O problema, todavia, é que mesmo em A ordem da inscrição, que é sua obra mais bem realizada como um todo (conforme eu disse antes, nela até mesmo o recorte rítmico e os cavalgamentos se realçam como fontes semânticas), nós ainda assim enxergamos momentos infelizes. Infelizes num nível que te fazem pensar, no mínimo, onde diabos o poeta estava com a cabeça pra compor aquilo. Veja-se o caso do poema 16, que começa assim:

 

         E se o amor é forma, ainda, como os anjos

         e suas asas de mármore atacam os prédios,

         centros cívicos e de civilizações perdidas,

         fundo de investimentos, ações planejadas.

 

Essa retomada para com um poema que já apresentava uma autossuficiência admirável, e ainda tendo de evocar a figura desses anjos que aparecem de forma gratuita e esse amontoado de comparações disparatada ― essa forma de ligar um símbolo etéreo (anjo) aos signos mais crus da vida corriqueira (por exemplo fundos de investimento) é uma ligação que resulta opaca e não ganha o desenvolvimento esperado ― e nós esperamos um desenvolvimento uma vez que a imagem por si só não convence (nem que seja um desenvolvimento no sentido de amarrar melhor a metáfora na sequência do livro, e não deixá-la como uma espécie de fiapo solto). Na verdade, não é só isso que não convence; praticamente nada no poema inteiro não o faz, e a coisa só piora quando você começa a compreender o fio da meada: uma crítica à relação entre amor, comércio, essas coisas que você já deve ter lido um zilhão de vezes (os versos seguintes aclaram isso melhor: "Se o ataque falha, em forma falsa, asas que / vão da fragilidade das penas ao triturar da / pedra, então as ações não dão o certo lucro / e emplacam um engodo de sentimentos // eufóricos com altas taxas de juros (...)"). Na verdade, o restante do poema é uma catástrofe ainda maior, e chega a absurdos como "os hipopótamos / hipocondríacos e mergulhados n'água" ― um tipo de comparação que, sonoramente, é muito mais deslumbrada do que deslumbrante (e ela continua firme e forte em "hipotálamo" e "hipantódio" versos depois).

Mas isso não chega a desdourar em excesso o livro, pois, a esse respeito, é forçoso admitir que Pio Vargas também possui seus momentos horrivelmente ruins mesmo naquela obra que representa seu ápice. Por exemplo o poema IX de "O caos antibiótico":

 

         e porque ainda procuro o remo

         e porque ainda projeto o rumo

         sei que o medo

         é apenas um susto demorado.

 

         contudo

         há virtude no medo:

 

                   a reflexão.

 

Sim, claro que um negócio desses é ruim. Mas ele pelo menos estabelece um nó sólido e salutar com o poema VIII. Só a primeira estrofe:

 

         e porque ainda ronda em mim

         a música de extensões indefinidas

         eu não sei o rumo exato da carne.

 

E é esse tipo de ligação que faz com que o livro possua um recorte praticamente impecável, fazendo, também, com que sua máquina poética consiga se aproveitar de praticamente todo estrato de sentido a que alude e que mesmo naqueles casos em que nós enxerguemos aparentes repetições ― nesses casos o maquinário do livro é capaz de gerar um conteúdo competente e que, na ordem de aproximação estabelecida, não se faz gratuito (releia o início dos trechos que acabei de citar e vai dar pra perceber bem).

Um comentário a respeito do livro como um todo não caberia aqui, então, de todo modo, fiquemos com apenas dois exemplos. Neles, creio, poderemos observar a maneira hábil com que Pio Vargas transforma seu corpo numa matriz whitmaniana, isto é, capaz de conter todas as coisas e todas as pessoas, e isso sem ficar apelando para absurdos ou metáforas vagas ― antes, pela relação de convívio e pelas marcas que o contato com outras pessoas deixa em nós, o poeta empreende uma reflexão de fundo metafísico da melhor cepa, conseguindo trazer a um só tempo a carnalidade e a medula da ideia. Diz o segundo poema de "a dúbia dor", da seção "Analepsia do abismo":

 

         mantenho obtuso meu traço.

         a memória constrói

         espúmeos fantasmas

         com os quais divirto

         o inverno do meu plasma.

 

         esse cotidiano agrário

         foi o que sobrou como futuro

         o meu sangue sem calvário

         regando vales no escuro.

