O pensador grego Heráclito concebia a realidade como mudança (ninguém toma banho no mesmo rio duas vezes), tudo está se renovando e morrendo: não podemos alterar a ampulheta do tempo. Estamos submetidos à impossibilidade do presente, tudo é finito: a existência é efêmera. Nietzsche, leitor dos pré-socráticos, declara que a vontade nunca pode querer voltar para trás. Portanto, a única saída é uma afirmação do instante como eterno retorno do mesmo. Para esses dois pensadores, a finitude humana é dilacerante, tudo que é passageiro tem como hóspede a morte. Mesmo que seja o desenvolvimento de uma cidade ou de novo pensamento.

Em outro contexto, mas com a mesma tristeza e melancolia diante de tudo que se esvai, surge Charles Baudelaire (1821-1867), um homem talentoso e angustiado diante da fugacidade da vida moderna. Essa figura de indelével importância para a poesia universal habitou nos meados de uma Paris do Século XIX — cidade-luz em plena efervescência do urbanismo e do capitalismo. Esse novo mundo que se inventava, tatuava em suas entranhas a herança iluminista de uma sociedade ordeira e racional. Em essência, possuía como emblema de sua alma as promessas do progresso (e o seu discurso técnico-científico).

Em luzes e máquinas, os bulevares se faziam modernidade. Tal conceito é utilizado pela primeira vez com Baudelaire, para explicitar essa nova maneira de se relacionar com o mundo, de modo especial, com a cidade. O poeta apercebe-se lançado numa multidão disforme da metrópole. Tudo era novo, desde a automatização do trabalhador a seu consumismo desenfreado. A cidade alterava-se em completo modismo, tudo existia como transitório e nada era duradouro. As ruas eram um mostruário que se transformava numa velocidade até então descomunal. Nas palavras do próprio poeta: "A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável".

Charles Baudelaire apresenta uma poesia marcada pela contradição e o antagonismo, como no próprio título de Les fleurs Du mal, que mescla a beleza de uma flor e a perversidade do mal. Walter Benjamin, em A Modernidade, declara que um dos traços que particularizam esse poeta é a sua capacidade de produzir o "duelo", de co­locar em cena elementos e situações de contraste. Seu princípio poético é o "choque". Nessa direção, cita Charles Baudelaire: "Aqui temos um homem — ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele".

O poeta é um habitante da cidade e, ao mesmo tempo, um exilado do paraíso. Sem lar e sensação de conforto, perambula pelas ruas de Paris em busca dos acasos da rima. Tal como um trapeiro que cata as sobras da sociedade que está sempre em parto. Ele apanha o que é útil, pois a fonte para sua poesia encontra-se nas ruas: seus personagens (o criminoso, o dândi, a prostituta) e tudo aquilo que se apresenta como imprestável. O poeta surge como um flâneur, aquele que tudo observa e não é observado — um eterno andarilho em meio à multidão. Caminha pela multidão sem se confundir com ela, em relação de aproximação e distanciamento.

O que temos em Baudelaire é um pintor da vida moderna. Para ele, o homem que vive nos aglomerados urbanos tem a experiência do choque e busca a multidão como um refúgio de si mesmo, pois a multidão é a própria solidão do habitar moderno. Aqui, multidão e solidão são semelhantes. O citadino moderno encontra-se perdido em sua época. Depois de estudar com apuro a modernidade, passa a identificar esse conceito como transitório, efêmero e contingente. Para dar conta, tem de entrar nas existências errantes dos subterrâneos da cidade, no próprio tormento humano. Assim:

 

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros

Persianas acobertam beijos sorrateiros,

Quando o impiedoso sol arroja seus punhais

Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,

Exercerei a sós a minha estranha esgrima,

Buscando em cada canto os acasos da rima,

Tropeçando em palavras como nas calçadas,

Topando imagens desde há muitos já sonhadas.

 

Esse poema chama-se O sol (Le Soleil) e faz parte da seção Quadros Parisienses. Nele, encontramos o mergulho realizado pelo poeta nas ruas. Na cidade, seu propósito é buscar os elementos para compreender a condição humana em toda a sua escuridão, isto é, revelar uma realidade ameaçada e fragmentada. O poeta sente uma angústia diante da estranheza de um mundo que se desmancha no ar e consome a existência. Deixando o próprio poeta falar:

 

Que luz... e a noite após! — efêmera beldade

Cujos olhos me fazem nascer outra vez,

Não mais hei de te ver senão na eternidade?

