DIÁRIO: A MULHER E O CAVALO

 

 

Quando está frio você faz brrrrr

 

 

Acontece quando eu estou cozinhando, da última vez eu estava cortando legumes, desta vez foi no meio do macarrão com abobrinha. É como se ele me chamasse, a mulher e o cavalo, um livro feminino como a vaca sagrada do Inglês de Sousa: mãe de todos, preenchido por espuma, inflável. Cogitei escrever uma história sem homens. Sem dúvida, é uma cópia de uma ideia masculina, de um filme que eu assisti mês passado do David Cronemberg. Um filme que um moleque com dinheiro fez ainda na faculdade, narrado por um dos personagens. A atuação daquele cara era realmente impressionante, o rosto dele me lembrava a cara de um cavalo ou talvez de um amigo de infância.

 

Eu gostaria muito de ser sincera, no molho de tomate eu joguei uma quantidade não medida de orégano, manjericão, manjerona e pimenta do reino, sem saber se era o suficiente, sem saber se ia combinar, se ia agradar. É possível escrever um livro assim? Da mesma forma que se tempera o molho? Uma escritora pode perguntar coisas para quem a lê? Ou uma cozinheira pode não provar o molho antes de servi-lo? Eu nunca provo a comida, mas eu acho que uma das maneiras para uma mulher atingir a maturidade é jogando um pouco de leite de mamadeira no torso da mão para medir a temperatura. Só mulheres maduras têm filhos, não importa quantos anos elas tenham. Por outro lado, as éguas não precisam medir a temperatura do leite, porque ele sai irretocável das suas tetas e quando cessa é porque o potro desmamou. Tem poucas coisas mais irritantes do que um homem crescido que mora sozinho no seu apartamento de 30 m², não lava as próprias roupas e toma um copo de leite com achocolatado antes de dormir ou ao acordar. O macarrão com abobrinha manda lembranças do meu estômago quando eu penso nesse tipo.

 

 

2 por 5

 

 

Pensei na mulher e o cavalo de manhã, antes de trabalhar, enquanto passava pela rua e as mulheres abriam as lojas de sapato. Os donos das lojas de sapato são todos homens e as funcionárias precisam usar maquiagem e salto alto. Hoje eu vi uma funcionária andando toda torta em cima do salto, sorrindo. Desde que eu comecei a trabalhar no centro, não tentam mais me vender coisas, eu cheiro a funcionária como elas. Então os ambulantes me respeitam porque eu ainda preciso chegar em casa e preparar o jantar. Na volta para casa eu também pensei na mulher e o cavalo, e por que não nas éguas? Os machos na natureza, como são eles? É preciso me convencer todos os dias que escrever vale estar acordada. Anoto na contracapa dos livros as passagens sobre cavalos. Não sobre mulheres, porque todos os livros já escritos falam sobre mulheres, então seria como copiar todos os livros com os quais eu já tive contato na vida. No livro da Svetlana, sobre a segunda guerra mundial, encontrei passagens preciosas. Lembro também de um poema da Cecília Meireles, um de título longo como "O lamento do oficial por seu cavalo morto na guerra". Nem é tão bonito, mas eu gosto porque sempre pensei neles mortos, nos seus olhos fixos onde pousam moscas. Olhos de longos e grossos cílios de dar inveja. Me surpreendi ao saber que os cavalos são animais inteligentes, talvez eles até consigam entender que participam de uma grande encenação. Filmes de guerra são sobre homens que voltam para casa no final das contas, é muito entediante. No livro da autora da Bielorrússia, os cavalos se acostumam a pisar nos mortos.

 

 

Penteadeira

 

 

Hoje, durante e depois da terapia, enquanto dirigia de volta para casa, pensei nas pessoas que eu conheço que têm contato com cavalos. Lembrei da minha própria trajetória e me surpreendi por ter esquecido que, aos 12 ou 13 anos, eu andei a cavalo uma meia dúzia de vezes. Inclusive, dentro da mata. Um cavalo já disparou comigo no lombo. O meu irmão mais novo faz um bico num haras de uma amiga conhecida, uma professora com quem eu trabalho tira fotos de pessoas com cavalos. Minha cunhada fez aula de equitação quando mocinha e tem um quadro de cavalo pendurado na sala, presente do pai. Pensava que amar um homem era como colocar a mão na boca de um cachorro enquanto ele come, mas talvez seja montar um cavalo que sente estar perto de casa. Um homem gordo em cima de um cavalo, tão gordo a ponto do cavalo encostar a barriga no chão e dobrar os joelhos. Um homem em cima de um cavalo com uma vara de pescar, na ponta uma maçã pendurada. Um cavalo branco enfrenta uma floresta de espinhos para beijar a princesa no alto da torre, seu pênis preto ereto. Cavalos são animais menos interessantes do que o dragão-de-komodo. Os dragões-de-komodo correm muito rápido, sabem nadar e sua mordida é fatal. A vítima não morre na hora, por isso eles a seguem até ela estar fraca o suficiente. Um escritor escreve sobre seis coisas a sua vida inteira. Eu, demais sintética: mulher e cavalos. Mulheres, cavalos e seus acessórios: perneiras, culotes, capacetes, chaperreiras, esporas, chicotes, mantas, selas, cabrestos, cabeçadas, embocaduras, bridões. Deus colocou um sorriso no seu rosto, toca na rádio. Os cavalos sorriem? As mulheres o tempo todo.