 

A sensação de estar lendo um poema que funciona como se fosse uma pérola se dá graças ao amarramento sonoro. Praticamente inexistem consoantes que não encontrem correspondência sonora em alguma parte do poema. Mas o que impressiona não é simplesmente isso. A base de muitas ideias apresentadas nos poemas de Pio Vargas parte de quando a experiência corpórea de algum modo encontra a experiência imaginária, e de que modo uma pode se entranhar na outra. A obtusidade do traço aqui não indica simplesmente uma espécie de confusão ― que o leitor provavelmente não chegará a ver com maus olhos pois o efeito encantatório do poema consegue fisgá-lo ainda assim ―, mas também graças à ideia de rotundidade que acresce em concreção à cena retratada. É isso o que faz com que a ideia dos "espúmeos fantasmas" divertindo "o inverno do meu plasma" consiga unir os extremos do corpóreo aos extremos do originário, tudo transcendendo o simples liame da rima e, graças à própria construção sonora do poema, criando uma cadeia em que tudo parece se amarrar.

Mas a ideia, na verdade, pode dizer muito mais. O fato dos fantasmas serem espúmeos de algum modo se liga ou pelo menos os faz mais facilmente apropriáveis ao plasma sanguíneo do eu lírico. O fato de que esse plasma contenha ou padeça uma espécie de inverno faz com que possamos ler que o eu lírico, de algum modo, perece. O fato de que temos aqui, basicamente, uma cena de matizes aquáticos, e que esses matizes aquáticos estão imersos e irrompem num clima invernal, faz com que o saldo seja negativo e lúgubre. E o tônus do poema como um todo será esse. Quando lemos do "cotidiano agrário" que lhe sobra como futuro, estamos explicitando que tipo de inverno seria esse que assola seu plasma ao mesmo tempo que lemos, numa única expressão, o acrisolamento de uma crítica social um tantinho mais vasta. O cotidiano goiano é um cotidiano realmente agrário, e que esse cotidiano agrário seja o que lhe restou como futuro faz com que sua vida se estenda num cotidiano banal ― isto é, que uma situação presente se multiplique indefinidamente. Mas a estrofe apresenta basicamente uma contraposição, que é a de uma situação exterior que lhe é imposta ― o cotidiano agrário ― e uma situação interior que possibilita uma ação por parte do eu lírico, que, até então, só havia agido na hora de manter obtuso o seu traço e na hora de fazer com que os fantasmas, construídos pela memória (e ele trata a memória como uma coisa certo modo externa a ele), divirtam o inverno de seu plasma. O sangue sem calvário é obviamente um sangue sem martírio e sem heroicidade, sem redenção e sem qualquer significado religioso que você queira incutir; mas se esse sangue sem calvário rega vales no escuro, independe desse sangue ser um sangue que redunde ou de algum modo resulte inútil, esse sangue rega paisagens aptas a fazer florescerem ou germinarem quaisquer coisas que sejam. Um plantio no escuro, podemos dizer, o que bate de frente com o cotidiano agrário que é tudo o que resta do futuro do poeta.

Como esse uso de imagens que possuem variadas procedências é um uso dinâmico e sonoramente bem amarrado, qualquer deixa de gratuidade ou mesmo de vagueza são banidas da esfera do poema. O primeiro poema de "dúbia dor" diz:

 

         enterro vivo meu gesto.

 

         até aqui trouxe dias e palavras

         como signos ambíguos

         débeis mapas

         argumentos evasivos

         e o resumo inconcluso

         do que julguei abismo

                            e superfície.

 

         habita o âmago

         no mais raso da face:

 

         por isso trago à tona,

         elo de sangue e aspereza,

         a pugna de meus retratos

                                  átonos.

 

A ideia do enterro e os traços de desistência, de inconclusão propriamente dita que a segunda estrofe traz consigo, bem como a ideia de uma batalha na última ou, ainda, a forma como algumas outras encontram correspondências internas (por exemplo "abismo / e superfície" seguido de "o âmago / no mais raso da face", ou, até, a ideia de "trazer à tona", isto é, realçar, aquilo que é átono); todas são ideias que renovam nosso entendimento do próximo poema ao mesmo tempo que, é claro, fazem com que este daqui consiga um bom resultado estético. É desse tipo de concepção de todo que me refiro. São esses movimentos sutis de decesso e de pequeno levante, numa máquina metafórica ligada o tempo inteiro e que não se banaliza nunca, que dão sentido, até, à ideia de uma analepsia do abismo, isto é, uma convalescença do abismo, uma recuperação após os atos representados pelos poemas anteriores ― uma vez que o livro todo se insinua como uma análise clínica e uma recuperação médica de um convívio esterilizante que, aos poucos, graças a vias corpóreas e às sendas da imaginação, se recupera.