 

Nos versos de A Uma Passante (A Une Passante), dispostos acima, uma mulher surge na multidão e desperta o olhar do poeta, no entanto, some na distância. O encontro é rápido e passageiro, faz-se efêmero. Nunca mais vai vê-la, a não ser pela memória. Apesar da fugacidade, há, porém, intensidade. 

Escorre no tempo e no espaço, portanto, um mundo de incertezas, onde tudo passa. Essa ausência de solidez prodigaliza abismos e estreita o peito do poeta: "Sou como o rei sombrio de um país chuvoso". A fragmentação e ausência de totalidade geram no poeta uma melancolia, uma tristeza por uma Paris que não existe, e o próprio presente nunca será tocado. Como se sabe, a cidade não para de mudar. Podemos observar bem isso nesta parte do poema O Cisne (Le Cygne): "A velha Paris não existe mais (a forma de uma cidade / Muda mais rápido, ah! que o coração de um mortal)".

Buscando uma nova experiência da realidade, mesmo que seja em paraíso artificial, o nosso poeta ousou amar o que é disforme, pois ele dizia em Fleurs Du mal "o que eu procuro é a escuridão, o nu, o nada". Era uma abertura para uma experiência do noturno, que denunciava a deformidade da racionalidade moderna, ou seja, flagra-se beleza no crepúsculo. Podemos observar bem isso nesta parte de A Uma Mendiga Ruiva (A Une Mendiante Rouse).

 

Moça de ruivo cabelo,

Cuja roupa em desmazelo

Deixa eu ver tanto a pobreza

Quanto a beleza,

 

Para mim, poeta sem viço,

Teu jovem corpo enfermiço,

Cheio de sardas e agruras,

Tem só doçuras.

 

Os temas noturnos retratam toda a angústia humana, já que tudo no novo mundo é transitório e fugaz, até mesmos os próprios relacionamentos mostram-se contingentes. Ele procura nessa tensão arrancar do transitório o eterno. Com flores e dor, a imagética de sua poesia é anoitecida por palavras, como ruína, abismo, morte, tédio e principalmente, a sensação de desilusão experimentada pelo ser humano. Temos um poeta do contraste e de grande beleza dissonante.         

O pensamento e os costumes lhe causavam náusea, um mal-estar, sentimento de inadequação no mundo moderno. Para o poeta, era preciso estar embriagado: "com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se". Uma das suas metas era revelar o caráter espinhoso e ilusório do real. Como bem lembra Hugo Friedrich, na sua obra Estrutura Da Lírica Moderna, ao comentar sobre o poeta: "o absurdo torna-se a perspectiva daquela realidade usada para escapar da opressão do real". Possuía, enfim, insatisfação com o que é banal e tradicional, um inelutável asco pelo real.

É de grande relevância mencionar o volume de poemas em prosa intitulado: Le Spleens de Paris. De modo especial, no poema "Chacun sa chimère", temos a impressão de que os homens não podem viver sem suas ilusões e suas quimeras, mas de tal forma a elas se apegam, que passam a constituir parte deles mesmo: "sous um grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans gazon, sans um chardon, sans une enorme chimére". Caminham curvados com o peso de uma enorme quimera, mas a própria quimera já faz parte deles, e parecem condenados a caminhar sempre.

São, então, carregados por suas quimeras, não realizando o próprio caminho. Acostumados com todo o fardo nas costas, não enxergam na cidade uma experiência de libertação da própria quimera. Benjamin chama de choque a impossibilidade de encontrar no mundo moderno um sentido para a própria existência. Esses homens caminham sem saber o rumo e os destinos que seguem.      

Na pós-modernidade ou na modernidade líquida, como prefere Zygmunt Bauman, ocorre uma desconstrução do discurso da modernidade. Baudelaire, apesar de ser o precursor da modernidade, já antecipava o próprio discurso dos tempos líquidos. Sua poesia é um convite à reflexão sobre as estruturas construídas pela mente moderna.

Hoje, mais do que nunca, tudo é temporário: temos a mesma angústia face ao transitório e contingente. Como diz o sociólogo, tudo é líquido, os amores são instantâneos, não há capacidade de se manter a forma. Revisitando O manifesto comunista: "tudo que é sólido desmancha no ar", ler Baudelaire é preciso — mais atual do que nunca — para compreender a condição humana e revitalizar o pensamento crítico enquanto negatividade.

 

 

 

março, 2016

 

 

 

Tito Leite [Cícero Leilton Leite], Aurora/CE (1980). Poeta, possui graduação em Filosofia - Licenciatura Plena pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (2005) e especialização em Filosofia da Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras - FAFIC (2007). É mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia, Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Vive em Olinda, onde é monge no Mosteiro de São Bento.

 

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