejeira

na ambrosia dos deuses

Ser humana apenas para ser nômade

anfitriã do pecado

Mas antes de tudo

urgentemente

ser Jesus Cristo amanhã

pra chegar no Vaticano e ordenar:

 

— Canonizem

o meu desejo

em todas as galáxias.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Ai que vontade

de escrever um livro erótico,

fazer um filho

com os seus olhos enfezados

só porque a camisinha estourou

praticar um ato

de caridade gratuito

pra você me notar

protesto vandalismo revolução

um curso de culinária tailandesa,

drenagem linfática

uma plástica

no nariz

na vida

no coração

Ai que vontade

de conversar com um idoso

sobre como o mundo é triste

estrelar um curta

plantar hortênsias no quintal

chamar o cachorro

de Tolstói

inventar um poema

ser pecaminosa

Eva

luxuriosa

quebrar todas as costelas

de Adão

fazer uma massagem

nos seus 12 músculos das costas,

cozinhar pra você

aquele doce elaborado

traficar cocaína colombiana

só porque você diz que adora

Que vontade de pichar o Taj Mahal

com tinta escalarte, pichar teu nome

ficar nua

no Afeganistão

Quanta vontade

de injuriar meus ancestrais

depredar

esse seu muro de concreto

e berrar

— berrar que eu te amo

Vontade de chamar cupcake de bolinho

de desligar os aparelhos

do teu coma induzido

pisar no teu calo

agulhar tuas ideias

deixar nus os teus defeitos

só pra te alquebrar, eu não ligo

Ai que vontade

de ser corrupta delinquente marginal

trocar as cortinas cafonas

colocar o nosso retrato em sépia

antiquado

com moldura polaroid

um zoom de 7x no teu rosto

Que vontade de criticar Gustav Klimt

recostada no teu peito

ser tabu

fantasia sexual

intolerante

laica

fissurada

ser o pilar

onde você ancora

o seu mau caratismo de cada dia, amém

Ai que vontade

de entornar o meu desejo

na sua taça dourada de rei troiano

dentro do teu santo graal

conspurcar a sua mente

ofender o seu deus

a sua crença

a sua terra

adentrar os seus desígnios

lançar a praga

no teu território saudável

Vontade de ser queimada

na sua praça pública

condenada por heresia

por bruxaria

por maçonaria

Vontade de

conjugar os seus verbos quentes

na minha pele

(substantivada)

Vontade imensa de evocar espíritos

porque não quero

purificação

Ai que vontade, amor

de te dizer que o meu útero

é do tamanho de um punho

(o seu)

e que por ele vazam

aforismos

impropério

sangue

 

principalmente constelações mundiais

 

 

 

 

 

 

*

 

 

quero te esgotar a vida te impedir de respirar arrancar teus

cabelos comer rir gozar quero te sufocar a risada e te arranhar o

sorriso te tapar os ouvidos te esvaziar de som te entupir dos

meus fluídos te estripar e dar tuas vísceras aos cães famintos

da rua — que não sobre nenhuma tripa pra corda de lira alguma! —

quero te impedir a rima te trair te desprezar te fazer versos nem

que seja do vidro mordido te dar as costas cuspir no nosso prato

desfazer das nossas juras e pisotear nossas lembranças

incinerar a memória dos nossos vícios — foram muitos — quero te

desfigurar te deslembrar sacanear essa alegria que ainda

reverbera nos meus sentidos quero te voltar pro não

pra quando não

pra nunca

 

quero tirar meu corpo do bueiro

e o teu do armário

 

 

 

 

 

 

*

 

 

podes espernear e estrebuchar e inquirir quando vai passar,

marcelo

e me exigir que passe, chorar as lágrimas de mil crocodilos

fossilizados e proclamar que não merece, é bom filho come

todos os legumes não tens nenhuma deficiência de potássio,

que já passou há muito dos limites que sua paciência se

esgotou que suas forças se exauriram que é desumano —

pobrezinho! — que não tem mais a menor graça meu feitiço

meu olho meus buracos intermináveis

que já estas de saco cheio, marcelo. que não aguenta mais

brincar disso, disso que esfola e esquarteja, desse jogo que te

deixa macambúzio que te deixa empertigado que te deixa

cabreiro com a vida,

que assim não é direito, que não vais mais acariciar minhas

víboras, que sou uma mulherzinha baixa, eu e meus paganismos

eu e meus incensos eu e meus rituais atropelados, podes xingar

e esbravejar e se emputecer e clamar aos deuses e a todos os

orixás e pedir manuais e filosofias e verdades absolutas e

acender 7 velas a são cipriano

manda beijos à tua devota mãe por mim, marcelo

podes gritar urrar tomar um porre de autopiedade

estilhaça a vidraça do vizinho bate a cabeça em todos os muros

da sala rala os cotovelos no chapisco aprende culinária tailandesa

choras, benzinho mas choras de olhos abertos

alavanca essas pálpebras choras intempestivo como a pororoca

amazônica choras sem paz encolhido na loucura choras por

mim que valho pouco

 

choras, marcelo

como as crianças e os suicidas

 

 

 

 

 

 

*

 

 

deus na sua perversidade

nunca me permitiu uma nesga do éden

roa os ossos de adão, disse deus

meu pássaro na garganta empoleirou-se

encolheu o pezinho e guardou a cabeça na asa

nenhum pio

mas é sempre penoso engolir

 

 

 

 

 

 

*

 

 

A melhor praga que posso lhe rogar é que continues sendo tu mesmo. No fundo cavucando. No fundo mesquinho e tacanho, focinhando carne e ossatura, tentando chegar perto do macio, do fixo, do branco luzidio do osso das coisas. No fundo só posso lhe desejar tu mesmo como maleita. Seco e perdido, jorrando vaziez como os igarapés amazônicos. E isso já basta.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

quando o seu duro

entra no meu mole, marcelo

choro como judas chorou o santo remorso

como soluçou sua boca amorfa vazia

de dentes

engulo o corpo de deus porque acredito

nem por isso compreendo

gosto dessa lisa mucosa de que é feita a vertigem

e meu molhado no teu

áspero, marcelo

nem por isso nos amaldiçoo menos

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Tenho essa boca enorme, inconveniente como

o pulsar de um coágulo, amor

quisera ser menos Eva e menos arrependida

a fratura exposta na costela de Adão. essa culpa bíblica.

nada mudou.

ardem os olhos agora, como ardiam antes

da batalha de Waterloo

180 é o número dos meus grilhões diários

em qual local da casa é melhor

para meter uma bala na cabeça

em qual local da casa, amor

na escuridão mais translúcida

que é a mais traiçoeira das escuridões

ou usando o seu faqueiro tramontina preferido?

nas minhas mãos é verão todos os dias

quero sonhar cavalos

muitos cavalos

maligna e meio lépida,

certa vez

botei arsênico no scotch de Alberto

sua mão inteira em minha vagina

Ele preparando as malas,

me contando que vai morar com

uma prostituta chamada Suzana

muito melhor na cama do que eu

com quem dorme

e chora encostado nos crisântemos

há mais de 2 anos

A sabedoria — quando chega, amor

A sabedoria quase nunca serve pra nada.

 

 

 

 

[imagens ©guy bordin]

 
 


 

 

 

 

Luana Muniz é mineira-come-quieto, nascida em Belo Horizonte, em 1992. É estudante de Letras da UFMG, onde tem uma preferência hiperclitórica e pouco ortodoxa pelos temas eróticos. Escreve uns saltos quânticos (nunca soube o que é um salto quântico, que perigo!) no blogue Cronisias, Mallarmargens, e tem outros poemas avulsos na internet.