 

*

 

Mas aquele é o Pio Vargas em seus melhores momentos. Algo me diz que o que hoje está sendo evocado de sua poesia são aqueles momentos mais fáceis, aqueles momentos em que se rescende uma pose e um pensamento só aparentemente complexo, isto é, um pensamento que funcionaria na base dos trocadilhos e das sacadas, quando, a bem da verdade, a faceta madura da poesia de Pio Vargas não só consegue trazer tudo isso como consegue trazer tudo isso com um grau de inteligência sem igual.

Estou falando daquele Pio Vargas que é um simulacro de si mesmo, como em:

 

         sem táxi

         a sintaxe

         vai ao pé da letra.

 

         poesia automóvel.

 

Esse tipo de coisa é vergonhosa. Mas eu não quero nem tanto ficar insistindo nisto. Contemporâneos de Pio Vargas dignos de nota eu cito basicamente apenas dois.  O primeiro, Tagore Biram, dono de uma poesia no geral delicadamente insossa, possui um momento privilegiado no "Poema 14" de Do amor e da ausência. Observemos:

 

         Há um sonho pendurado no cabide

         do meu silêncio. Um braço de névoa

         penso no espelho dos olhos. Uma

         esperança que acende e apaga.

 

         Ah o meu corpo já não suporta

         os ossos nem a carne. A madrugada

         passou por meus olhos e não

         vi o amanhecer.

 

         Onde o amanhecer se os meus olhos

         não viram? se a madrugada passou

         e a manhã não veio?

 

         O lampadário permanece vazio

         e as heras sobem pelos altos muros.

 

A primeira estrofe possui uma gravidade e uma contenção admiráveis. A coisa começa a degringolar quando o poeta solta esse "Ah" já na segunda estrofe, e chega a seu ponto mais baixo no terceto. Pelo menos o poema rescende a uma espécie de sinceridade, e aqui nós aparentamos estar diante de um eu lírico que se lamenta sem qualquer pose que seja. Quando ele fala do sonho "pendurado no cabide / do meu silêncio", a impressão que fica é de que esse tipo de imagem era exatamente o que ele queria transmitir. E ela transmite na verdade muito mais do que isso ― transmite calma, por exemplo. É um ponto a ser destacado, assim como é um ponto o fato de que o poeta não completou os 14 versos. É bom saber que estamos diante de alguém que sabe segurar a mão do soneto.

Com momentos de pungência nós também podemos presumir sinceras está Ubiraja Galli em Licores da carne. Por exemplo:

 

         Quero semear a minha ausência

         nas crinas dos olhos em movimento;

         e à sombra do crepúsculo verde

         das mangabas,

         ficarei a sós com a paisagem

         triste do meu corpo.

 

         Eu tenho que me ignorar.

 

Isso é realmente muito bom. A imagem vai sendo construída com sobriedade e mantendo vivo o interesse, como por exemplo "nas crinas dos olhos em movimento" (onde eu destaco em específico o fato dos olhos estarem em movimento: estivessem parados e nós estaríamos diante de uma metáfora fatalmente banal). E então o poeta pontua com uma nota límpida e franca. Muita gente acha que se você começou um poema com a máquina metafórica ligada, você só pode desligá-la depois do ponto final (ou às vezes nem aí). Pois muito bem. Você pode tomar isso como uma dica: às vezes desligar todo esse aparato e espalhafato compensa muito mais e toca muito mais o seu leitor, se seu objetivo de algum modo for esse, do que ficar com esses volteios e esses impactos esmorecidos o tempo inteiro.

 

*

 

Nem um nem outro, todavia, conseguem a carga poética de Teresa Godoy. Violetas violadas, publicado um ano antes da morte da poetisa, ou seja, em 96, é um dos livros mais interessantes de poesia da década, pra dizer o mínimo. Muitos dos poetas contemporâneos parecem estar um pouco deslumbrados com os jogos de palavras numa matriz leminskiana pobre, além de um trabalho com rimas e sonoridades miúdas (aquele velho lance de arrochar uma rima, no geral toante, em todo verso par do poema). Se assim é, tudo bem, bom caminho a todos, mas, se me fosse dado pelo menos opinar nesse sentido, eu sugeriria para que dessem mais atenção à delicada força expressiva do trabalho de Teresa Godoy. Um exemplo, "Maresia", basta:

 

         Vestida

         de alvorada,

         integro

         a vastidão.

 

         Desbravo rochedos

         e seus segredos,

         piso areia quente,

         cato conchinha,

         me faço criança.

 

         Escalo barranco

         bordado de heras,

         esbarro

         em bromélias,

 

         arranco uma flor,

         prendo nos cabelos;

 

         me sinto bonita

         e sozinha.

