Há na poesia de Jorge Elias Neto uma preocupação com algo de essencial.

A afirmação pede um exame cuidadoso, pois esseidades apresentam-se sobre mil faces. Aliás, se digo que há na poesia de Jorge Elias uma preocupação com algo de essencial, não significa que nela se façam apologias, buscas e alicerces do metafísico; ao contrário: ali, cristos, almas e sonhos são colocados sob suspeita — em debate, no mínimo. O terreno é evidentemente pedregoso, e nele o poeta vai tateando desde Verdes versos (de 2007) e Rascunhos do absurdo (de 2010, quando talvez a discussão se coloque absolutamente às claras) a cada linha mais ciente da dificuldade de se equilibrar entre a força do tema e a forma do verso, o que passa a obrigá-lo à atividade de estudioso e pesquisador (fato iluminado pela crescente rede intertextual exibida em suas obras mais recentes). É um trabalho diligente; é um poeta diligente.

Mas em que repousa esse algo de essencial num volume de poemas sobre boxe? Para explicar, volto os olhos para o livro imediatamente anterior: em Glacial, o encantamento pela brancura árida e silenciosa do gelo primeiro impele Jorge Elias ao exercício da adjetivação, à busca pelo vocábulo raro que procura dar conta do que considera indizível posto que intransponível, inefável embora inarredável — alguns diriam: essencial. Porém, ao lado desse primeiro e mais visível gesto, há todo um esforço de despersonalização, e nos poemas assiste-se a um deslocamento do eu mais vívido das primeiras obras para as coisas-em-si — diáfanas e etéreas, vá lá, mas ainda assim coisas, objetos factuais.

É então que este Breve dicionário (poético) do boxe se posiciona como exemplar sui generis da atividade literária de Jorge Elias Neto. Abandona-se a adjetivação caudalosa desde a escolha da epígrafe (da precisa e concisa poeta polonesa Wislawa Szymborska) até a imposição do tema, que solapa a atmosfera onírica e se finca no domínio do material. A lira diáfana dá lugar à antilira concreta, direta – humilde e honesta, que se ocupa, obedecendo à referencialidade imposta pelo título, de deslindar alguns conceitos (não raro com certa ironia, que é dado novo) e, depois, a história do boxe. Mais: no luminoso paralelo com a atividade do boxeador, em "A obra — Éder Jofre", Jorge Elias, como quem diz que se as flores sentissem eram gente e não flores, pede atenção para a luta, a obra, não para o artista, o pugilista: "Não se apegue / ao herói erguido aos céus / na glória do instante, / reafirmo: / — veja a obra". E a obra que se vê é "A arte possível / com punhos cerrados", dentro da luva ou em torno do lápis.

É assim que se dá a preocupação com esse algo de essencial no último livro de Jorge Elias Neto: pela negação das alturas, em busca das agruras do chão — do ringue. Tudo isso enfeixado em mais uma edição caprichada da editora Patuá e cercado por ilustrações literais e artísticas, como pede um dicionário poético, de Felipe Stefani. Vale o poeta, vale a obra.

 

 

_________________________________________

 

O livro: Jorge Elias Neto. Breve dicionário (poético) do boxe.

São Paulo: Patuá, 2015.

Clique aqui para comprar.

_________________________________________

 

 

 

 

março, 2016

 

 

 

Lucas dos Passos é professor de Literatura e Latim (Ifes), poeta e estudioso da obra de Paulo Leminski.