Spazio Pirandello.

Bar e restaurante no 311 da rua Augusta. Não muito longe da praça Roosevelt e da rua Maria Antônia.

Foi onde conheci Márcia Denser, em um ponto qualquer de 1995, ano que para uns jamais terminou, jamais terminará.

Eu fazia parte de um grupo de escritores ainda em início de carreira, sem livro publicado, que se reuniam todas as terças — pra conspirar, beber e respirar — no antigo casarão perto de onde eu morava.

Na época eu já havia lido os principais autores brasucas vivos: Rubem Fonseca, Hilda Hilst, Dalton Trevisan e, é claro, Márcia Denser, a única dos quatro que morava em Sampa.

Uma noite Márcia apareceu no Piranda.

Confesso que fiquei um pouco amedrontado, porque eu ainda não sabia separar um escritor de suas personas literárias. Então, a mulher que estava entre nós só podia ser a terrível Diana Marini. É melhor tomar cuidado, pensei.

Eu podia ter ido buscar em casa meu exemplar de O animal dos motéis e de Diana Caçadora. Mas preferi não tietar. Com receio de parecer apenas isso: um tiete magro, de óculos.

Duas décadas depois, surgem essas diabólicas Desestórias, pela Kotter Editorial.

Continuo um tiete magro, de óculos, porém mais velho. Então, a presença presencial da Márcia não me amedronta mais. Talvez porque sejam duas (desconfio que todos os escritores são na verdade dois, ou mais): a pessoa física e a persona literária.

A Márcia Denser que se expressa nos livros e na imprensa é a mulher terrível, atrevida, irônica, vaidosa, sarcástica, radical, maldosa, sempre perspicaz. Já a Márcia Denser que eu vivo reencontrando nos eventos e nas rodas literárias  os escritores não se cansam de conspirar, beber e respirar —, essa é a mulher gentil e generosa, sempre divertida, com quem dá prazer conversar e até polemizar.

Márcia é a única escritora que eu conheço que sabe falar bem de si mesma e de sua literatura naturalmente, sem parecer afetada ou exibida. Todos os outros, quando fazem isso, parecem estar blefando.

Desestórias, sua primeira coletânea de crônicas, resenhas, artigos e breves ensaios é uma estimulante sessão de tiro ao alvo. Primeiro caçadora, agora guerrilheira, Márcia sabe manejar com elegância o armamento pesado que ela mesma projetou e montou em casa, com a ajuda de seus autores prediletos.

O livro reúne textos publicados principalmente na web, e está dividido em dez seções. Em todas o leitor encontrará uma fileira de cadáveres, é verdade, afinal a pontaria da autora é excelente, mas nessa paisagem apocalíptica também há muita ternura.

Quando Márcia escreve sobre Caio Fernando Abreu, Rubem Fonseca, Antonio Candido e Paulo Francis, por exemplo, o fratricídio dá lugar à fraternidade.

Quando fala dos amigos de ofício, escritores do passado glorioso e do presente claudicante, faz com afeto e vigor — uma pantera defendendo a ninhada.

Mas o ponto forte mesmo da maioria dos textos é o combate a céu aberto, o duelo de ideias. A guerra de trincheiras.

Está ouvindo o bangue-bangue? Desestórias não gosta de retóricas idiotas. Para a autora, cretino bom é cretino baleado.

Quando André Breton explicou que o ato surrealista mais simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo contra a multidão de cretinos, estava conversando com Márcia Denser.

Sempre que ridiculariza o besteirol politiqueiro, colonialista, racista, misógeno, Desestórias vira parente do clássico Febeapá: Festival de Besteiras Que Assola o País, de Stanislaw Ponte Preta. Lembram? O Febeapá é estrategicamente citado em Desestórias.

São mais de cem textos. Contra a Flip e o FHC. Contra o Homo otarius e a amnésia histórica. Contra os antitabagistas. Contra o FED, o FMI, a CIA e a CNN. Contra todas as instâncias do neoliberalismo. Metralhando a cultura do estagiário. Ridicularizando os romances de Chico Buarque e a revista Piauí. Semeando heresias no deserto cultural.

É verdade que o deserto do real — bem-vindo, Zizek — não está tão deserto assim. Hoje todo o mundo tem opinião formada sobre tudo. É a maldição das redes sociais, que transformou em cronista, resenhista, articulista e ensaísta um bilhão de pessoas.

Autoridades sobre qualquer assunto não faltam.

Há uma cena no filme A vida de Brian, de 1979, que representa maravilhosamente bem o momento atual.

O longa-metragem do grupo britânico Monty Python satiriza a vida de Jesus e a origem das religiões. A cena em questão mostra uma rua tumultuada de Jerusalém, em que vários profetas tentam conquistar a atenção dos passantes. Nessa rua multicultural do Oriente Médio as doutrinas mais excêntricas são gritadas, e uma não parece mais verdadeira do que as outras.

Dois mil anos mais tarde, nossos artistas, escritores, filósofos e críticos culturais são os profetas contemporâneos, na vasta avenida da globalização.

Márcia é uma de minhas profetas prediletas, e Desestórias é seu livro sagrado. Seu novo testamento. Concordando ou discordando da autora, difícil é ficar indiferente a suas provocações.

Gosto da Márcia resenhista, gosto da Márcia articulista, gosto da Márcia ensaísta, mas eu gosto mesmo é da conversa fiada, afiada, da Márcia cronista, zombeteira, autora de digressões saborosas: Blog, Dando lugar aos mais jovens, Estagiários inc., Primeira epístola aos sobreviventes, Os últimos dragões: como perder o tesão de escrever, Voo extra, Uma poética da maturidade e Work in progress.

Essa Márcia menos doutoral, mais informal, só perde para a memorialista, porque — atenção, futuros dragões da inteligência botocuda — suas Desmemórias são imbatíveis. Aguardem. É de longe a melhor coisa que ela produziu neste século.

Se um dia eu disse que Márcia era a filha endiabrada de Hilda Hilst, agora, após ler trechos de suas memórias incendiárias, digo que ela é a irmã caçula de Maura Lopes Cançado. E esse trio de Liliths tropicais sabe muito bem cuspir fogo sem chamuscar os lábios libertinos.

 

 

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O livro: Márcia Denser. Desestórias.

Curitiba: Kotter Editorial, 2016, 332 págs.

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março, 2016

 

 

 

Nelson de Oliveira ainda não nasceu. Para não assustar os amigos, prefere mentir que nasceu no dia 16 de agosto de 1966, em Mahagonny, maior cidade da Ilha do Dia Anterior. É ensaísta e professor livre-docente de literatura xamânica na Universidade de Macondo (Unimac). Leu e releu todos os livros, assistiu mais de uma vez a todos os filmes. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Prefere os destilados aos fermentados. Fala fluentemente doze idiomas secretos, incluindo o das abelhas: a ironia. Anos atrás buscou asilo político no paraíso, mas cansado de tanto silêncio decidiu voltar ao inferno. Pesquisa a imortalidade por meio do upload da consciência. Só acredita em biografias imaginárias. E na beleza moral do céu estrelado dentro de nós. Venceu duas vezes o importante e impossível Prêmio Príncipe de Cstwertskst, na categoria conto (1996) e na categoria romance (2006). Principais livros: Poeira: demônios e maldições (romance, 2010), Ódio sustenido (contos, 2007) e Subsolo infinito (romance, 2000).

 

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