 

Quando falo numa sonoridade sutil e de alta expressividade poética, eu estou me referindo à maneira como a poetisa dosa as passagens rimadas do poema, tomando todo um cuidado em não deixá-lo num compasso marcado que, verdade seja dita, acaba cansando. (É um cuidado que Pio Vargas, por exemplo, não teve, embora, como os poemas de Pio Vargas possuem fontes sonoras muito além das rimas, e espalhadas de maneira não padronizada ao longo do poema, esse resultado enfadonho acaba por ser amortecido ou compensado.) Qualquer poeta menos cuidadoso, por exemplo, teria dado um jeito de rimar no final (e me parece que a própria Teresa Godoy, se tivesse acordado com o rimador ligado ― como muitas vezes ela faz ao longo do livro); mas a poetisa, nesse poema aqui, não só transforma o que era pra ser uma estrofe de quatro versos em duas de dois versos cada, como também espaça os sons e termina com uma espécie de acorde distinto do suave movimento rítmico dos versos anteriores. Algo difícil, sem dúvidas, ainda mais quando você espalha com tanta felicidade e mesmo pluralidade os sons. Ou seja: se você tem um poema que até então funcionava muito bem enquanto poema sonoro, adicionar uma nota dissonante, seca no final não é algo tão simples assim. E não, eu não vou me preocupar muito em ficar esmiuçando o que seria essa sonoridade competente, pois acredito que se você refizer o movimento da antepenúltima estrofe até a última, você vai entender bem: escalo―flor―cabelos, barranco―esbarro, heras―bromélias etc. etc.

Isso quanto a apenas um aspecto do poema. A forma como as metáforas se ligam ao tema da infância e da velhice ― isso também é digno de nota e renderia bons comentários, mas o apontamento que fiz, eu creio, basta.

Depois de Teresa Godoy, um último nome a ser citado é o de Edmar Guimarães. Eu consigo opinar sem muitos problemas que é uma das maiores vozes poéticas surgidas num espaço relativamente curto de tempo, isto é, década de 90 pra cá. E digo isso pois sua poesia consegue unir aquele que é não só o olhar imagético mais apurado de todo o Estado (as melhores percepções de Edmar Guimarães são equivalentes às melhores de Marianne Moore ou Ezra Pound, por exemplo) ― o poeta também tem um ouvido danado de bom. O resultado é um verdadeiro espetáculo. Se eu puder, nem que seja uma única vez, me valer apenas do poema, sem comentário algum, aqui neste meu texto, essa vez então vai ser agora. O poema é "Desenhos de sol", do livro homônimo (infelizmente esgotado ― e muito melhor que o de estreia, "Cadernos"). Creio que você não vai consegui-lo achá-lo na internet em lugar algum. O que é uma pena. Às vezes acho ― em especial para goianos, que adoram a tal da praia ― que todos deveriam pelo menos entrar em contato com uma comparação como "areia / cor de miolo de coco". Um poeta que consegue chegar a uma comparação tão feliz dessas não está brincando em serviço.

 

         Ilhéus brancos

         no céu,

         e a mata aérea

         de folhas brancas,

         e a maré

         nos sulcos da areia

         cor de miolo de coco.

 

         Deixar-se ficar

         aqui. Nu para sempre.

         O corpo primitivo,

         de tão pouco peso.

         Mesmo o lânguido

         viço da vaga

         apaga passos.

 

         Ilhéus, pedra

         e sonho,

         estátua de vidro

         com aves no crânio.

         Mas os pés são rijos

         como a fé nas igrejas.

         Reais.

         Cruzes de sol.

 

         A linha noturna

         no dorso da mata

         ― luz e lama

         simultâneas ― abre

         vias entre latadas.

         Cintila trépida

         água de treva

         na piscina do Balneário.

 

         Sombra sobre

         sombra, bicas

         de Tororombo.

         Águas sombrias

         nas escórias escuras,

         ásperas,

         correm sem tererê

         entre latas, dendês,

         soltas,

         cabelos de mulatas

         aos ombros do mar.

 

         (Belo, o vôo da voz

         dos urubus

         sorve-se no azul,

         no verve das nuvens.

         Ver é profundo.)

 

         A luz arreda

         sombras de rochas.

         Brisas no arremedo

         das vagas

         batem nos rochedos.

         Águas espicham

         pernas nas pedras,

         descansam, retomam

         as ânsias de nunca

         chegar.

 

         Num caminho úmido

         entre verdes, aves

         azulejos,

         poças,

         a amada põe o passo

         no vão da lama.

         Mergulho a mão

         no âmago

         movediço,

         abismo da água lodosa

         a caminho de Tororombo.

         Mergulho de quem

         busca miúda

         concha cor-de-rosa

         no fundo da sombra.