 

 

Arbustos

 

 

Sentada na minha cama, eu penso por que as mulheres preferem escrever sobre animais, enquanto os homens dão claros sinais de que a única matéria que os interessa é a arrastada decadência da civilização humana. Ouvi num programa de rádio que a contribuição das mulheres para a sociedade é a própria sociedade. É possível sentir os nós insondáveis que aproximam mulher e bicho? Por que nos dobramos, pernas para cima, para nos encararmos de frente, montanha de pelos? Antes de eu aparar os meus pelos parecia que não tinha mais vagina, era apenas um pequeno bosque no lugar do sexo, um bicho encolhido hibernando. Sonhei, há alguns dias, com um gato no congelador, congelado enquanto dava o próximo passo. Hoje esse gato move-se dentro da geladeira, arranha o homem que abre a geladeira como se protegesse seu território. O homem me diz: o gato é seu, lide com isso! Eu tenho medo de abrir a geladeira e lidar com ISSO. O gato congelado era da minha irmã, esse gato se movendo é meu, pior, é minha também a geladeira. A cada dia eu escrevo menos, jogo com uma linha, sou displicente, prematura, abro o forno antes dos trinta minutos permitidos para enfiar o garfo na massa ainda mole do bolo de maçã. Minha cozinha cheira a bolo de maçã. As maçãs são as frutas prediletas do cavalo ou isso é só coisa de televisão? Se um aluno entrasse na minha sala e colocasse uma maçã em cima da minha mesa, meus olhos rolariam espontaneamente, talvez eu até suspirasse fundo.

 

 

Anything goes!

 

 

Hoje é aniversário do meu primo e ele não tem relação nenhuma com cavalos. Nem imagino ele montado em um. Agora que imaginei, a cena é tão repugnante quanto pensar numa pessoa transando com um cachorro. Um homem me parou na rua, me obrigou a parar, e me fez um marca-página com um pedaço de arame, pediu para pegar no livro da Svetlana, eu jurava que ele ia sair correndo, que ia roubar meu livro. Me posicionei na frente dele para dificultar a fuga. O homem marcou a página com o dedo sujo e o pedaço de arame. Essa borboleta prateada vai direto para o lixo. Depois perguntou meu nome e abriu bastante os olhos quando falou o dele: Pau-lo. Se a sua família não te encontrar uma doença mental quando lerem seu livro será que ele é bom de verdade? Em pé no ônibus dei uma entrevista a um crítico importante. O sujeito disse que meus poemas têm qualquer coisa que pode ser confundida com qualidade literária: "seu poema é um animal de criação a quem alimentam incessantemente" reflete um pouco, bochecha as palavras na boca "um balão em forma de poodle". Meu poema está prestes a explodir em vários pedacinhos de carne na cara de quem estiver por perto. Meu poema-nuggets, um monte de coisa junta formando um bolo de cartilagem mascarado. Ideal para o consumo de pessoas preguiçosas, comer sem mastigar, ler pulando verso, procurando erro de grafia, tentando entender. Anything goes! é o título do próximo capítulo: Ashley Magdalene não existe, ou melhor, visita os velhos castelos irlandeses em busca do brasão da família e descobre a sua própria sexualidade. Ashley tem pira por cavalos. Molha-se só de pensar naquele torso em s, uma grande cauda que quase alcança o chão, quatro tornozelos impetuosos e um pescoço do tamanho do prazer. Nem eu iria tão longe. Será possível ir tão longe? Um bafo quente e mau cheiroso tão perto do seu cangote, todos os pelos do braço arrepiam-se apesar do calor que faz ao meio-dia. Mas na Irlanda também? Sim, na Irlanda também. O garanhão dá dois passos para trás como a adivinhar as intenções feminísticas. Bufa, bufa, bufa mais alto, o que deixa a situação ainda mais crítica. Baby, tudo o que eu preciso fazer é me sentar e ouvir. Nem preciso ouvir, é só me sentar e esperar. O membro da grossura de uma coxa humana e eu me lembro que meu desenho favorito conta a história de um cavalo que é um ator fracassado, por quem eu tenho uma paixão platônica. Eu gostaria de transar com um cavalo de desenho animado que na segunda temporada namora uma coruja. A minha cena preferida é, quando no fim do relacionamento deles, a coruja pergunta: "What happened?" e o cavalo responde, coçando a crina: "You didn’t know me. Then you fell in love with me. And now you know me". É isso que acontece. A coruja pega suas coisas e vai embora, não aparece mais na série. Quer dizer, acho que tem um episódio em que eles têm uma recaída, transam de novo, não me lembro. Na série ele transa com uma gata, três humanas, uma peixe-boi, acho que só.