 

         (Sentados na rocha

         os enamorados do mar.

         O dia apaga nos olhos

         as últimas tochas.)

 

         Desce delicado

         luar nos coqueiros.

         Ventos,

         músculos de folhas

         movimentam

         farrapos de asas.

         Caem morcegos

         dos galhos,

         dos casarões.

         Nos quintais escalavrados,

         cajus

         no escuro.

 

         Baías, o puro,

         o impuro

         emplumam a lama.

         O sublime,

         garças, urubus

         nos caniçais,

         à margem do mar

         verde.

 

         A manhã madura

         bicada de aves,

         abre suas praias.

         Sobre a mata, nuvens

         sonoras de maritacas

         rasgam silêncios,

         fazem ninhos longínquos.

 

         Caranguejos miúdos

         atiçam pinças

         no dorso de cascos

         de rochedos roídos.

         Um passarinho pia

         e canta

         nos dedos espinhosos

         da planta

         onde fez ninho.

 

         Ar tentacular!

         A cidade siri

         se ri toda de luz

         e nume

         em plena noite.

         E o betume

         no debrum da orla

         de nanquim

         tinge de tons libertinos

         o desenho das costas

         nordestinas.

 

         Do vidro do carro,

         do vidro da viagem,

         do vidro da vida,

         paisagens… praias…

         orlas… o sonho.

 

         Já longe e no cérebro,

         desenhos de areia.

 

         Pés do pensamento

         escavam conchas na memória.

 

         E a luz que se faz

         luzidias

         amarrotada nas rochas

         ascende

 

         corpos do sol

         e do vento

         no lençol

         que o mar amarfanhado estende.

 

Um longo poema, eu sei, mas na íntegra. Naturalmente que se deve lembrar que não se trata tão simplesmente de uma descrição fiel e pronto, só isso. Você sabe que o buraco é mais embaixo. Do mesmo modo, sabe bem que existem momentos francamente ruins aí no meio ― por exemplo "correm sem tererê / entre latas, dendês", onde você sente de maneira clara o cheiro da rima forçada, ou "A cidade siri / se ri toda de luz", com um péssimo jogo de palavras. Mas eles logo são recuperados de forma hábil ― o parêntesis na próxima estrofe logo após o primeiro trecho citado e, no caso do segundo trecho, "E o betume / no debrum da orla / de nanquim".

 

*

 

Terminar com alguns apontamentos sobre a poesia goiana contemporânea seria um perigo na certa. Não digo bem no sentido de que comentários sobre poesia contemporânea redundem sempre inúteis: na verdade, eu realmente não acho que seja bem por aí. (Mas, como tantas outras coisas na vida, vou magicamente deixar essa questão pra depois ― sabe-se lá quando.) Não estamos num recorte sincrônico, afinal de contas? Pois bem. Parece que existe um capeta que te atenta a sair adicionando meio mundo de contemporâneos na cumbuca da valorização literária, como se a época literária de agora fosse um esplendor que só. Ou isso ou então a posição de se revestir da couraça de cavaleiro do apocalipse e proclamar a crise. Meio termo parece que não existe. E um recorte sincrôncio aparentemente o repele a tal ponto que a simples menção a se unir um recorte desses com o contemporâneo ― a gente até embrulha o estômago quando ouve falar disso.

A questão pura e simples é que, partindo do princípio que você de algum modo chegou até aqui, então talvez ― por um motivo às vezes de divulgação pura e simples, ou apresentação de solo, ou apontamento de alguma coisa que foi produzida e que me agradou ― enfim ―; então talvez seja digno de nota mencionar pelo menos cinco nomes de poetas contemporâneos que compensa você dar uma olhadinha. Pode ser que você não goste deles, e não sei até que ponto isso vai parecer esquizofrênico, mas tem uns aí que eu também não gosto. A questão é: fique na cola deles que, pelo menos, você vai acabar entrando em contato com outros e mais outros. Entendeu? Aquele velho segredinho: pra quem tá entrando em contato pela primeira vez com a poesia contemporânea de um lugar, uma estratégia dessas funciona que é uma beleza.

Os poetas são: Jamesson Buarque, Miguel Jubé, Fabrício Clementino, Kaio Bruno Dias e Walacy Neto. Os três primeiros são poetas cuja poesia parece se encaixar melhor numa perspectiva livresca, o que não quer dizer que sejam poetas desconectados de uma realidade propriamente performática. É apenas que a realidade dos dois últimos é de uma poesia em que a performance me parece estar muito mais presente, muito mais explícita. Os outros três até sobrevivem sem. Os outros dois pode até ser que sim, mas você vai sempre ficar com a impressão de que, quem sabe, lá na performance, a coisa melhore.

É assim. O meio literário goiano não é dos melhores. É extremamente fraco, de uma penúria muitas vezes inacreditável. Você conseguir movimentar qualquer coisa aqui que envolva literatura é sempre um trabalho árduo que se assemelha ao murro em ponta de faca. A gente sabe que nos quatro cantos do país é assim que a banda toca; mas não precisava ser de uma maneira tão grosseira aqui conosco.

Nesse meio, todavia, de uns tempos pra cá ― e esse "uns tempos" pode ser traduzido, mais ou menos, como 2010 ― tá rolando uma espécie de efervescência que aos poucos tem insuflado vida no meio literário pelo menos da capital. E todos nós sabemos muito bem que o que realmente conta quando vamos falar da saúde de determinado momento literário, muito mais do que pretender que essa saúde seja um saldo gordo de qualquer recorte sincrônico que seja ― isto é, o fato de haver um bom número de bons poetas poetas em atividade ―, é o de nós analisarmos a literatura como sistema, o que implica falarmos em algo além da simples qualidade da produção (e no geral me parece, nesses casos, bem mais sensato falarmos da qualidade média do que exatamente dos ápices, que, nesse sentido de um diagnóstico literário, podem ser tomados como fatores acidentais em grande medida), na literatura publicada, veiculada, criticada, consumida etc etc.

E é nesse sentido que eu digo que vivemos uma efervescência interessante: a efervescência de vermos surgirem editoras com um projeto editorial esplêndido (como a Martelo ou a Caminhos), grupos de agitação cultural (como o Letra Livre e o Zé Ninguém), espaços que você consegue dizer com segurança que são espaços privilegiados de divulgação cultural (como o Evoé Café e Livros, o Grande Hotel, o Culturama, o Teatro SESI, o Centro Cultural Oscar Niemeyer), revistas (a Caroço, a Cajá) ― além dos já tradicionais centros de incentivo como a Academia Goiana de Letras ou a União Brasileira de Escritores. (Nos jornais você consegue encontrar de vez em quando algo no suplemento cultural do Jornal Opção e no Diário da Manhã, em especial aos domingos.)

Pode até ser que eu esteja pintando de maneira deslumbrada demais a situação, e que, daqui a alguns anos, tudo isso volte às trevas que sempre rondaram as letras goianas, mas, de todo modo, esse exercício de futurologia não é comigo, e o que me parece evidente é que a saúde da literatura goiana vai bem. Há muito o que ser melhorado, claro, e pelo simples motivo de que sempre há. Mas estamos nos trilhos. O caso dos saraus, por exemplo, é interessante, pois, nesse sentido, eles parecem até estarem seguindo uma lição importante que o cenário musical independente goiano ― de reconhecimento podemos dizer mundial ― tem a dar: qual seja, a de que a independência produtiva que os saraus representam (refletida muitas vezes na publicação dos chamados zines e também no quadro das editoras independentes) é uma maneira de se atingir um público miúdo ― miúdo, sim, é certo, mas que graças ao espaço privilegiado do sarau, que é um espaço acentuado de produção poética ― não sendo à toa que muitos desses saraus costumam produzir muitos poetas também (ou seja, gente que se animou a também tentar seus versinhos) ―; é uma maneira de se atingir um público, eu dizia, que, embora minguado, graças ao espaço privilegiado do sarau consegue uma sobrevida e ouso dizer que mesmo uma multiplicação dos peixes aos pouquinhos.

E o que eu posso te dizer, meu caro leitor, é que se você quer se aproximar da poesia contemporânea produzida em Goiás com o máximo de aproveitamento possível, eu lhe recomendaria prestar muito mais atenção aos saraus e à galera que tem saído deles do que de fato nos livros publicados. A nova geração de poetas goianos, e isso me parece uma coisa bastante clara, tende a ser cada vez mais uma geração nutrida pelo tutano dos saraus.