 

 

Salvia Palth

 

 

A menina que eu encontrei na lanchonete falou que as mulheres têm que fazer que nem os cavalos na umbanda: transmitir. Eu não entendi. Mas eu sei que as mulheres estão todas interligadas, nossas mentes formam uma grande rede. Por exemplo, eu escutei a palavra "acre" numa peça, e no mesmo dia, uma poeta escreveu sobre a palavra "acre" um poema que eu li alguns meses depois. Também teve aquela vez que eu sonhei que eu e minha irmã tínhamos que chupar os terroristas da ISIS que batiam na nossa porta e, no mesmo dia, ela me mandou uma notícia do atentado em Nice. Eles eram baixinhos e eu só pensava em maneiras de parecer menos irresistível. No Youtube toca Salvia Palth e a Isabella escreve na seção de comentários que essa música a faz sentir-se morta da melhor maneira possível. Pelo jeito existem várias maneiras de se sentir morta e uma delas é bem estimulante. A Sylvia era escorpiana e colocou a cabeça dentro de um forno, isso não me comove, é como se eu tivesse acabado de ler sobre a reprodução das abelhas. Só quando me lembro que chorei sozinha no banheiro, enquanto a batata frita esfriava na mesa, é que entendo o que é colocar a cabeça dentro do forno.

 

 

Direção

 

 

Você mergulha fundo mais uma vez, confia, continua, durante o caminho se depara com duas serpentes marinhas que acasalam, enroscando seus corpos. Só é preciso um pequeno estímulo para começar a dançar. Com os ovos dentro dela, a serpente fêmea nada até uma caverna onde nunca esteve antes e deposita meia dúzia de ovos moles. A caverna é como uma grande bolha de ar que possibilita a sobrevivência dos filhotes. Assim que eles conseguem romper a casca do ovo, escorregam até a água e saem nadando como atletas olímpicos por um caminho que se desconhece há milhões de anos. Assim também você faz: mergulha com desconhecimento de causa. Por não saber nada, sabe o necessário para estar com a cabeça submersa e continuar respirando. Instinto selvagem. O Stein Bernau é um menino transexual de 14 anos, viciado em cocaína que adora a banda Wild Nothing. O Adam Charney é um homem cis de 43 anos que acabou de conhecer a Wild Nothing e já A-M-A ELES. O que isso tem a ver com cavalos, senhorita? O que isso tem a ver com Ashley, a mulher que queria transar com um cavalo na Irlanda? Hoje eu não pensei em cavalos, mas pensei em mulheres. A menina da lanchonete me deu uma concha que de tão exemplar parece ter se feito sozinha, um dia apareceu já pronta. A parte externa da concha é rochosa de auto relevo, padrões, projeções, mas por dentro ela é mais macia do que a boca de um lobo, por isso dá vontade de deslizar os dedos, colocar e tirar os dedos de dentro da concha enquanto pulso meu próprio mar. Em nenhum tempo, a concha começa a suar gotículas de água salgada, o que faz com que os dedos deslizem com redobrada facilidade para dentro e para fora, até o fundo e na borda novamente. Agora com o indicador de um lado para o outro. Percebo que ela quer me contar uma história, encaixo a concha no ouvido e sinto que da minha orelha escorre uma espessa e espumosa baba salgada. Nós chegamos juntas enquanto o Netflix janta sozinho.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Julia Raiz é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora de Produção Textual. Em parceria com Clarissa Comin, criou o blogue de escrita Totem & Pagu, projeto que já rendeu sarau, exposição e oficina. Tem textos publicados no jornal curitibano RelevO e nas revistas Mallarmargens e Zunái. Também participa de projetos de incentivo à escrita e leitura, como o Leia Mulheres e o coletivo Marianas.