Se julgo boa a produção ou não ― isso é outra conversa. Mesmo porque minha resposta é que não. A produção poética goiana tem padecido de uma baixa qualidade, num nível muitas vezes preocupante ― e falo isso já tendo em vista as linhas de força performáticas de boa parte do que tem sido produzido aqui. Seria um enorme esforço citar qualquer poema digno de nota tanto de Kaio Bruno Dias quanto de Walacy Neto, pelo simples motivo de que considero ruim demais a obra deles (o que não quer dizer que não possam melhorar ― todo poeta contemporâneo pode melhorar de maneira surpreendente). Se me fosse dado o esforço de tirar leite de pedra, eu ficaria, no caso de Kaio, com:

 

         em dias tristes

         bares bonitos

         solidão

         alegria

 

A linhagem poética é meio óbvia. É algo que vai pelo menos de Oswald de Andrade e passa por boa parte da geração mimeógrafo. Mas por qual motivo eu o cito? Não é citar só pra citar, acredite. Eu realmente considero um poema admirável, e admirável justamente por sua concisão. Quatro versos. Dois com quatro sílabas, dois com três. Dois no plural, dois no singular. O primeiro com uma imagem obviamente triste. O segundo com uma imagem alegre. O terceiro de novo com uma triste e o quarto com uma alegre. Mas nada disso sem um contraponto forte. Tudo muito sutil. Tudo se encaixando, uma coisa na outra, algo que foi especialmente propiciado graças ao "em" que abre o poema. Isto é: em dias tristes é que entram os bares bonitos, a solidão, a alegria. Ou, se eu quisesse até ser mais preciso, entra tudo isso, só que sem artigo. Nenhuma especificação que não seja a sensação evocada (e o movimento gradual e singelo do plural cedendo lugar ao singular, à solidão e, por fim, à alegria). E aqui é a hora de você sentir as ruas e avenidas palpitarem antes de terminar seu veredicto sobre o texto. Afinal de contas, não é assim? Não sei direito que dia esse meu texto vai sair, mas, se for num fim de semana chuvoso, saia por aí e veja, de longe mesmo, um bar vazio com cadeiras de madeira sendo molhadas pela chuva.

Já no caso de Walacy Neto, eu ficaria com:

 

         o asco causa

         caos e caso

         soca às ocas

         partes do dia

         como saco

         o asco no casco

         dos meus pés

         de cavalo.

 

O grande problema de um tipo de poema desses é você ter a lucidez de não sair por aí à cata de paranomásias sem sentido algum. É a lição dificílima que Pio Vargas, por exemplo, compreendeu como poucos ― e é o erro que Walacy incorre quando coloca esse "como saco", que não faz o menor sentido (você começa a sentir um pouquinho disso em "caso" ao lado de "caos" ou em "soca" ao lado de "ocas"). Uma verdadeira excrescência. Mas o cômputo geral é bom. O poeta seguiu uma trilha certa ao adicionar a metáfora dos pés de cavalo. Com uma aliteração tão forte em C, o casco do cavalo é bem o que você escuta.

Todavia, tanto no caso de Kaio quanto no de Walacy, um comentário puramente textual é um tipo de análise que pode encontrar forte resistência diante de outras que ressaltem a raiz performática de suas poesias ― ou seja, você presenciar os poetas performando um e outro poema pode dar uma vida totalmente distinta àquilo que antes tinha diante dos olhos. É algo que precisa, sem dúvidas, de uma atenção peculiar por parte do leitor, embora eu note que os organizadores dos saraus ― não só daqui de Goiás, mas também do Brasil como um todo ― poderiam profissionalizar mais seus eventos se contassem com gravações e edições que fizessem desses eventos ou dessas declamações vídeos com um potencial um pouquinho maior que fosse a viralizar na internet, à guisa do que acontece com alguns dos vídeos do Button Poetry. São instrumentos ― esses de gravação e edição ― que comungam com as raízes performáticas de tais textos e que podem ajudar a lhes dar uma sobrevida tanto temporal quanto geográfica muito mais interessante.

Agora isso quanto a Kaio e Walacy. Com Jamesson Buarque, Miguel Jubé e Fabrício Clemente eu gostaria de ser conciso o máximo possível ― conciso à maneira de um ponto final. Não vou te encher mais do que já te enchi ao longo desse texto imenso, e sinto que um comentário mais detido a respeito do que não me agrada nos livros mais recentes destes autores (no caso de Jamesson, Meditações, publicado pela Martelo; no caso de Miguel Jubé, estreante, o poemas de minimemórias, publicado pela Caminhos; e no caso de Fabrício Clemente, Congresso Espiritual dos Ranúnculos, publicado pela Edições Ricochete) faria desse texto aqui uma coisa ainda maior.

Mais uma vez peço licença pra somente citar e deixar que de algum modo os textos falem por si mesmos. Se calhar de não falarem, então não pensem que a culpa é do texto ou às vezes até mesmo do poeta ― será mais sincero e lúcido da sua parte se creditar esta culpa a mim.De Jamesson, a oitava parte do poema "Depois de hoje":

 

         DEPOIS DE HOJE, saiba você que

         por isto de não haver qualquer rumo

                   de desconhecer-se

         a página nasce em branco, mas sobre ela

         o amarelo luz outra cor do azul, sempre outra

         como todo verde é outro de folha a folha

 

         É muito difícil acertar-se a vida a partir de não haver um rumo

         Mas nunca é tarde para outra vida

                   nem para outra

 

         Sempre é possível reinventar o astrolábio

         fabricar um barco movido a sonho

         e na madrugada fria deitar os olhos debaixo do edredom

         resguardando Safo emoldurada na mulher amada

 

         E também, a partir daquela aurora

         é outra a geografia e as horas se apressam pisando ovos

 

Tenho uma tendência muito grande a achar que Jamesson dissocia demais carga poética de tensão reflexiva, a tal ponto que você passa versos e mais versos, às vezes páginas e páginas, poemas e poemas lendo reflexão pura e simples sem qualquer aguilhão lírico que seja. Mas nesse caso o poeta foi feliz, muito feliz. Até mesmo a citação de Safo, que em outras passagens do livro adquire um caráter gratuito e vazio (como por exemplo no poema sobre Mallarmé ― embora eu não me lembre ao certo se Safo está ali; o fato é que uma pá de outros poetas estão, mas nenhum deles de maneira significativa), é tocante. Claro que esse tipo de coisa não funciona de argumento, mas, se não funcionar, fique ao menos registrado que é um dos poucos poemas produzidos em Goiás que, dependendo do dia, conseguem me fazer chorar.

De Miguel Jubé, aquilo que julgo a primeira parte de "mínima elegia":

 

         proteja-me ó tempo dos males de depois

         dos males de que não sei

         dos males escondidos

         dos males maiores.

 

         só podemos contar com a sorte

         se a lâmina atravessar primeiro

         e descer à morte a luta.

 

         mesmo que apolo ou atena

         de posse de corpos travassem

         mesmo que eneias vertesse

         para o pacífico sul

         proteja-me ó tempo de todos os males

         e não me deixes ficar à mercê de mim mesmo.

 

Uma das poucas elegias capazes de rivalizar com as melhores de José Décio Filho. Eu pediria apenas pra que notassem a inteligência sintática do poema: em especial no final da segunda estrofe e no começo da última, ou seja, a forma como "travassem" e "vertesse" quedam indefinidos.

De Fabrício Clemente o soneto "medida de merda":

 

         mutilando os armários da memória

         descobri a total analogia:

         minhas tripas são trinta mil vadias

         que só quaram no escuro a mesma história:

 

         é por isso que o mundo desconecta

         com síncope-cisterna de pantera

         quando a mesa de túneis, insurreta

         explode em véus, sorrisos, ervas, eras,

 

         corujas, barracãos, gibis, adagas,

         incesto, sacrifícios, desalentos,

         sóis, covas, cor do cosmos que se caga,

 

         mortalhas, irisadas, estações

         dos meus ciclones, sós, aturdimentos

         tão surdos quanto um surto de senões

 

O grande lance com o livro de Fabrício Clemente, e que faz dele um dos livros de poesia mais inteligentes já escritos em Goiás, é que o poeta consegue maximizar a potência de sua verve surrealista se valendo, para tanto, de uma sonoridade encantatória num nível praticamente desvairado e nervoso, em que o leitor se sente numa vertigem absoluta pois dá de cara não só com metáforas ousadas, mas também com uma sonoridade que o enleva até estourar os tímpanos bem como um movimento de idas e vindas, do sublime ao esterco, igualmente intenso. Tudo isso numa polifonia ensurdecedora que faz com que a única maneira inteligível ou mesmo aceitável, suportável de se encarar o livro é sabendo lidar com essa potência poética descontrolada de uma outra maneira que não a convencional. Um livro, sendo assim, que demanda de sua parte reaprender a ler um poema. O fato de você ter diante dos olhos um soneto, que já foi chamado por Hugo Friedrich de "silogismo lírico", é um bom treino pra você redimensionar sua leitura. Pegue por exemplo a chave de ouro, que costuma ser um desfecho memorável e coerente do poema todo. Tente ler o poema à luz dessa chave de ouro. A enumeração ao longo dos tercetos tem algum motivo? Ela apresenta algum movimento ― imagético, emocional, poético...? O que acontece se você lê o poema em voz alta e com ênfase e explosão?

Antes mesmo de dizer que não entendeu, você tem que pelo menos se deparar com esse tipo de perguntas (e outras que à uma da manhã eu não consigo formular). É o mínimo.

 

 

março, 2016

 

 

Matheus de Souza, ou Matheus "Mavericco", nasceu (e vive) em Goiânia e é graduando em Direito. Mantém o blogue Quanto ganha por ano em dólares Pedro Velásquez, em Havana, de poesia: tradução e crítica.